Radiação moral

Em “Justiça para Ouriços”, Ronald Dworkin aborda a questão sobre a veracidade de juízos morais, fazendo uma comparação com o mundo físico, ao sustentar que este “determina se as nossas opiniões são realmente verdadeiras ou falsas”, de modo que “as afirmações sobre o mundo físico tornam-se verdadeiras graças ao estado real do mundo físico – os seus continentes, quarks e disposições” (Ronald Dworkin. Justiça para ouriços. Tradução de Pedro Elói Duarte. Coimbra: Almedina, 2012, p. 40). De outro lado, afirma o autor que não se pode dizer que existem fatos morais: “A perspectiva comum insiste que os juízos morais não se tornam verdadeiros por causa dos acontecimentos históricos, das opiniões ou emoções das pessoas, ou de qualquer coisa no mundo físico ou mental” (Idem, pp. 40-41).

Dworkin, assim, adota uma posição cética em relação aos juízos morais, dizendo que não existem partículas morais, ou morões, chegando a definir o que sejam os céticos: “qualquer pessoa que negue que os juízos morais possam ser objetivamente verdadeiros – ou seja, verdadeiros não em virtude das atitudes ou crenças que alguém tenha, mas independentemente de qualquer uma dessas atitudes ou crenças” (Idem, p. 41).

Em certo sentido, pode-se dizer que Dworkin está correto ao dizer que não se pode falar em juízos morais verdadeiros independentemente de quaisquer atitudes ou crenças das pessoas perante o mundo, uma vez que a moralidade está inserida numa perspectiva inteligente do mundo, que pressupõe as atitudes e crenças das pessoas, envolve a existência de consciência, a racionalidade comportamental do indivíduo e a possibilidade de adoção de uma ou outra ação perante os fatos da vida. Fatos são fatos dentro de um contexto, que os significa, sendo, portanto, necessária inteligência para a constatação dos fatos.

Por isso, a rigor, não é muito adequado falar em moralidade no comportamento dos animais, destituídos de crenças, e cujos comportamentos são predominantemente dominados pela ação instintiva, de contexto limitadíssimo, sem que isso negue a possibilidade de algum aprendizado no mundo animal. Ainda assim, como o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, é dotado de poder criador que permite transmitir alguma inteligência aos animais, fazendo com que tenham comportamentos quase humanos, de um lado, quando sob a influência de um espírito santo; ou bestiais, de outro, quando a influência é de um espírito impuro, diabólico; tudo em decorrência de influência humana.

Contudo, em contrapartida, o entendimento de Dworkin sobre o que seja o mundo físico certamente não é uma unanimidade entre os próprios físicos, haja vista a divergência sobre a interpretação do mundo quântico, havendo a visão predominante de Copenhague, a proposta de Everett de que a observação cria a realidade e, assim, muitos mundos, ou multiverso, além da proposta realista de David Bohm, dentre outras.

A depender da posição filosófica, portanto, que implica a adoção de um postulado ou axioma fundamental segundo o qual o mundo físico é analisado, as afirmações sobre a realidade podem variar, pelo que falar em “estado real do mundo físico” é, de início, controverso, segundo a própria ciência física.

Por isso, é importante, em qualquer discussão científica ou filosófica, de plano, a determinação do ponto de partida, do postulado, ou axioma, da linha teórica que servirá de base para a argumentação subsequente, para que se permita o controle da coerência discursiva, que é o mínimo que se exige de uma proposta com pretensões científicas, como condição antecedente até mesmo para a possibilidade de experimentação empírica.

Desta feita, é mister deixar claro que adoto uma postura realista de mundo, entendendo haver uma realidade física subjacente, um contexto adequado e verdadeiro, uma objetividade na realidade que tem validade para todos os sujeitos, uma racionalidade que pode ser alcançada por qualquer um, independentemente da posição do observador, o que se aplica inclusive para as questões morais. Assim, sustento que existem fatos físicos, como também há fatos morais, podendo-se falar, consequentemente, em certo sentido, em partículas morais, ou morões, uma leitura que julgo coerente tanto com a física moderna quanto com os ensinamentos bíblicos, com o Cristianismo.

Vale dizer, nessa linha argumentativa, que nunca antes na história de nossa espécie o Cristianismo teve tanta sustentação científica, somente não chegando a essa conclusão aqueles que não querem enxergar a realidade. Tomemos como exemplo a seguinte passagem da Escritura:

Há um só Corpo e um só Espírito, assim como é uma só a esperança da vocação a que fostes chamados; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; há um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos, por meio de todos e em todos” (Ef 4, 4-6).

Para fins didáticos, diante da dificuldade da definição do que seja espírito, o que também vale para a ideia de energia, podemos equipar as respectivas noções, na conversão de conceitos religiosos e científicos, para entender simbolicamente que espírito é energia, e vice-versa, na medida em que o Espírito move o corpo e a energia tem relação com potencialidade do movimento.

Feita essa consideração, inicialmente, podemos citar a famosa equação de Einstein, E=mc², equiparando energia e matéria, pela conversibilidade entre elas, indicando, assim, desde já, a ideia de unidade entre corpo e espírito.

A unidade do corpo também pode ser encontrada no resultado da relatividade geral, relativa à curvatura do espaço-tempo, recentemente comprovada pela descoberta das ondas gravitacionais, demonstrando uma conexão material sutil entre todos os corpos, que entendemos como separados, pois integram o que pode ser chamado de um único tecido espaço-temporal. As ondas gravitacionais indicam que todo movimento corporal altera o material cósmico, mudando a tecitura do espaço-tempo, que é o corpo universal, mesmo que nossa tecnologia ainda não seja capaz de detectar senão as ondas de grandes movimentos gravitacionais, como as decorrentes da colisão das estrelas de nêutron que provavelmente criaram um buraco negro, quando anunciada a descoberta das referidas ondas pelo LIGO.

A detecção do bóson de Higgs, igualmente, aponta para a existência de um campo cósmico, o campo de Higgs, que interage com os demais campos quânticos provocando a resistência nestes campos, conformando a sensação material, a existência da própria matéria. Desta feita, a existência do mundo material em si é decorrente de um campo quântico, um campo de energia, que provoca a reação física que tem como resultado conferir massa, ou matéria, a todas as demais partículas.

Desse modo, segundo os dados mais atualizados das ciências físicas, tudo o que fazemos deixa uma marca no tecido cósmico, por mais que não possamos detectar esses rastos de nossos comportamentos, o que vale, igualmente, até para os pensamentos humanos, que provocam correntes elétricas no cérebro e, consequentemente, ondas eletromagnéticas que se propagam em todas as direções na velocidade da luz, além de causar ondas gravitacionais, as quais também modificam, ainda que sutilmente, atualmente de forma indetectável, o tecido cósmico. Os dados científicos indicam claramente que existe essa repercussão física de nossas ações, mínimas que sejam, isso sem falar na possibilidade concreta de também nossas atitudes causarem entrelaçamentos quânticos em cadeia, com efeitos ainda mais profundos na realidade física total, independentemente da distância espacial ou temporal entre a fonte da ação e o ponto onde seu efeito ocorrerá. Isso tudo sem falar na matéria escura e na energia escura, postuladas cientificamente sem que consigamos detectar experimentalmente sua existência.

É lógica e racionalmente possível, portanto, sustentar a existência de algo que seja caracterizado como partículas morais, entendidas como manifestação física da moralidade, que talvez estejam relacionadas a uma espécie de rede quântica entrelaçada, isto é, o entrelaçamento quântico de múltiplas partículas, ou um fluxo de entrelaçamento quântico, que permita definir a posição ou sentido desse fluxo em referência a determinados comportamentos, tendo em vista a relação do movimento de um corpo em comparação com os meios próximo e distante associados a esse corpo, pelo seu pertencimento consciente, porque a moralidade é dependente da consciência, tanto a campos físicos locais como não locais.

De todos esses dados e fatos obtidos a partir das descobertas da Física, destarte, é bastante razoável, e até mesmo provável, se adotada, por princípio, a existência de uma ordem cósmica, no plano físico, que existam partículas morais, ou morões, ou algo que possa ser qualificado como manifestação física da moralidade, passível de mensuração, mesmo que nossa tecnologia material não seja capaz de sua detecção.

Considerando a unidade existencial de todos os fenômenos, em termos físicos, o que é capaz de ser compreendido em termos espirituais, pela consciência, nossos comportamentos, incluídos os pensamentos, por menores que sejam, provocam uma espécie de atrito, ou interferência, que se propaga pelo cosmos, no mínimo como ondas gravitacionais e eletromagnéticas. Assim, se existe uma ordem que permitiu, ou melhor, determinou o desenvolvimento da Vida, essa ordem é sensível aos comportamentos que possam e efetivamente violam essa mesma ordem, aos comportamentos que resistem à evolução da Vida em si, e essa sensibilidade pode ser caracterizada como moralidade, como o juízo racional sobre a adequação e a bondade de uma ação segundo aquela ordem e o sentido do desenvolvimento da Vida.

Nessa linha de raciocínio, a moralidade está associada tanto à sensibilidade, isto é, a uma questão física de interação corporal, quanto à razão, à racionalidade, consciência ou entendimento da ordem cósmica, do contexto universal, e do sentido da evolução do movimento inteligente da matéria espaço-temporal, a Vida, desde o início dos tempos, que culmina na humanidade e segue, então, em direção ao Espírito, pela prospectiva evolutiva.

Segundo o texto bíblico: “Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom” (Gn 1, 31). Isso significa que o mundo físico é moralmente bom, que há uma harmonia, uma beleza e uma bondade no universo criado, na criação; permite concluir que há uma espécie de curvatura existencial positiva, inclusive em termos morais, em tudo o que existe, de modo que o universo reage moralmente aos comportamentos morais, sendo cabível, e lógico, falar em partículas morais, ou morões, que devem ser detectadas em algum momento de nossa evolução tecnológica. Essa medição já é possível atualmente, mas é dependente da subjetividade, da sensibilidade individual de pessoas especialmente conscientes, mas cujo compartilhamento objetivo ainda é dependente da mesma subjetividade, do convencimento pessoal, que ocorre, por exemplo, nos julgamentos inteligentes proferidos na atividade social, o que vale, inclusive, e especialmente, para o trabalho dos magistrados, mesmo que nem todos, talvez poucos, tenham consciência dessa realidade.

Daí porque devemos procurar a radiação moral, tanto a emanada e captada pelas pessoas como a que contagia o ambiente, o que pode ser feito, neste caso, em locais nos quais eventos importantes ocorreram, como em Jerusalém e seu entorno, pelos lugares onde Jesus passou, em que certamente foram deixadas marcas morais, radiação moral, de sua passagem pelo planeta. Talvez tenha sido isso que Jesus quis dizer quando falou: “Eu vos digo, se eles se calarem, as pedras gritarão” (Lc 19, 40).

Se há uma energia invisível, por exemplo, em Chernobyl, captada por aparelhos detectores de radiação, o mesmo pode ser válido para uma radiação moral, de qualidade distinta daquela que provoca danos à vida, e causa primariamente morte orgânica, podendo haver uma radiação moral tanto prejudicial como benéfica, que, no último caso, recupera o DNA, e auxilia a restauração do organismo vivo, o que é a explicação científica para os chamados milagres de Jesus. Se há uma radiação oculta que pode causar a morte instantânea ou diferida, deteriorando o organismo vivo e produzindo o desenvolvimento de câncer, como há uma força que causa danos psíquicos, é perfeitamente cabível entender existir também uma radiação física com sentido contrário, associada à energia criadora primordial, pela qual produzido o mundo criado, muito bom, que conserta a estrutura orgânica e restaura a Vida.

Ciência extraordinária

A ciência é extraordinária, não é algo comum, mas diferenciado; apesar de existir uma modalidade ordinária dessa atividade humana. Outrossim, podemos falar de dois tipos de ciência, a verdadeira Ciência, admirável, excepcional; e a habitual, ou vulgar.

A primeira é associada à inovação, à criatividade, à ação do Criador, referindo-se ao estudo do Logos, pelo qual tudo foi feito. Tem natureza filosófica, especulativa, artística. Essa Ciência é única, irreproduzível em laboratório, depende de situações e/ou pessoas únicas para seu desenvolvimento, tais como Jesus, Sócrates, Abraão, Moisés, Newton, Galileu, Einstein. O universo foi criado uma única vez, a vida teve início em condições e em um tempo especiais, sendo igualmente singulares os eventos fulcrais da história coletiva e individual, como o fim de um império, ou o nascimento e a morte de um ente querido.

Mesmo em sua unicidade, a ciência extraordinária investiga as relações primárias de causalidade, porque estuda o mundo das causas, a ontoteologia. Trata, ainda, do âmbito da epistemologia e estabelece as categorias fundamentais do conhecimento, os primeiros princípios, sendo a matéria objeto de estudo da Metafísica aristotélica, ou Teologia, ligando aqueles eventos únicos e os fatos da vida cotidiana a uma razão que lhes seja comum, em que pese a dificuldade e excentricidade dessa empreitada.

Já a versão ordinária abarca o mundo dos efeitos, das regularidades e dos limites das ações causais, proporcionando o desenvolvimento da tecnologia. Isso não significa que a versão mais elevada da ciência não aborde as questões permanentes, pelo contrário, uma vez que sua área de atuação é exatamente a eternidade, ou seja, aquilo que é uno e imutável, o permanente do fluir temporal e material, e é a partir dessa ideia que se extrai a regularidade comum da ciência ordinária.

A ciência extraordinária gera, portanto, a ordinária, a qual, por sua vez, está na origem da tecnologia. Quanto mais profunda a primeira, mais específica a segunda e mais eficiente a terceira.

A atividade cognitiva vulgar, por sua vez, divide-se nos ramos do conhecimento, proporcionando as especializações científicas. Suas inovações, via de regra, são restritas às áreas respectivas. Tais ramos trabalham no âmbito fenomenológico, com as categorias próprias das respectivas áreas do conhecimento, em que as relações significativas são limitadas.

Pode-se dizer que uma espécie volta seu olhar para o conhecimento futuro, para a razão latente ou nascente, enquanto a outra se dirige ao passado, que já foi descoberto e está manifesto, ao menos parcialmente, havendo, contudo, uma ligação íntima entre esses saberes, decorrente da unidade lógica que inevitavelmente abarca ambos, no presente, na eternidade que conecta permanentemente o antes e o depois.

Uma é a ciência da ideia geral, universal, em todos os seus momentos, que inclui a particular, em suas singularidades, enquanto a outra é a razão da contingência, passageira, da temporalidade em si.

A mais elevada especialidade da ciência particular, para ser realmente elevada, deve alcançar o nível extraordinário, e por isso o título de doutor é melhor definido como PhD, que significa “doutor em filosofia”, pois PhD é uma abreviação de “Philosophy Doctor”, decorre da expressão latina philosophiae doctor ou doctor philosophiae, que remete ao significado da palavra grega “filosofia’, amor ao conhecimento ou amor à sabedoria.

O conhecimento extraordinário transcende o plano meramente sensorial, está além do mundo passageiro, sendo associado à sabedora. É, outrossim, de natureza espiritual, na medida em que o espírito é a totalidade das relações, é a unidade que permanece, a despeito do constante devir. A ciência em questão, portanto, busca o entendimento da totalidade das relações entre os fenômenos, enquanto a ordinária já pressupõe algum nível de relação entre todos os fenômenos, o que é inerente à proposta científica, mas tem seu foco em algumas relações restritas.

As verdadeiras mudanças no entendimento ocorrem quando há modificação na concepção sobre a qualidade das relações totais, quanto à sua causalidade, e nas categorias mentais ou filosóficas adotadas para explicar racionalmente essas relações.

Nesse ponto, a filosofia grega foi o marco na adoção de uma determinada racionalidade para explicar todos os fenômenos do mundo. O Monoteísmo significou a submissão cósmica total a um único Princípio ou Inteligência, que, pelo Cristianismo, foi incorporado à racionalidade humana, ainda não alcançada em seu verdadeiro sentido.

Em outro plano, o trabalho de Newton se baseou na unidade entre a matéria celeste e a terrestre. A relatividade de einsteniana uniu matematicamente os conceitos de tempo e de espaço. Finalmente, a física quântica demonstrou uma integração entre o pensamento, e seus instrumentais, e a realidade observável.

A evolução científica, assim, culmina em uma cosmovisão que não foi compreendida sequer pela comunidade acadêmica, porque continua atrelada a uma visão ordinária de ciência, parcial, e majoritariamente materialista. Por isso estamos num interlúdio no avanço do conhecimento humano, que está se desenvolvendo apenas lateralmente, sem perceber seu sentido mais profundo, dependente da verdadeira Ciência, até que esta seja revelada, como de praxe, numa situação excepcional, que será um salto qualitativo, um salto quântico, no entendimento, em direção ao plano espiritual, que é o locus originário da ciência extraordinária. Como disse o apóstolo dos gentios:

O homem psíquico não aceita o que vem do Espírito de Deus. É loucura para ele; não pode compreender, pois isso deve ser julgado espiritualmente. O homem espiritual, ao contrário, julga a respeito de tudo e por ninguém é julgado” (1Cor 2, 14-15).

Outrossim, o mundo só é inteligível espiritualmente, porque é pelo espírito que os eventos do mundo são conectados racionalmente.

Nesse ponto, é importante dizer que a coerência intradisciplinar é obrigatória nas ciências particulares, de modo que uma mesma racionalidade possa ser usada indistintamente nos fenômenos observados nesses campos de observação.

A Filosofia, a Ciência autêntica, de seu lado, que tem como objeto imediato a linguagem, com sua coerência disciplinar própria, sua lógica, mas cujo referencial significativo é o conteúdo das ciências particulares, com a sua harmonia simbólica intradisciplinar, porque a linguagem filosófica adota os conceitos mais avançados das áreas específicas do conhecimento, desenvolve, ainda, a coerência interdisciplinar desses conceitos, sua significação mais própria em relação à completude dos fenômenos existenciais.

A Ciência, portanto, tem um aspecto epistemológico associado, necessariamente, a uma abordagem ontológica e existencial das coisas do mundo, conectando todos os significados possíveis da linguagem, de forma lógica e coerente, e por isso é absurda a unidade e racionalidade do universo conhecido, e extraordinária, e de tamanha extravagância, que a ciência materialista se viu obrigada a criar uma infinitude de outros universos, o multiverso, numa irracionalidade que chega ser ridícula, por rejeitar um postulado filosófico básico, a Navalha de Occam, apenas para não reconhecer a lógica extraordinária da Ciência, apenas para negar o Logos, com a moralidade e a normatividade que lhe são inerentes. Ainda assim, o conhecimento autêntico é acessível para os que se lhe abrirem seus corações:

A Sabedoria apregoa pelas ruas, nas praças levanta a voz: grita nas encruzilhadas, e nas portas da cidade anuncia: ‘Até quando, ingênuos, amareis a ingenuidade, e vós zombadores, vos empenhareis na zombaria; e vós, insensatos, odiareis o conhecimento? Convertei-vos à minha exortação: eis que vos derramarei o meu espírito e vos comunicarei minhas palavras’” (Pr 1, 20-23).

O Espírito da Lei

O presente texto decorre do início da leitura de “Do espírito das leis”. Ler um clássico também serve para fugir daquele conceito de obra clássica, entendida como aquela que todos citam e que ninguém lê. Assim, começada a leitura, já é possível fazer alguns comentários, com possibilidade de desenvolvimento de novos artigos após sua conclusão.

Inicialmente, é importante destacar a cosmovisão de Montesquieu, que principia o livro falando nas leis como “as relações necessárias que derivam da natureza das coisas” (Charles de Secondat, Baron de Montesquieu. Do espírito das leis. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo. Martin Claret, 2010, p. 21), porque entende haver leis para todos os seres.

Os que disseram que uma cega fatalidade produziu todos os efeitos que vemos no mundo disseram um grande absurdo: pois que maior absurdo há do que uma fatalidade cega que tivesse produzido seres inteligentes?” (Idem, p. 21).

O autor está falando aqui dos materialistas, correspondentes aos modernos ateus, para os quais não há uma causa última nos fenômenos do mundo, pois entendem que a ordem universal é efeito do movimento caótico dos átomos, pelo que a obra em questão deve ser situada dentro de um pensamento deísta, que era a posição intelectual geral daqueles que viveram no século XVIII. Nesse sentido, ele defende a existência de uma lei da natureza, “que, ao imprimir em nós mesmos a ideia de um Criador, nos leva a Ele, é a primeira das leis naturais pela importância, e não na ordem de suas leis” (Idem, p. 23); descrevendo em seguida quatro leis naturais: a paz, decorrente da fraqueza humana; a busca de alimento, para satisfação das necessidades da vida; a aproximação e continuidade dos membros da espécie, como terceira lei; a quarta, o desejo de viver em sociedade.

Em decorrência da vida em sociedade, com a perda do sentimento de fraqueza, começa, segundo Montesquieu, o estado de guerra, fazendo-se necessário o estabelecimento das leis entre os homens, as leis positivas, surgindo daí o Direito das Gentes, para a relação dos povos entre si; o Direito Político, para regular a atividade dos governantes e dos governados em sociedade; e o Direito Civil, para as relações entre os cidadãos. Dentro do contexto humanista iluminista em que estava inserido o autor, ele afirma que “a lei, em geral, é a razão humana”, que governa todos os povos, sendo que “as leis políticas e civis de cada nação devem ser apenas os casos particulares a que se aplica tal razão humana” (Idem, p. 26).

Montesquieu sustenta que as leis devem ser adequadas aos povos, às condições físicas do país, ao gênero de vida dos povos, à religião dos habitantes, aos costumes, aos comportamentos.

Enfim, tais leis mantêm relações entre si; estão relacionadas à sua origem, ao objetivo do legislador, à ordem das coisas sobre as quais foram estabelecidas. É segundo todas essas perspectivas que devem ser consideradas.

É o que tento fazer neste livro. Examinarei todas essas relações: elas formam juntas o que chamamos o ESPÍRITO DAS LEIS” (Idem, p. 26).

O espírito da lei, portanto, está vinculado à totalidade dos valores de uma sociedade, à visão geral de mundo em que foi produzida. É digno de nota, de outro lado, que Montesquieu, de plano, já faz uma distinção entre as leis da natureza e as leis positivas, ainda que se pudesse antever, pela sua própria quarta lei natural, o desejo de viver em sociedade, uma definição da própria natureza da vida humana em sociedade, com as respectivas leis que lhe são inerentes, à razão humana em si.

Se o desejo de viver em paz e em sociedade são leis naturais, é perfeitamente compreensível que haja uma configuração das leis dos homens que expressem a natureza da coisa humana, da humanidade enquanto tal, e tal é o Direito das Gentes, Político e Civil Cristão. De fato, os direitos humanos e a dignidade humana nada mais são do que essa Lei, estando relacionados à ordem das coisas sobre a qual foram estabelecidos, e tal ordem é a ordem de mundo Cristã, que vê o homem como templo do Espírito de Deus, imagem e semelhança de Deus, e daí a citada dignidade, que vale para todo ser humano. A religião e os costumes cristãos, portanto, estão na origem do Espírito da Lei atual, do constitucionalismo do século XXI.

Interessante notar que, ao se referir à educação entre os antigos, em contraposição à de seu tempo, Montesquieu fala de educações diferentes e contrárias: dos pais, dos mestres e do mundo; destacando o contraste entre “os compromissos da religião e do mundo; algo que os antigos não conheciam” (Idem, p. 52).

No vocabulário cristão, apostasia é o termo que pode ser usado para explicar essa divisão que os antigos não conheciam, que ocorre quando há separação entre a vida religiosa e a vida política, e entre a lei moral a lei política e civil, o que certamente aconteceu historicamente dentro do contexto da aliança de Deus com os homens para demonstrar que a vida religiosa, na cientificidade do conhecimento de Deus, do Logos ou razão plena, deve ser vivida à perfeição, para não ser contaminada pela idolatria pagã, pela irracionalidade das superstições do mundo. Neste último caso ocorre a corrupção do povo, quando a violação da lei não gera vergonha, quando a desonra do flagelo, a punição por um crime, deixa de existir, situação que se daria segundo a natureza do homem republicano, movido pela virtude, esta entendida como amor das leis de um país, pois para ele a maior parte do castigo é a infâmia de recebê-lo, porque significa censura pública pela falta de virtude cívica da pessoa.

Pode-se perceber pelo que já foi exposto até aqui que a ideia que nos resta de Montesquieu, da divisão do poder público entre os órgãos legislativo, executivo e judiciário, para ser devidamente entendida, exige uma coerência filosófica e moral inexistente nos dias atuais, tendo a moralidade religiosa e a virtude cívica, de amor às leis, sucumbido à ideologia partidária e ao materialismo.

A própria ideia de razão humana foi sequestrada pelos defensores do “maior absurdo que há”, dos que defendem “que uma fatalidade cega produziu seres inteligentes”, que são as mesmas pessoas que deturpam a dignidade humana para sustentar a legitimidade do aborto, ou que dizem que a união de pessoas do mesmo sexo pode ser chamada de casamento.

Tal é a situação tanto da Europa, das Nações Unidas, e mesmo das Américas, em que a dignidade humana foi subvertida em defesa do egoísmo individual secundado, por um lado, pelo materialismo ateu, e, por outro, pelo tribalismo nacionalista, em que a solidariedade foi ofuscada pelo medo do outro e as teorias da Política e do Direito perderam sua consistência e sua coerência, impedindo que executivo, legislativo e judiciário entendam e realizem o Espírito da Lei.

Conexão simbólica

Existe uma rede de significados que conecta todos os fenômenos, o que é um fato apenas para os que entendem haver cosmos, ao invés de caos, como fundamento último da realidade. Um símbolo aponta para outro, e outro, todos inseridos e conectados racionalmente em uma narrativa de mundo, pressupondo-se que esta seja dotada de racionalidade. Isso vale desde os movimentos mais básicos da natureza, nos campos quânticos e suas influências recíprocas, que condicionam as respectivas interações, dando-lhes sentido dentro dos experimentos científicos em que são estudados; até as reações químicas que ocorrem no cérebro enquanto experimentamos as emoções mais sublimes, ou não, cujas expressões comunicativas, por mais perfeitas que possam ser, não são adequadas para transmitir as realidades que representam, na profundidade do seu significado existencial.

A conexão simbólica, se adequadamente realizada, de todo modo, permite relacionar os símbolos mais sutis, e aparentemente sem significado, a uma narrativa de mundo, ou cosmovisão, dependendo da sensibilidade daquele que experimenta os símbolos, o que também é condicionado pela bagagem simbólica do observador ou intérprete, incluídas a lógica e a coerência interna entre os significados dessa narrativa.

A cosmovisão, por sua vez, é o mundo implícito em que vivemos, em que os significados básicos são presumidos, aceitos, e por isso algos não ditos. Problemas ocorrem, contudo, quando narrativas de mundo com valores opostos se misturam, de modo que determinados fenômenos passam a ter sentido dúbios, até opostos, dependendo da situação ou perspectiva de análise, se dentro de um ou outro sistema de pensamento.

Essa contradição é o pano de fundo para os conflitos que nossa civilização tem presenciado, decorrentes da divergência entre as narrativas religiosa e materialista que se sobrepõem na vida diária das pessoas, causando confusões e oposições de interesses. Para uma cosmovisão, o homem é fruto do acaso, da evolução cega e sem propósito da vida, e esse entendimento condiciona a interpretação geral dos fenômenos da vida, o mesmo valendo para a visão oposta, de natureza religiosa, segundo a qual a presença do homem no cosmos não é acidental, mas fruto da Providência, A Qual determina o significado mais profundo de tudo o que existe, pois há sentido na vida e na história.

A conjugação simbólica dos fenômenos do mundo é distinta para cada uma dessas cosmovisões, o que pode ser considerado desde as hipóteses mas amplas da cosmologia até a interpretação da realidade quântica, quanto ao sentido ou interpretação a ser dada aos fenômenos quânticos, o que vale igualmente para os comportamentos cotidianos das pessoas, dos animais e da natureza.

Segundo entendo, a cosmovisão materialista já foi derrotada pela Ciência, e essa visão é sustentada por diversos pensadores, como Hegel, Jung, Bohm, Amit Goswami, Stephen Meyer, dentre outros. São várias as razões para essa conclusão. Pela inexistência de átomos, que era o fundamento original do materialismo, uma vez que tais partículas sólidas indivisíveis não existem, pois a realidade não é feita de coisas separadas espacialmente, mas de campos energéticos que se interpenetram. Pela temporalidade do universo, porque, ao contrário do que sustentava o pensamento grego, o mundo físico não é eterno, indicando as evidências científicas, tal como pensado pela cosmovisão judaico-cristã, que houve um início das coisas, uma criação do mundo. Pela sintonia fina das constantes da natureza, sendo sua única saída racional (do materialismo) a invenção despudorada do multiverso. Pela assustadora complexidade da vida, cujo funcionamento não pode ser explicado de forma reducionista, das partes para o todo, mas, ao contrário, somente é compreensível do todo para as partes. Pela impossibilidade matemática de ter havido uma evolução cega em sem direção das espécies, por tentativa e erro. Pela singularidade da vida, proporcionada por condições únicas de nosso planeta no universo, incluída sua posição na galáxia, sua formação num tempo cósmico propício, com presença de elementos químicos pesados e com a abundância de carbono, sem falar na existência da lua, dando estabilidade ao movimento planetário, dos planetas gigantes, como Júpiter e Saturno, que nos protegem de astros com capacidade destruidora da vida, como no evento que dizimou os dinossauros.

Por esses e tantos outros argumentos, o que resta ao materialismo é a gritaria e a invencionice, como salientado, tirando da cartola hipóteses ad hoc para fugir da realidade e da conclusão óbvia dos dados científicos, que apontam para uma maravilhosa ordem cósmica, que permitiu o desenvolvimento da vida humana e sua inteligência, situação perfeitamente compatível com o ideário religioso monoteísta, antecipando em mais de dois mil anos os resultados da ciência moderna. É de se considerar o materialismo, destarte, uma cosmovisão antiquada e derrotada, ainda que esse fato não tenha chegado ao conhecimento do grande público, ou mesmo de grande parte da elite intelectual, que insiste em viver segundo os preconceitos científicos datados do século dezenove.

A cosmovisão Cristã, de outro lado, em certa medida, está igualmente presa à ideia de dois mundos, do Reino do outro mundo, associada, como o materialismo, a preconceitos gregos, ao platonismo que se infiltrou na gênese da doutrina Cristã, o que acaba permitindo que sejam ignorados os significados mais profundos da realidade, relativos à unidade material e espiritual do único mundo governado por Deus, especialmente no que toca à importância de todas as pessoas, todos animais, toda a vida do planeta, à interconexão entre tudo o que existe, preconceitos e ideias que, direta ou indiretamente, acarretam seja ignorada a necessidade de uma ordem de mundo verdadeira e plenamente Cristã, especialmente nas políticas nacionais e internacional, nos maiores e menores detalhes, integrando uma relação maior de significado para questões de relevo e, do mesmo modo, para os temas aparentemente menos importantes da vida cotidiana, pela conexão simbólica de tudo o que existe.

Um simples papel no chão, por exemplo, não é algo irrelevante, mas um sinal de desrespeito a normas básicas de educação, e o pior não está no simples papel, mas nas toneladas de dejetos sólidos, líquidos e gasosos eliminados pela população em qualquer lugar, até mesmo nas nossas fontes de água, e, do mesmo modo, destinados indevidamente pelas autoridades públicas, que têm a incumbência profissional de promover tanto a educação das pessoas quanto de um serviço de saneamento básico eficiente. Isso para não falar no descarte diário de seres humanos, por mortes que poderiam ser evitadas por um esforço coletivo de média intensidade.

Os símbolos que vemos por todo lado indicam uma incongruência generalizada no comportamento humano, uma irracionalidade disseminada tanto na vida privada e individual das pessoas como na gestão pública, no serviço que é prestado ignorando os valores mais elevados da comunidade, quando os interesse coletivo é preterido por questões pessoais, egoístas, meramente fugazes. Essa é a manifestação visível da ação do anticristo no mundo.

Daí a necessidade de coerência máxima, de racionalidade Cristã extrema, na preservação da vida, no amor a Deus e ao próximo, nos menores detalhes da atividade cotidiana. É preciso reaprender a viver, significando corretamente as coisas da vida, conforme a adequada racionalidade que rege o mundo, o Logos.

Para isso, e considerando que o amor ao próximo inclui a educação, para aperfeiçoamento dos indivíduos para seu próprio bem e também em benefício da coletividade, é fundamental que os erros nos comportamentos humanos sejam devidamente detectados, apontados para que possam ser corrigidos, por meio de uma educação firme, com dignidade, segundo o mandamento Cristão, conforme ditos milenares do judaísmo:

Quem ama a correção ama o saber; que detesta a correção torna-se imbecil” (Pr 12, 1).

Os conselhos dos injustos são armadilhas mortais, mas a boca dos retos salva do perigo” (Pr 12, 5).

Assim, é necessário significar devidamente o que é correção, o que é conselho reto, distinguindo do que é desvio, do que é conselho que desagrega da verdadeira Ciência, pelo que não se pode tolerar o erro sem a devida advertência, sob pena de a corrupção não ser contida, espalhar-se e tomar cada vez mais espaço na mente e na atividade da comunidade.

O significado do que seja corrupção, enfim, está associado à narrativa de mundo, à cosmovisão, que define o que é erro, pecado, crime, ilícito ou idolatria. Se o materialismo é uma narrativa de mundo falsa, equivocada, baseada em pressupostos que se mostraram inconsistentes, todo cuidado é pouco ao se significar os fenômenos do mundo, para que não sejam influenciados pelos erros de ideias equivocadas, que não podem produzir bons resultados para a vida humana. Igualmente é necessário revisar o significado religioso do mundo, para que os valores Cristãos sejam aplicados em sua forma mais correta e mais ampla, que possam proporcionar a plenitude da vida Cristã para toda a comunidade, devendo ser considerado que o acerto da cosmovisão Cristã em relação à ordem do mundo aponta para a necessidade de observância, igualmente, da moralidade Cristã.

Outrossim, é preciso combater tanto a idolatria materialista quanto a religiosa, porque a idolatria é a prática e a defesa da cosmovisão ou narrativa de mundo que contraria o culto e a adoração do Deus único, impedindo que Sua vontade seja realizada, e por isso a sociedade atual está polarizada, porque existem narrativas de mundo com valores opostos, tanto do lado materialista, que tenta a realização individual das pessoas no mundo sensível, ignorando a realidade espiritual subjacente ao mundo, negando a moralidade Cristã; como deve-se enfrentar as falhas do outro lado ideológico, que despreza a necessidade de uma solidariedade humanitária com todos; exigindo-se, enfim, o pleno cumprimento dos mandamentos Cristãos, de amor ao próximo, incluído o inimigo, para seu arrependimento e salvação, o que inclui a correção deste, com dignidade, no tratamento amoroso de pai para filho, com o rigor que a pedagogia exige, pois: “Quem poupa a vara odeia seu filho, aquele que o ama aplica a disciplina” (Pr 13, 24).

Portanto, somente a adoção integral da correta conexão simbólica permitirá a superação da cisão da humanidade.

Ninguém pode ser escravo de dois senhores. Ou odiará um e amará o outro, ou dedicar-se-á a um e desprezará o outro. Não podeis servir como escravos a Deus e ao dinheiro” (Mt 6, 24).