Cosmovisões e os deveres dos animais

As cosmovisões ou visões de mundo, são as formas pelas quais nós compreendemos os fenômenos universais, sendo essas formas dependentes dos pressupostos, os primeiros princípios que determinam as cosmovisões, a partir dos quais é feita a leitura ou interpretação de tudo o que acontece. No campo científico, as cosmovisões se referem aos paradigmas, como “as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (Thomas S. Kuhn. A estrutura das revoluções científicas. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 12 ed. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 53).

Em uma busca pela internet, deparei-me com dois artigos sobre as cosmovisões. O primeiro deles com o título “Compreendendo as seis diferentes cosmovisões que regem o mundo” (http://tradutoresdedireita.org/compreendendo-as-seis-diferentes-cosmovisoes-que-regem-o-mundo/), traduzindo um texto de David Noebel destacando as seis principais cosmovisões no mundo ocidental: a Cristã, o Islamismo, o Humanismo Secular, o Marxismo, o Humanismo Cósmico e o Pós-modernismo. O artigo define a cosmovisão como “’um quadro interpretativo’, como um par de óculos – através do qual você vê tudo. Ela se refere a qualquer conjunto de ideias, crenças ou valores que fornecem uma estrutura ou mapa para ajudá-lo a entender Deus, entender o mundo e sua relação com eles”.

Outro artigo é de João R. Weronka, “Cosmovisão – o que é?” (https://www.internautascristaos.com/textos/artigos/cosmovisao-o-que-e), sustentando haver “sete cosmovisões básicas; são sete matrizes das quais as demais formas de enxergar o todo derivam: Teísmo, Deísmo, Ateísmo, Panteísmo, Panenteísmo, Teísmo Finito e Politeísmo”. A primeira delas, o Teísmo, é indicada pelo autor com expressão no Cristianismo, no Judaísmo e no Islamismo.

É possível, desde já, a partir de nossos conhecimentos históricos básicos, chegar a uma conclusão prévia, no sentido de que até o chamado Renascimento prevaleceu uma determinada visão de mundo no Ocidente, o Teísmo Cristão romano, e desde então essa cosmovisão específica veio perdendo força gradualmente, tanto dentro do próprio mundo religioso, pela Reforma e pela dita Revolução Científica e Filosófica, com Descartes, Galileu e Newton, todos autodeclarados seguidores de Cristo; como por uma visão não Cristã, notadamente pelo ateísmo.

Dentro dessa ideia de mudança de cosmovisão, a cosmologia teve grande importância para reduzir a força da Bíblia, e do Cristianismo, como visão de mundo dominante, quando a ideia heliocêntrica assumiu o domínio no campo científico, em contraposição ao geocentrismo, praticamente abandonado. Esse tema já foi abordado no artigo “Revolução e evolução” (https://holonomia.com/2017/08/03/revolucao-e-evolucao/):

A revolução copernicana levou ao entendimento de que a Terra não é o centro físico do universo.

Contudo, os instrumentos utilizados pela ciência contemporânea e os dados por eles obtidos, analisados pela razão humana, indicam que o universo não tem centro, ou seja, todo local é o centro do universo. As informações obtidas pela radiação cósmica de fundo, pela medição da energia mais distante de todos os pontos do universo, indicam o ponto mais distante como sendo há 13,8 bilhões de anos, que é a idade estimada do universo.

‘Existe um horizonte, o ponto mais longínquo de onde a luz pode nos atingir após viajar por 13,8 bilhões de anos, a idade do Universo. Podemos visualizá-lo como uma redoma que nos cerca, como se vivêssemos no centro de uma gigantesca esfera de vidro‘ (Marcelo Gleiser. A ilha do conhecimento: os limites da ciência e a busca por sentido. Rio de Janeiro: Record, 2014, p. 116 – grifo nosso).

O espaço se expande para todos os lados, e para todos os lados que olhamos encontramos a mesma radiação de fundo indicando a idade citada do universo, sendo perfeitamente razoável, por isso, com base nos dados científicos mais atuais, concluir que o desfecho da revolução copernicana demonstra, ao menos por ora, que a humanidade é o centro do cosmos. O compromisso com a verdade e com a realidade, conforme a ciência, aponta nesse sentido.

E em todo o universo físico conhecido, até o momento, o único ser com condição de verificar esse fato é o homem, que está, assim, no centro do cosmos.

A prova científica, ainda que provisória, demonstra a condição especial da humanidade na criação, como narrado na Bíblia, pois o homem é filho de Deus, criado à imagem e semelhança de Deus. Cada um de nós é imagem de Deus, e o centro de um universo, mas nem todos percebemos esse fato, e isso já está previsto na revolução cristã, em curso”.

O conhecimento cosmológico, portanto, aponta para uma impressionante verdade da visão Cristã, colocando a Terra com posição de destaque no cosmos. Nesse sentido, impressionou-me sobremaneira o livro de Wolfgang Smith “A sabedoria da antiga cosmologia”, defendendo em pleno século XXI, expressamente, a cosmologia geocêntrica, usando nada menos que a física relativística de Einstein para sustentar suas ideias.

Minha diferença com Smith está no fato de que afasto a bifurcação filosófica ainda antes dele, porque também nego a dicotomia das duas cidades de Agostinho de Hipona, não aceito a trindade, e sustento que o Reino de Deus é deste mundo, para que haja a necessária unidade Monoteísta, da Ciência e da Filosofia. Smith, por sua vez, inicia seu argumento com a rejeição da dicotomia cartesiana entre res cogitans e res extensa, ele nega a dualidade entre o corpo ou a matéria e a mente, afirmando que essa é “a fatídica hipótese da ‘bifurcação’ que embasa – e, de certa forma, determina – o Weltanschauung da ciência moderna”, concluindo que “esse pressuposto cartesiano não pode ser comprovado, seja por argumentos filosóficos, seja por métodos científicos” (Wolsgang Smith. A sabedoria da antiga cosmologia. Trad. Adriel Teixeira, Bruno Geraindine e Cristiano Gomes. Campinas, SP: Vide editorial, 2017, p. 36 – negrito meu).

Após profundo e elaborado argumento científico e filosófico, considerando que a relatividade não aceita parâmetros absolutos que possam determinar a questão, uma vez que a velocidade orbital da Terra não pode ser detectada, diante dos resultados do experimento Michelson-Morley, usados por Einstein para formar sua famosa teoria, Smith declara:

Mas enquanto a Astronomia contemporânea é implacavelmente oposta à hipótese geocêntrica, a Física pura não o é. De acordo com a relatividade geral, é até mesmo permissível tomar a Terra como um corpo em repouso: como Fred Hoyle aduziu, a teoria resultante ‘é tão boa quanto qualquer outra, mas não melhor’. A relatividade implica que a hipótese da Terra estática não é incompatível com as leis da Física e não pode existir prova experimental que a contrarie. É claro que a Física como tal não pode afirmar essa hipótese, mas também não pode negar sua validade. (…) Assim, no que diz respeito à Física, o modelo geocêntrico permanece viável” (Idem, pp. 247-248 – negrito meu).

A relatividade, como expressão do livre-arbítrio, permite que escolhamos nossas referências, usando os dados disponíveis, respeitado o limite da velocidade da luz, segundo aquela teoria. Pelas informações de que dispomos podemos optar por uma ou outra cosmovisão, em que são acrescentadas hipóteses que transcendem o que conhecemos, que estão fora de nosso cone de luz relativístico, para que seja possível completar as lacunas da ciência decorrentes daqueles dados que ignoramos, que desconhecemos.

Nesse ponto, as informações que possuímos indicam que as constantes fundamentais da natureza, como as forças gravitacionais, elétricas e nucleares, incluindo as estruturas atômicas e moleculares, expressam um equilíbrio cósmico muito delicado, conhecido como sintonia fina da natureza, tendo permitido o surgimento da vida, o que é conhecido como “coincidência antrópica”, apontando para uma posição especial do homem no universo, tal como dita o Cristianismo, e sua cosmovisão.

Para fugir dessa hipótese desconfortável, a proposta adotada pelos físicos foi a criação de muitos outros universos, a teoria do multiverso, usada inicialmente para resolver o enigma do “gato de Scrödinger”, a partir da teoria de Hugh Everett, o qual introduziu “universos paralelos” na proposta científica, decorrentes da divisão do universo em dois a cada mensuração quântica. A consequência dessa cosmovisão é dada por Smith:

Claro que isso acarreta a noção bizarra de que o próprio observador se dividiu em dois: um que encontra o gato vivo e outro que o encontra morto. O mais extraordinário, na verdade, é que a teoria de Everett tenha sido levado a sério na comunidade de físicos e (…) está hoje entre as principais concorrentes do mundo da Física” (Idem, p. 325).

Isso significa que para não aceitar que nosso mundo é especial, e que temos uma posição única no cosmos, foi desenvolvida a ideia, que por princípio não pode ser provada, de que existem infinitos universos, e que porque existem infinitos universos um deveria ser propício para a vida, e esse um, por acaso, é o nosso.

Como se pode ver, cosmovisões distintas acarretam consequências diversas no desenvolvimento das ideias, o que vale também para o Direito, que sofre o embate de visões de mundo contrárias, com conceitos diferentes de dignidade humana, como esboçado no artigo “Fundamento e dependência do Direito” (https://holonomia.com/2018/03/20/fundamento-e-dependencia-do-direito/), porque o homem é digno, por uma visão de mundo, por ser filho de Deus, Sua imagem e semelhança, ou porque … deu (muita, mas muita) sorte na evolução, teoria esta que ainda precisa explicar por que o que deveria ocorrer em trilhões e trilhões de anos, o desenvolvimento de organismos complexos, ocorreu em muitíssimo menos tempo.

Toda cosmovisão tem uma ideia de Direito com ela compatível, sendo função da Filosofia organizar essas ideias de forma coerente. Na visão tradicional Cristã, o homem tem posição especial no cosmos e deve dominar a criação, inclusive os animais. Nessa perspectiva, são os homens que têm direitos e deveres, porque toda a criação gira em torno da humanidade.

De outro lado, existe a ideia de que o homem é apenas um animal que pensa demais, cujo cérebro se desenvolveu além do necessário, e isso gerou pensamentos e fantasias, no que se incluem a religião e o mundo espiritual, e no Direito a ideia de dignidade seria diferente, sendo sustentada atualmente a existência até de direitos dos animais.

Não se nega a importância da vida animal, que deve ser respeitada, como consta na proposta de mundo Cristã, por Francisco de Assis, o protetor dos animais, ao sustentar desde a idade média uma concepção mais sutil de Vida e de uma profunda conexão entre os seres vivos, e mesmo com a natureza inanimada.

O conceito de Vida do Cristianismo, outrossim, é superior ao das demais cosmovisões, porque distingue a própria Vida, que é una e imortal e se manifesta no corpo vivo, do vivo, que morre, porque para o Cristianismo existe uma Vida eterna, além da já conhecida vida do corpo perecível, que, em verdade, não é tão conhecida assim pela ciência materialista. Mostrando sua consonância com a ideia cósmica atual, decorrente da Revelação da orgânica quântica, a visão de mundo de Cristo entende haver um só Corpo e um só Espírito, uma unidade universal fundamental. E como Francisco de Assis percebeu muito bem, essa unidade inclui o mundo animal, que não pode ser abusado, para não ocorrer prejuízo à unidade da Vida, e consequentemente à humanidade.

Portanto, mesmo que os animais não sejam coisas inanimadas, como tudo mais que existe na criação, os animais devem, como no filme Avatar, respeitosamente servir à Vida, que tem na humanidade seu ponto culminante, e daí porque os direitos são conferidos apenas às pessoas, direitos esses que de forma reflexa alcançam os animais, como no caso de se proibir que sofram maus tratos ou tratamento cruel, vedação justificada para que não ocorra a violação à consciência Cristã, que sofre com o mal causado às outras pessoas e às demais manifestações da Vida.

Também pela bilateralidade do Direito, atribuindo direitos e deveres recíprocos às pessoas, não há que se falar em direitos dos animais, porque haveria necessidade, para que os animais não fossem absolutos, isto é, apenas portadores de direitos, que também lhes fossem impostos, de algum modo ou em momento próprio, deveres, pela aquisição de capacidade ou responsabilidade após seu desenvolvimento, como no caso de fetos ou crianças. O Direito está ligado à contenção dos instintos, do egoísmo, o que os animais, por suas limitações, não podem fazer por si mesmos, ao contrário dos homens, pois estes atingem a consciência e o autocontrole pela educação, e a capacidade de aprendizado humano é praticamente inesgotável. Quando um dever é violado, há necessidade de responsabilização ou sanção, conceitos que se vinculam à noção de consciência da ilicitude, e isso leva ao complicador da ideia do direito dos animais, sobre como serão exigidos os deveres dos animais…

Humanidade x bestialidade: abuso sexual

Este artigo surge como modo de organização das ideias para palestra no “1.° Fórum de Combate ao Abuso e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes”, em Ubá, tendo como foco da exposição o tema do abuso sexual, de um modo geral, com sua repercussão na infância e adolescência. Já antecipando o resultado, e pedindo escusa ao leitor pela extensão do texto, pode-se dizer que o artigo começa e termina com as mesmas perguntas: qual o limite entre humanidade e bestialidade em se tratando de comportamento sexual? Qual o princípio de definição do que seja abuso sexual?

Isso porque para se falar de abuso sexual é indispensável que se qualifique o normal uso sexual, uma vez que o conceito “abuso” pressupõe uso incorreto, excessivo, ilegítimo, indevido ou imoderado de alguma atividade ou algo. O abuso sexual é a conduta que ultrapassa o limite do que é sexualmente permitido.

Conforme a quarta edição do novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, sexo significa: “1. Conformação particular que distingue o macho da fêmea, nos animais e nos vegetais, atribuindo-lhes um papel determinado na geração e conferindo-lhes certas características distintivas”; enquanto sexual é: “1. Pertencente ou relativo ao sexo. 2. Referente à cópula”. Já cópula, por sua vez, tem o sentido de: “1. União, ligação. 2. O ato sexual; coito”.

Outrossim, como tudo no Direito, o conceito de sexo passa de uma questão natural, ligada a geração e reprodução das espécies e chega à questão moral, à regulação da atividade sexual na sociedade humana. O regramento da conduta sexual se refere, pois, à concepção de moralidade humana, de bem e de mal, vigente em uma comunidade, com sua direta repercussão no plano jurídico, do lícito e do ilícito.

O mundo ocidental tem, nesse aspecto, noções distintas sobre o comportamento sexual na comunidade, uma oriunda dos gregos e outra do Monoteísmo.

Na Grécia a homossexualidade não era considerada um desvio moral, uma vez que a pederastia, o relacionamento sexual entre um homem adulto e um garoto a partir de doze anos, seu aprendiz, era comportamento aceito dentro da moralidade normal.

Na primeira carta a Timóteo, Paulo, por sua vez, pelo Monoteísmo, afirma-se que a Lei “não é destinada ao justo, mas aos iníquos e rebeldes, ímpios e pecadores, sacrílegos e profanadores, parricidas e matricidas, homicidas, impudicos, pederastas, mercadores de escravos, mentirosos, perjuros e para tudo o que se oponha à sã doutrina, segundo o evangelho de glória do Deus bendito, que me foi confiado” (1Tm 1, 9-11). A pederastia, portanto, ao contrário do que entendia o mundo grego, é considerada uma iniquidade para os Cristãos, algo contrário à lei, à sã doutrina, ao lado de outros comportamentos igualmente reprovados.

Também a conduta homossexual é tida como injusta, como algo que impede a união do homem com Deus: “Não vos enganeis: nem fornicadores, nem idólatras, nem adúlteros, nem afeminados, nem homens que se deitam com homens, nem ladrões, nem gananciosos, nem bêbados, nem caluniadores herdarão o Reino de Deus” (1Cor 6, 9-10). E antes disso, no livro do Levítico, atribuído a Moisés, já constavam as proibições sexuais, rejeitando-se o homossexualismo:

Nenhum de vós se aproximará de sua parenta próxima para descobrir a sua nudez. Eu sou Iahweh. Não descobrirás a nudez do teu pai, nem a nudez da tua mãe. É tua mãe, e tu não descobrirás a sua nudez. Não descobrirás a nudez da mulher do teu pai, pois é a própria nudez de teu pai. Não descobrirás a nudez da tua irmã, quer seja filha de teu pai ou filha de tua mãe. Quer seja ela nascida em casa ou fora dela, não descobrirás sua nudez. Não descobrirás a nudez da filha do teu filho; nem a nudez da filha da tua filha. Pois a nudez delas é a tua própria nudez. Não descobrirás a nudez da filha da mulher de teu pai, nascida de teu pai. É tua irmã, e não deves descobrir a nudez dela. Não descobrirás a nudez da irmã de teu pai, pois que é a carne de teu pai. Não descobrirás a nudez da irmã de tua mãe, pois é a própria carne de tua mãe. Não descobrirás a nudez do irmão de teu pai; não te aproximarás, pois, de sua esposa, visto que é a mulher de teu tio. Não descobrirás a nudez de tua nora. É a mulher de teu filho e não descobrirás a nudez dela. Não descobrirás a nudez da mulher de teu irmão, pois é a própria nudez de teu irmão. Não descobrirás a nudez de uma mulher e a da sua filha; não tomarás a filha de seu filho, nem a filha de sua filha, para lhes descobrir a nudez. Elas são a tua própria carne: isto seria um incesto. Não tomarás para o teu harém uma mulher e, ao mesmo tempo, a irmã dela, descobrindo a nudez desta, durante a vida da sua irmã. Não te aproximarás de uma mulher, para descobrir a sua nudez, durante a sua impureza das regras. Não darás o teu leito conjugal à mulher do teu compatriota, para que não te tornes impuro com ela. Não entregarás os teus filhos para consagrá-los a Moloc, para não profanares o nome de teu Deus. Eu sou Iahweh. Não te deitarás com um homem como se deita com uma mulher. É uma abominação. Não te deitarás com animal algum; tornar-te-ias impuro. A mulher não se entregará a um animal para se ajuntar com ele. Isto é uma impureza. Não vos torneis impuros com nenhuma dessas práticas: foi por elas que se tornaram impuras as nações que expulso de diante de vós. A terra se tornou impura, eu puni a sua falta e ela vomitou os seus habitantes. Vós, porém, guardareis meus estatutos e minhas normas e não cometereis nenhuma dessas abominações, nem o cidadão e nem o estrangeiro que habita entre vós” (Lv 18, 6-26).

A pena pela prática homossexual era a morte: “O homem que se deita com outro homem como se fosse uma mulher, ambos cometeram uma abominação, deverão morrer, e o seu sangue cairá sobre eles” (Lv 20, 13).

Também o livro do Deuteronômio traz normas de comportamento sexual, ao lado de outras condutas consideradas nocivas à comunidade:

Maldito seja aquele que desonra seu pai e sua mãe! E todo o povo dirá: Amém! Maldito seja aquele que desloca a fronteira do seu vizinho! E todo o povo dirá: Amém! Maldito seja aquele que extravia um cego no caminho! E todo o povo dirá: Amém! Maldito seja aquele que perverte o direito do estrangeiro, do órfão e da viúva! E todo o povo dirá: Amém! Maldito seja aquele que se deita com a mulher do seu pai, pois retira dela o pano do manto do seu pai! E todo o povo dirá: Amém! Maldito seja aquele que se deita com um animal! E todo o povo dirá: Amém! Maldito seja aquele que se deita com sua irmã, filha de seu pai ou filha de sua mãe! E todo o povo dirá: Amém! Maldito seja aquele que se deita com sua sogra! E todo o povo dirá! Amém! Maldito seja aquele que fere o seu próximo às escondidas! E todo o povo dirá: Amém! Maldito seja aquele que aceita suborno para matar uma pessoa inocente! E todo o povo dirá: Amém! Maldito seja aquele que não mantém as palavras desta Lei, não pondo-as em prática! E todo o povo dirá: Amém!” (Dt 27, 16-26).

A tradição considera a Bíblia como a Revelação de Deus por seu Espírito ao povo escolhido para portar uma visão superior de humanidade, uma Sabedoria eterna, passando, com Jesus Cristo, essa cosmovisão monoteísta a toda a humanidade. Deve ser ressaltado que a moral em Jesus Cristo, apesar de suas palavras de perdão e misericórdia, é ainda mais rigorosa do que a dos escritos do chamado Antigo Testamento. Falando sobre o divórcio, disse Jesus: “Moisés, por causa da dureza dos vossos corações, vos permitiu repudiar vossas mulheres, mas desde o princípio não era assim. E eu vos digo que todo aquele que repudiar a sua mulher — exceto por motivo de ‘fornicação’ — e desposar uma outra, comete adultério” (Mt 19, 8-9). Jesus também disse que alguns renunciam à atividade sexual pelo Reino de Deus, dada a sua repercussão (do sexo) nos níveis mais sutis da realidade, pela energia psíquica que o envolve, de vida e morte, eros e tânatos: “E há eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos Céus. Quem tiver capacidade para compreender, compreenda” (Mt 19, 12). Acerca do adultério: “Ouvistes que foi dito: Não cometerás adultério. Eu, porém, vos digo: todo aquele que olha para uma mulher com desejo libidinoso já cometeu adultério com ela em seu coração” (Mt 5, 27-28).

Jesus Cristo trabalha seus conceitos em uma razão superior ao mero materialismo, que tem seu ápice e limite na relatividade de Einstein, Jesus encarna o Logos onipresente ou não local, já considerando o atual nível quântico, e por isso o rigor de suas ideias, na medida em que o ato sexual significa um entrelaçamento quântico entre os envolvidos, repercutindo em um nível sutil de realidade que transcende o espaço-tempo. O entrelaçamento quântico forma partículas em unidade de spin, cada uma delas com spin contrário ao da outra, unidade que transcende o espaço-tempo, como na união sexual entre homem e mulher.

A moral Cristã autêntica, portanto, é de um nível mais refinado e superior, incluindo o controle comportamental sobre as conversas e os pensamentos, que devem ser puros e santos, como o Logos, a ideia ou razão perfeita. A santidade ou saúde Cristã está ligada à contenção ou moderação, se não à abstinência, sexual, dada a sacralidade do ato sexual, o ato de criação da vida humana, que não pode ser banalizado.

Ressalte-se que no Cristianismo a imoralidade é considerada pecado, violação da Lei, conceito equivalente ao crime moderno.

Tornai-vos, pois, imitadores de Deus, como filhos amados, e andai em amor, assim como Cristo também nos amou e se entregou por nós a Deus, como oferta e sacrifício de odor suave. Fornicação e qualquer impureza ou avareza nem sequer se nomeiem entre vós, como convém a santos. Nem ditos indecentes, picantes ou maliciosos, que não convém, mas antes ações de graças. Pois é bom que saibais que nenhum fornicário ou impuro ou avarento — que é um idólatra — tem herança no Reino de Cristo e de Deus” (Ef 5, 1-5).

Portanto, existe uma moral Cristã, colocando a sexualidade normal dentro da relação matrimonial, especialmente para a reprodução da Vida pelo casal natural, com os respectivos bons costumes cristãos, ligados a uma moral absoluta e eterna, com fundamento nas escrituras, entendidas estas como a Revelação de Deus por meio de profetas, os cientistas da antiguidade, ou seja, aqueles que alcançam um conhecimento superior e uma Verdade do Espírito e o comunica à humanidade. Na realidade, no Cristianismo, a atividade sexual sequer é necessária, como mostram o próprio Jesus, o apóstolo Paulo, Francisco de Assis e outros exemplos da melhor humanidade, e se for uma mera satisfação da carne pode até mesmo prejudicar o crescimento espiritual, do que decorre que o limite para o comportamento sexual normal é bem restrito.

De outro lado, existe uma moral materialista, limitada à localidade einsteniana, que não aceita verdades absolutas, e considera relativos e culturais os costumes sexuais, em que sexo é simples prazer corporal, o que dificulta a concepção do que seja um limite para o sexo regular, do que seja abuso sexual, notadamente quando não houver violência física.

Feitas essas considerações iniciais, é possível associar o conceito de humanidade à moralidade Cristã, porque funda os conceitos de dignidade humana e de direitos humanos, como salientado no artigo Fundamento e dependência do Direito (https://holonomia.com/2018/03/20/fundamento-e-dependencia-do-direito/), dentro de uma proposta de evolução espiritual do ser humano, sendo Jesus Cristo o caminho evolutivo, como exposto no texto anterior “Macroevolução e microevolução” (https://holonomia.com/2017/11/22/macroevolucao-e-microevolucao/). Em contrapartida, no ideário do Cristianismo existe a noção de bestialidade, qualificação referente ao comportamento animalesco, o comportamento com brutalidade e ignorância, como aquele praticado em contrariedade aos valores civilizatórios. O abuso sexual, nesse sentido, é um ato bestial, uma regressão ao nível animalesco, uma involução.

É sabido que a tradição Cristã e sua moralidade sexual dominaram o Ocidente até recentemente, quando suas verdades e valores passaram a ser questionados pelo materialismo científico, tendo aquela visão de mundo sido abalada pelas guerras mundiais do século XX que liberaram a besta humana no seio da cristandade, e contestada expressamente de uma forma mais marcante pelos movimentos estudantis de 1968, defendendo a liberação sexual, tendo como suportes teóricos, dentre outros, as ideias de Freud e Gramsci, ateus e materialistas.

Antes dessas “novas” ideias ganharem força, em 1940, o nosso Código Penal – CP foi editado, constando em sua Parte Especial o Título VI, que tratava dos crimes contra os costumes, que passaram a ser nomeados a partir de 2009 como crimes contra a dignidade sexual, quando foram alterados alguns dispositivos legais, relativos aos crimes sexuais, sendo que alguns deixaram de existir. Como a moral se refere à ilicitude comportamental, aos pecados ou crimes, a mudança na concepção moral teve repercussão na legislação penal. O art. 215 do CP possuía redação original “Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude”, até 2005, quando abandonou-se o conceito de “mulher honesta” e o texto passou a “Ter conjunção carnal com mulher, mediante fraude”, sendo a norma atualmente em vigor “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”.

O crime de sedução do art. 217 deixou de existir, que tinha como redação: “Seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de quatorze, e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança”. Hoje temos o art. 217-A: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”, o chamado estupro de vulnerável.

Também o crime de corrupção de menores, do art. 218, foi modificado, deixando a redação primitiva: “Corromper ou facilitar a corrupção de pessoa maior de quatorze e menor de dezoito anos, com ela praticando ato de libidinagem, ou induzindo-a a praticá-lo ou presenciá-lo”; para a vigorar a nova “Induzir alguém menor de 14 (catorze) anos a satisfazer a lascívia de outrem”.

Os crimes de rapto deixaram de existir em 2005, que estavam tipificados nos arts. 219 ao 222 do Código Penal: “Raptar mulher honesta, mediante violência, grave ameaça ou fraude, para fim libidinoso”, sendo menor a pena “Se a raptada é maior de catorze anos e menor de vinte e um, e o rapto se dá com seu consentimento”; e havia causa de redução “de um terço a pena, se o rapto é para fim de casamento, e de metade, se o agente, sem ter praticado com a vítima qualquer ato libidinoso, a restitui à liberdade ou a coloca em lugar seguro, à disposição da família”; mas “Se o agente, ao efetuar o rapto, ou em seguida a este, pratica outro crime contra a raptada, aplicam-se cumulativamente a pena correspondente ao rapto e a cominada ao outro crime”. Também deixou de existir, o crime de adultério, pela violação da fidelidade conjugal, previsto no art. 240 do mesmo estatuto, que ocorria quando alguém casado praticava ato sexual com outra pessoa.

Viu-se, portanto, nos últimos anos, um abrandamento da moralidade sexual, e uma redução da proteção da vida sexual dos menores de idade, porque a prática sexual com menores de dezoito anos era considerada abusiva, através da tipificação dos crimes de sedução, corrução de menores e estupro, este último ocorria quando praticado o sexo com menor de quatorze anos, pela presunção de violência, tal como ocorre hoje no estupro de vulnerável. O conceito de abuso sexual foi mitigado, mantida, por ora, maior proteção apenas para os casos de exploração sexual, que envolve a mercantilização do sexo. Isso porque praticar ato sexual com meninas adolescentes virgens era sedução e com meninos ou meninas não virgens era corrupção de menores, quando maiores de quatorze anos, mesmo com suposto consentimento das vítimas, buscando a norma a proteção dos adolescentes contra a depravação moral, no aspecto sexual. Agora o “consentimento” afasta o crime quando o adolescente vítima” for maior de quatorze anos.

Pode-se pensar que a mensagem Cristã está desatualizada, é ultrapassada e arcaica, e que houve evolução da moral sexual, para maiores e menores de idade, o que é um ledo engano, sendo mais atuais que nunca os valores do Evangelho, porque ligados ao próprio conceito de humanidade, em sua unidade essencial, ontológica, no nível de conexão que é previsto pela física ou orgânica quântica. A liberação sexual significa, por sua vez, um mergulho da humanidade em direção à matéria, aos prazeres do corpo, ao comportamento egoísta e individualista, a uma negação do Espírito, produzindo efeitos psicológicos na infância e na juventude, com sua iniciação na vida sexual cada vez mais cedo, à bestialização das pessoas.

Assim, existe uma falsa ideia de evolução da moral sexual, quando o que ocorre é justamente o contrário, a involução em que se estimula a sexualidade na sociedade em detrimento da educação e da vida dos jovens, que ficam cada vez mais individualistas e menos capazes de alcançar os níveis mais elevados de intelectualidade, cultura e integridade moral, como a arte, notadamente a música, dos dias atuais comprova à exaustão, por seu nível grosseiro e sensual, além do comportamento frio e isolado dos jovens, mergulhados na ficção virtual.

Portanto, se a moral sexual era ditada com base em valores religiosos, a partir de uma visão Teocrática de mundo, de uma ordem superior, decorrendo da Revelação o que deve ser considerado lícito ou ilícito, agora os valores são avaliados segundo uma visão “democrática”, pela religião da matéria. A autoridade moral e jurídica passou de Deus, do Espírito, em sua Razão infinita, em seu Logos, para o homem, o corpo individual; o homem carnal arvorou-se deus, colocando-se no lugar de Deus. A razão espiritual deu lugar à sensação carnal.

Por isso, sendo os valores de Jesus Cristo a base do que consideramos a civilização humana, e do que pensamos por humanidade, considero que a “evolução sexual” na realidade é uma involução, um mergulho no materialismo, predito pelas próprias Escrituras, e por isso vivemos o tempo da inversão dos valores, do anticristo, da bestialidade, e a questão sexual é apenas uma das expressões desse fato. Como já havia antecipado o apóstolo Paulo:

Sabe, porém, o seguinte: nos últimos dias sobrevirão momentos difíceis. Os homens serão egoístas, gananciosos, jactanciosos, soberbos, blasfemos, rebeldes com os pais, ingratos, iníquos, sem afeto, implacáveis, mentirosos, incontinentes, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, enfatuados, mais amigos dos prazeres do que de Deus; guardarão as aparências da piedade, negando-lhe, entretanto, o poder. Afasta-te também destes. Entre estes se encontram os que se introduzem nas casas e conseguem cativar mulherzinhas carregadas de pecados, possuídas de toda sorte de desejos, sempre aprendendo, mas sem jamais poder atingir o conhecimento da verdade” (2Tm 3, 1-7).

A ciência materialista, que pretende ser portadora da verdade científica, em confronto com os profetas que falaram da parte de Deus, do Logos, da Sabedoria, a verdadeira Ciência, portanto, na realidade, a ciência materialista não tem conhecimento, portando-se como um falso profeta, sendo seu efeito o surgimento do homem iníquo e egoísta que vemos na sociedade, com a atomização das pessoas, e com a destruição do planeta nos níveis material, moral e cultural. E por isso também o Estado foi tomado por esse falso profeta, como consta no livro da Revelação, por isso é chamado de Besta, a do Apocalipse, que domina as relações políticas e econômicas, causando as guerras, chegando a falsa ciência mais recentemente à (i)moralidade sexual.

O falso profeta cria uma falsa ideia da realidade dizendo que esta se limita à matéria visível e aos corpos individuais, provocando a corrupção mental, que é a primeira corrupção, da qual o abuso sexual é consequência. Todos os crimes e pecados começam na mente, que primeiro é amortecida ou desviada da verdade, para, então, permitir a prática delituosa no plano corporal. Da proposta de um Espírito humano e coletivo passa-se à ideia de domínio da sensualidade dos corpos, supostamente independentes uns dos outros. Primeiro cria-se uma nova ideia normalidade, de que não há ordem absoluta, relativizando-se os valores, tentando normalizar o anormal, normalizar o abuso, pelo “progresso moral”, e assim o que era ordem se transforma ideologicamente em opressão, exigindo a liberação, e daí os limites são modificados até serem eliminados, o que era proibido passa a lícito, e o que era abuso deixa de sê-lo, porque os critérios de moralidade sexual são apenas relativos e locais. A violência física foi substituída pela violência mental, e o elevadíssimo consumo de drogas, medicamentos psiquiátricos, e drogas ilícitas é a prova cabal desse fato.

A esquizofrenia da legislação, que se baseia cada vez mais na ciência materialista, no falso profeta, é tamanha que se concebe como legal um maior de dezoito anos praticar ato sexual com um menor de idade, desde que maior de quatorze anos, mas se a mesma pessoa vender um vídeo pornográfico para o mesmo menor incidirá em infração administrativa, por violação ao art. 256 do Estatuto da Criança e do Adolescente. O ato sexual em si, a própria violação corporal, é atípico, mas a venda de imagens dessa natureza é ilegal.

Adolescentes de doze ou treze anos que praticam atos sexuais recíprocos são, ao mesmo tempo, vítimas e autores de infração, de ato infracional equiparado ao crime de estupro de vulnerável.

Assim, ocorreu a relativização da proibição sexual, pelo avanço das ideias materialistas, segundo uma visão “democrática” da vida social. O problema dessa evolução é a falta de critérios objetivos para a definição do uso normal e do abuso sexual. Não se sabe até quando poderá avançar essa liberação, ou quais seus limites, porque o critério de referência é o prazer individual.

Seria normal que um adolescente com quinze anos praticasse atos sexuais com um animal? Seria situação de risco?

Haveria possibilidade de redução da “capacidade sexual” dos adolescentes, considerando que as meninas têm seus ciclos menstruais cada vez mais novas, aos oito ou nove anos, de modo a passar a tolerar como normal sua atividade sexual nessa idade? Se o que importa é o prazer, qual o limite para definir o uso ou abuso sexual, inclusive em relação a recém-nascidos, se não houver violência física?

Antes era crime ou pecado a prática sexual com menor de idade. Hoje o crime somente ocorre caso o adolescente tenha menos de quatorze anos, até que a idade mínima de consenso seja reduzida. Assim, seria crime os pais praticarem sexo “consensual” no âmbito doméstico com filhos de maiores de quatorze anos?

Se a proibição do casamento entre parentes tem fundamento na moral Cristã, seria possível “evoluir” para o casamento entre pais e filhos ou irmãos? A solução materialista para o problema da deficiência da criança (antevista pelos profetas do Altíssimo) já está posta: aborto. Essa é a resposta de uma sociedade materialista pela sexualidade estimulada, pois para o problema da gravidez indesejada, decorrente do sexo sem controle, a solução já existe e é amplamente defendida, o aborto.

Se hoje é considerado normal o “casamento” entre pessoas do mesmo sexo, qual o motivo da proibição de casamento entre irmãos, ou entre ascendentes e descendentes?

Destarte, se a “dignidade” é base para defesa da mutilação humana, para sustentar o “direito” de a mulher abortar, a despeito do direito fundamental da inviolabilidade da vida, ou para entender como “digno” o “casamento” entre pessoas do mesmo sexo, quando a Constituição afirma o casamento entre homem e mulher, basta uma interpretação “iluminista” da Constituição, defendendo a “dignidade” das crianças e adolescentes, e seu “direito” ao prazer sexual, independentemente da idade, para que, sem mudança no texto constitucional, as aberrações a abominações mencionadas nas perguntas acima sejam consideradas “normais” ou “lícitas”. Se não há Providência ou uma Lei da Natureza, e o mundo for regido pelo acaso, pela aleatoriedade, toda essa bestialidade poderá vir a ser considerada “humana”. Como já afirmou Dostoiévski, por uma de suas personagens: “Se Deus não existe, tudo é permitido”.

O limite consensual “democrático” é artificial, e sempre passível de alteração, porque não está ligado a critérios naturais, ontológicos ou absolutos, como aqueles ditados pelas ideias de Cristo. Por isso, as perguntas que permanecem, então, são: Existe um limite para esse “consenso democrático”? Qual é esse limite? Qual o conceito de sexualidade normal para a humanidade? Se não há normalidade, não há abuso.

Democracia Teocrática

Esse é o regime político determinado pela Comunidade Internacional, através da Organização das Nações Unidas, a ONU.

Outro traço saliente da Declaração Universal de 1948 é a afirmação da democracia como único regime político compatível com o pleno respeito aos direitos humanos (arts. XXI e XXI, alínea 2). O regime democrático já não é, pois, uma opção política entre muitas outras, mas a única solução legítima para a organização do Estado” (Fábio Konder Comparato. A afirmação histórica dos direitos humanos. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 246).

A Democracia exigida pela ONU, contudo, é, em Verdade, uma Teocracia, uma Democracia Teocrática, porque reclama um determinado conteúdo jurídico nesse regime político para que seja considerado democrático, nos termos da Declaração, conteúdo ligado a normas de caráter absoluto, a um deus a ser sempre respeitado.

Considerando-se Deus como O Princípio supremo, absoluto, que não pode ser violado, mesmo os que se chamam “ateus” possuem um deus de referência, sob pena de perda da racionalidade. Outrossim, o ateísmo é, em si, uma falácia, uma mentira, em que incidem todos os que se declaram “ateus”, que, se não possuem um deus de referência, como um princípio de organização mental, não podem ser considerados, estritamente, racionais; porque o ser racional, no mínimo, acredita na razão, e não pode se declarar ateu, porque seu deus é uma razão, ainda que uma razão material.

Nesse sentido, até mesmo os seguidores de Cristo, nos primeiros séculos, eram chamados ateus, porque adoravam um só Deus espiritual, ao contrário dos romanos e dos povos por eles dominados, que eram politeístas, acreditavam em vários deuses. O ateu, pois, deve ser visto mais como um herético, que não acredita no deus ou deuses dominantes, pelo que sou, de certa forma, nesse sentido, ateu”, porque meu Deus está mais próximo de Alá ou Iahweh, o Pai celeste, do que da trindade, a ideia dominante de Deus no Cristianismo.

A alegação de ateísmo, assim, normalmente mascara uma autodivinização, porque o “ateu”, na verdade, não reconhece nenhuma autoridade suprema além de si-mesmo, nega uma transcendência além da imanência material, pois o “ateu” é a própria suprema autoridade, por sua razão individual, o próprio deus ou princípio absoluto, que condiciona todas as coisas, podendo compartilhar ou projetar esse princípio em ideias e organizações com as quais se identifica.

No caso da ONU esse deus é a dignidade humana, como consta no Preâmbulo da Declaração (http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf):

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (…)

Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla”.

O grande problema dessa divinização está na interpretação equivocada quem vem sendo dada à dignidade humana, contrária ao espírito do texto, porque tem sido considerada em perspectiva irracional, da razão que não pode ser ampliada ad infinitum e acaba se transformando em irracionalidade, ou seja, a partir da perspectiva individual e egoísta contrária à integridade da humanidade.

Postula-se uma dignidade particular, a partir do indivíduo, sem conexão com a família humana, criando-se uma pretensa dignidade sensual e fragmentária, incompatível com a própria noção de dignidade, em sua qualidade espiritual ou moral, e também incompatível com a noção de mérito ou honra.

Primeiramente, sustenta-se a defesa do aborto com base na dignidade humana, quando a própria ideia de aborto afronta a concepção humana de dignidade.

Os artigos I e III da Declaração estatuem:

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.”

Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.”

Os artigos, todavia, não informam quando o ser humano tem início, ou quando passa a vigorar exatamente o direito à vida, e uma coisa é certa, a ciência humana ainda não resolve esse problema, sobre o início da consciência humana, da dignidade humana. Comparato afirma que o embrião humano não é uma coisa, mas uma pessoa em potencial, “titular de direitos fundamentais, a começar pelo direito ao nascimento” (Obra citada, p. 45).

Entretanto, o materialismo científico tem sustentado que a vida humana está ligada à consciência que, por sua vez, está dentro do cérebro, ou seja, a consciência é efeito dos fenômenos cerebrais, das reações químicas entre os neurônios. Com base nessa visão de mundo, que se mostra equivocada por contrariar a não localidade quântica, que se presume seja aplicada à consciência humana, a qual, por isso, não se limitaria ao cérebro, entende-se que apenas o cérebro é a fonte da vida e, assim, da dignidade humana, e daí seria possível o aborto do feto anencéfalo. Também é segundo a visão materialista, pelas mesmas razões, que se defende o aborto de seres humanos intrauterinos até o terceiro mês de gestação, quando ainda não se teriam formado as conexões neurais da criança em desenvolvimento.

Portanto, a dignidade humana é restringida por uma visão de mundo limitada, e sob o argumento de defender a dignidade da mulher que não quer, por falta de informação e/ou por egoísmo, ter o filho, a humanidade, que carrega no ventre, a dignidade desse ser é colocada como mera potência que não tem o direito de ser realizado.

Para essa visão de mundo, outrossim, a democracia é uma teocracia material, o governo da vontade corporal e pessoal de indivíduos, contrariando os valores morais essenciais de humanidade que levaram à própria criação das Nações Unidas. O valor defendido por esses é o da satisfação dos prazeres carnais, numa espécie de bestialização do ser humano.

Portanto, para aqueles que têm a matéria como deus, o aborto é um indiferente penal, e não pode ser considerado um crime até um determinado momento, escolhido com razões supostamente científicas. Pela mesma linha, o homem ou mulher que se mutila e pretende “mudar de sexo” tem o mesmo valor daquele que contém seus impulsos bestiais; não bastasse isso, além de mentir para si, dizendo-se do sexo oposto, por uma maquiagem cirúrgica, teria o direito de enganar toda a coletividade afirmando ser o que não é, portando documentos falsos oficiais.

De outro lado, se a dignidade humana é imaterial, se “a consciência da Humanidade” ultrajada pelos atos bárbaros praticados durante as guerras mundiais não é apenas corporal, mas também moral, o aborto não é uma hipótese a ser considerada em qualquer caso, repita-se, em qualquer caso. Essa consciência da Humanidade é inegavelmente decorrente dos valores Cristãos, que sustentam a ideia de “família humana”, vinculada ao fato de sermos, os homens e mulheres, filhos de Deus, e sustentam também a ideia de fraternidade.

A consciência da Humanidade que foi abalada pela guerra, portanto, é a consciência Cristã, que levou ao sentimento de vergonha pelos massacres ocorridos, em plena civilização baseada nos valores de Cristo.

Não é por acaso que as nações socialistas, da esquerda materialista, não deram expressa aprovação ao documento. “Além disso, nem todos os membros das Nações Unidas, à época, partilhavam por inteiro as convicções expressas no documento: embora aprovado por unanimidade, os países comunistas (União Soviética, Ucrânia e Rússia Branca, Tchecoslováquia, Polônia e Iugoslávia), a Arábia Saudita e a África do Sul abstiveram-se de votar” (Fábio Konder Comparato. A afirmação histórica dos direitos humanos. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 238).

Assim, os adeptos da visão meramente materialista e econômica do mundo, os antigos socialistas ou comunistas, que se transformaram na atual esquerda, com o colapso da União Soviética, tentam transformar a democracia de valores morais em reino da economia, e uma vez que não podiam alterar o texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, seguiram o ensinamento de Gramsci, ocupando a hegemonia da intelectualidade, e passaram a deturpar ideologicamente o conceito de dignidade humana, tornando-o uma questão material, individual e egoísta, afastando-a do Espírito de Cristo, sua origem e fundamento.

Não é a primeira vez que os valores de Cristo foram deturpados, pois já com Constantino a natureza e a essência da mensagem messiânica, a realização do Reino de Deus na humanidade, enquanto governo político e jurídico das nações, foram subvertidas, transformando o Evangelho numa questão meramente espiritual, para um Reino transcendente, que não é deste mundo. Portanto, a dignidade humana, a consequência jurídica e política do Evangelho, como fundamento do Direito e da ação governamental, novamente é atacada, retirando dos homens a qualidade de filhos de Deus, como espíritos e, portanto, deuses, enquanto Espírito, porque Deus é Espírito, filho de Espírito é espírito e filho de Deus é deus.

Como sempre, mais uma vez, o grande conflito é Teológico, isto é, se o princípio absoluto que rege a realidade é material ou espiritual, se o mundo é fundado na matéria ou no Espírito.

Voltando ao texto da Declaração, o artigo primeiro exige uma ação com “espírito de fraternidade”, ligado à ideia Cristã, que, apesar da guerra, dominou e domina o pensamento ocidental, levando à edição do texto em questão.

Como já mencionado no artigo “Fundamento e dependência do Direito” (https://holonomia.com/2018/03/20/fundamento-e-dependencia-do-direito/):

‘Tudo gira, assim, em torno do homem e de sua eminente posição no mundo. Mas em que consiste, afinal, a dignidade humana?

A resposta a esta indagação fundamental foi dada, sucessivamente, no campo da religião, da filosofia e da ciência.

A justificativa religiosa da preeminência do ser humano no mundo surgiu com a afirmação da fé monoteísta. A grande contribuição do povo da Bíblia à humanidade, uma das maiores, aliás, de toda a História, foi a ideia da criação do mundo por um Deus único e transcendente. Os deuses antigos, de certa foram, faziam parte do mundo, como super-homens, com as mesmas paixões e defeitos dos seres humanos. Iahweh, muito ao contrário, como criador de tudo o que existe, é anterior e superior ao mundo’ (Fábio Konder Comparato. A afirmação histórica dos direitos humanos. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, pp. 13-14 – grifo meu).

A definição da dignidade humana está inafastavelmente ligada à de natureza humana, pelo que a dignidade humana será uma ou outra dependo do respectivo conceito fundamental de natureza humana, e como consequência, todo o sistema jurídico estará atrelado simbólica e logicamente a essa definição primeira, que condicionará a compreensão e a aplicação do Direito.

Como Comparato salientou, a origem da concepção de dignidade humana está na religião monoteísta, e a visão de mundo religiosa determinava a vida social e jurídica como um todo, o que sofreu alteração após a filosofia moderna, o iluminismo, culminando com as revoluções do século XIX, notadamente a francesa e a americana, que inauguraram uma nova visão de mundo e de sociedade, a da racionalidade democrática secular.

Após Darwin, ainda, o conceito de natureza humana sofreu uma reviravolta no mundo científico, passando a haver duas concepções concorrentes sobre o que seria a natureza humana: a religiosa, segundo a qual o homem é criatura especialmente formada por Deus, a sua imagem e semelhança; e a ‘científica’, concebendo o ser humano como resultado de eventos históricos aleatórios, ou seja, a vida humana seria fruto do acaso”.

Após os horrores da guerra, a racionalidade secular se rendeu à dignidade humana no plano jurídico internacional, ao resgatar os valores Cristãos, o Espírito de Cristo, que assim cumpriu sua missão messiânica e importante profecia restaurando o Estado de Israel, e ao colocar como base do Direito o valor moral e espiritual inerente à pessoa humana, pois a ideia darwinista de evolução, a sustentação científica e materialista da raça ariana superior, foi uma das causas do genocídio judeu.

Por isso, o regime político determinado pela Comunidade Internacional é a Democracia Teocrática Cristã, e uma defesa meramente materialista de direitos humanos afronta a Declaração Universal dos Direitos Humanos, porque consta no Artigo XXIX, alínea 2, que os direitos e liberdades devem assegurar “o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática”, o que implicitamente significa justas exigências da moral Cristã, concluindo a alínea 3 que:

Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos objetivos e princípios das Nações Unidas”.

A conclusão da Declaração é a do Artigo XXX:

Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos”.

Podemos dizer, enfim, que não somente a democracia é teocrática, como também o é a tirania, a oligarquia ou a monarquia, o que muda é apenas o deus de regência, que pode ser material, preso ao tempo e mortal, ou espiritual, eterno e imortal, sendo o deus que o organiza os Direitos Humanos a dignidade humana baseada nos mandamentos de Cristo, de natureza espiritual e eterna, o Logos que habita na humanidade.

Assim, os grupos ateus, comunistas e socialistas, os esquerdistas em geral, bem como os amantes capitalistas do dinheiro, a esquerda e a direita anticristã, que sustentam a democracia teocrática materialista e que tentam interpretar a Declaração em defesa do aborto ou da corporificação da dignidade humana, ou da ganância econômica decorrente de nacionalismos isolacionistas, deturpando a dignidade espiritual e a unidade da humanidade em favor de um prazer egoísta e bestial, em última análise, negam a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, porque ignoram seu fundamento espiritual, seu deus, a dignidade humana, negam a própria humanidade, porque rejeitam o Logos que a sustenta.

A democracia teocrática saiu dos trilhos, descarrilou, transformando-se em materialismo demagógico teocrático. Existe uma luz no fim do túnel, mas essa luz é o trem vindo em sentido contrário, a mesma demagogia teocrática materialista. E como foi necessária uma guerra para recolocar a humanidade nos trilhos, o mesmo acontece novamente. Que Deus nos ajude, e ajudará, porque assim o diz a profecia. Quando a tribulação passar, enfim, e de forma definitiva, prevalecerá a Democracia Teocrática Cristã, agora de forma expressa, e não apenas implicitamente.

Julgamento inconsciente

Uma vez reconhecida a existência de um plano inconsciente da realidade psíquica, de grande relevância, e porque o cérebro processa inconscientemente uma quantidade enorme de informações sem que o percebamos, tal procedimento também ocorre durante o julgamento, durante a formação do juízo de justiça ou injustiça da ação, de legalidade ou ilegalidade, de tipicidade, na análise jurídica de um caso.

A percepção consciente não pode abarcar toda a realidade, e por isso é limitada a atenção do magistrado, do cientista ou do filósofo, que concentra seus esforços interpretativos em determinadas questões, consideradas relevantes ou essenciais, ou seja, que apontam para a integridade da interpretação em sua totalidade lógica. Os pontos cegos, que estão fora da atenção, portanto, são processados inconscientemente pelo cérebro, que é o principal órgão da mente individual, mente esta, por sua vez, que é um órgão do Espírito, do Logos, segundo o mapa mental do sujeito que observa o mundo, o magistrado, cientista ou filósofo, o que é considerado um fato científico no âmbito da formação de imagens visuais pelo cérebro.

O mapa mental, a visão de mundo, portanto, é de importância fulcral na compreensão da realidade, que será maior ou menor, mais correta ou menos correta, segundo a linguagem do intérprete, fato que foi corretamente descrito por Ludwig Wittgenstein. Por exemplo, a noção mesma de inconsciente pode ser mais ou menos acertada, conforme a realidade dos fenômenos, segundo a linha teórica do cientista, e por isso um conceito freudiano do inconsciente, porque limitado, significando praticamente apenas a libido sexual, a reprodução da vida ou corpo individual, não terá o condão de conduzir o observador à plenitude e integridade da realidade psíquica como o faz o inconsciente coletivo de Jung, o qual possui a simbologia da Vida coletiva, a reprodução ou espelhamento do Espírito, do Divino.

O inconsciente, de outro lado, não é autônomo, sendo ligado à atividade consciente, pelo que o inconsciente, de certa forma, é o reflexo da atividade consciente, e daí a atividade inconsciente será adequada à ação consciente da pessoa, pela integração dos conteúdos inconscientes em atividades conscientes. A ação consciente em direção à totalidade psíquica, pela adequação arquetípica do inconsciente, permite que a correta razão inconsciente aja sobre a consciência, como ocorre na formação das imagens visuais.

O aprendizado consciente correto, portanto, permite a correta ação do inconsciente no processamento dos dados de forma “automática”, sem passar previamente pela consciência, até que a informação seja organizada e analisada no nível consciente. A consciência da totalidade lógica, da coletividade psíquica, do Logos, por exemplo, em sua simbologia, permite a ação inconsciente de processamento da mesma totalidade na realidade intersubjetiva consciente.

Nesse sentido é importante destacar que o inconsciente, especialmente o coletivo, é racional, possui a racionalidade da totalidade e da unidade psíquica da humanidade. O julgamento inconsciente, portanto, não é irracional, e por isso traz à consciência essa unidade psíquica em unidade racional e jurídica.

Uma vez apreendidos, inclusive conceitual e simbolicamente, determinados comportamentos juridicamente típicos, ou arquetípicos, o que se aplica a juízos morais e intelectuais, esses comportamentos passam a um certo modo de ação inconsciente, por um processamento automático, o que é muito comum na atividade técnica especializada. O profissional internaliza a técnica pelo treinamento, e depois a executa sem maiores esforços, em um fluxo natural, nem mesmo percebendo sua execução momento a momento como quando durante a aprendizagem, o que vale para o atleta, o motorista, o cientista, o artista e até mesmo o juiz.

Assim, o magistrado trabalha com um conceito de justiça e legalidade, que, após sua adequada formação técnica, incorpora-se ao seu caráter profissional, permitindo a ação do inconsciente no julgamento das causas. Portanto, ainda que se pense que o juiz decide e depois fundamenta, o fundamento já está sendo incorporado racional e automaticamente no momento da decisão, pelo que a decisão já é tomada segundo razões jurídicas, de legalidade e de justiça, ainda que não totalmente conscientes, que são, então, processadas de forma consciente na elaboração dos argumentos, na fundamentação da decisão, por uma lógica que se torna plenamente consciente pela reflexão sobre a questão. O juiz é tanto mais consciente desses argumentos quanto mais estejam em seu repertório linguístico os modelos teóricos que organizam juridicamente o mundo a partir dos valores humanos fundamentais, expressos pelas religiões, que ditaram a organização das normas constitucionais, até os argumentos legais mais concretos, que tipificam especificamente os fatos em julgamento, segundo as categorias básicas do justo e do injusto, do lícito e do ilícito.

Desse modo, o instinto de Justiça do magistrado é aperfeiçoado pela assimilação consciente do arquétipo ou conceito de Justiça, que somente é plenamente desenvolvido na Teologia Cristã, que é a autêntica Filosofia, a encarnação do Logos no homem, Logos que é Direito e Justiça, segundo a totalidade psíquica da humanidade, em suas vertentes religiosa, política e jurídica. Daí porque o juiz encarna o arquétipo do julgador, em todos os momentos de sua vida, não apenas na atividade profissional, porque procura a perfeição de Cristo, e de Deus, como todo Cristão, para viver essa perfeição, na vida pública e privada, segundo o Caminho ou Método de Cristo, em sua humildade e submissão à Lei, à Vontade do Pai.

Mas a confusão não pode levar a identificação da pessoa do julgador com o arquétipo, ainda que fenomenologicamente se misturem, para que o instrumento não se transforme em fim em si mesmo, quando o julgador perde a consciência de si, incidindo em juizite”. Segundo o evangelho apócrifo de Tomé, por isso:

[67] Jesus disse: ‘Aquele que conhece o tudo, mas não tem (conhecimento) de si mesmo, não tem o tudo”.

[108] Jesus disse: ‘Aquele que bebe da minha boca tornar-se-á como eu, e eu mesmo me tornarei como ele, e ser-lhe-ão reveladas coisas ocultas’” (Luigi Moraldi. Evangelhos apócrifos. Trad. Benôni Lemos e Patrizia Collina Bastianetto. São Paulo: Paulus, 1999, pp. 270 e 275).

O julgamento inclui, também, a análise das provas, que apontam para os fatos em discussão, que serão juridicamente qualificados de modo definitivo na sentença. Os argumentos narram determinada realidade de fatos, descrevendo-os em sua juridicidade como lícitos ou ilícitos, com suas respectivas consequências, que são o objeto da pretensão autoral, notadamente a realização forçada do dever ou a aplicação de sanções, pela ação do juiz.

Alguns fatos em julgamento, os mais importantes, são psicológicos, direta ou indiretamente relacionados às questões normativas expressamente debatidas em juízo, e esses fatos psíquicos também são sujeitos ao julgamento, podendo haver prova de fato ou não-fato dessa natureza, como a mentira ou má-fé. A má-fé é um fato psíquico relevante, está na essência da definição do injusto e, a contrario sensu, do justo.

A má-fé e a boa-fé são as variáveis ocultas do Direito, são as categorias que, uma vez definidas, tornadas conscientes pelo julgamento, dão unidade racional às posições e argumentos das partes, sintetizados na sentença, que confere unidade argumentativa ao processo, indicando o sentido ou sentimento jurídico da ação, como procedente ou improcedente.

Tanto a má-fé como a boa-fé podem ser conscientes ou inconscientes, sendo factível que a pessoa tenha ciência de que suas alegações não se conformam aos fatos e à realidade jurídica, caso em que existe má-fé subjetiva ou dolo, como também pode a parte ser ignorante dessa realidade, na hipótese da má-fé objetiva, ou má fé, que é má ciência, teoria ou argumento falho ou inconsistente, conhecimento sem a correta conexão com o Espírito ou Logos.

Assim como no plano individual a pessoa tem maior ou menor consciência do mundo, da significação da totalidade psíquica da qual faz parte, por melhor ou pior conexão do ego, como centro individual da psique, com o si-mesmo, ou self, o centro da totalidade psíquica, também no plano coletivo ou uniplurissubjetivo pode haver maior ou menor consciência da adequação dos fatos à simbologia coletiva da Justiça, como faceta jurídica do si-mesmo, a unidade psíquica que integra o mundo racionalmente, como Logos. Por isso, a função judicial é arquetípica ou universal, possui uma finalidade integradora dos conteúdos psíquicos.

Para aquilo que nos ocupa, a denominação (arquétipo) é precisa e de grande ajuda, pois nos diz que, no concernente aos conteúdos do inconsciente coletivo, estamos tratando de tipos arcaicos – ou melhor – primordiais, isto é, de imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos. (…)

O arquétipo representa essencialmente um conteúdo inconsciente, o qual se modifica através de sua conscientização e percepção, assumindo matizes que variam de acordo com a consciência individual na qual se manifesta” (Carl Gustav Jung. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Trad. Maria Luiza Appy e Dora Mariana R. Ferreira da Silva. 11 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, pp. 13-14).

Daí porque o magistrado tem a função coletiva, e arquetípica, de exercer a atividade de trazer à consciência coletiva a plenitude da simbologia jurídica, do conceito de Justiça, da unidade da comunidade, em sua racionalidade normativa e linguística. Essa função é sacerdotal, porque o juiz faz em sua pessoa a mediação entre a totalidade inconsciente, que atinge o plano numênico da realidade, e a consciência, encarnando o Logos, seguindo o exemplo de Cristo ao realizar, de fato, o Reino de Deus, através do governo exercido por reis sacerdotes do Altíssimo, Que é o próprio Direito e a própria Justiça. A função do juiz, destarte, é realizar a Justiça, Ser Justiça, Ser Justo, em si, para si e para o outro, como mediador ou Presença da Justiça na comunidade.

Não é por outro motivo que o juízes são chamados de deuses no Salmo 82, que se refere às autoridades responsáveis pelo julgamento:

Deus se levanta no conselho divino, em meio aos deuses ele julga: ‘Até quando julgareis injustamente, sustentando a causa dos ímpios? Protegei o fraco e o órfão, fazei justiça ao pobre e ao necessitado, libertai o fraco e o indigente, livrai-os da mão dos ímpios! Eles não sabem, não entendem, vagueiam em trevas: todos os fundamentos da terra se abalam. Eu declarei: Vós sois deuses, todos vós sois filhos do Altíssimo; contudo, morrereis como um homem qualquer, caireis como qualquer dos príncipes’. Levanta-te, ó Deus, julga a terra, pois as nações todas pertencem a ti!

Por isso chegou-se a dizer que a coisa julgada faz preto do branco e transforma o quadrado em redondo, conforme brocardo latino: “Res iudicata facit de albo nigrum, originem creat, aequat quadrata rotundis, naturalia sanguinis vincula et falsum in verum mutato”.

Isso acontece porque o juiz dá o nome que marca a coisa jurídica de forma definitiva, oficialmente perante a comunidade política, e nomear é uma atividade criadora, uma função divina transferida ao homem.

O julgamento inconsciente, destarte, traz para fora o que já está dentro da simbologia jurídica, traz à percepção a unidade psíquica da humanidade, expressa o Reino de Deus, que já está dentro de nós, “e todos se esforçam para entrar nele, com violência”, tornando manifesto o que já está presente, de forma oculta.

Interrogado pelos fariseus sobre quando chegaria o reino de Deus, Jesus respondeu-lhes: ‘O reino de Deus não vem de maneira observável. [As pessoas] não afirmarão ‘Ei-lo aqui’ ou ‘Ei-lo ali’. Pois o reino de Deus está dentro de vós’” (Lc 17, 20-21).