O Apocalipse e a Verdade

Continuando o tema do último artigo, “A Verdade ontológica”, faz-se oportuno, pelo tempo especial que vivemos, desvelar o conceito de “apocalipse”, que nada mais é do que a palavra grega para o termo “revelação”, pelo que o Apocalipse significa a revelação de uma Verdade sobre o Ser, sobre aquilo que é e ainda não se manifestou.

O Apocalipse mostra o movimento do Ser em seu devir, e é associado a uma concepção judaica de mundo, ou melhor, Monoteísta, segundo a qual O Altíssimo está no controle das atividades humanas, exercendo influência sobre e nos governos das nações, o que remete ao tempo dos antigos profetas de Israel, que tiveram visões antecipadas desse devir quanto a momentos decisivos da História humana.

Assim, estamos vivendo o Apocalipse desde séculos antes da vinda de Jesus, o Cristo, vinda essa que representa um momento crucial da História, e do sentido do Apocalipse, relativo ao (des)governo da humanidade, dos tempos primitivos até que toda nação se submeta ao Messias, ao Enviado do Altíssimo, por seu Caminho ou Método Científico, como exemplo de Conhecimento de Deus, do Logos, e exercício vivo dessa Razão ou Inteligência, como Verdade do Ser, notadamente nos planos científico e político, no governo das nações.

Entender o Apocalipse como um fim cinematográfico do mundo é um equívoco sem tamanho, ainda que haja um fim, um telos, na História, e os eventos que têm ocorrido e ainda sucederão, nos futuros próximo e longínquo, sejam efetivamente cinematográficos.

A interpretação do Apocalipse há que ser feita observando a profecia de Daniel, por orientação do próprio Messias (Mt 24, 15; Mc 13, 14), havendo inegáveis paralelos entre as passagens do livro de Daniel, e sua mentalidade israelita, e as do livro do Apocalipse que encerra a Bíblia Cristã.

No capítulo 2 do livro de Daniel é descrita a profecia da grande estátua, identificada em seus pormenores com os reinos humanos que se seguiriam ao de Nabucodonosor, até que “o Deus do céu suscitará um reino que jamais será destruído, um reino que jamais passará a outro povo” (Dn 2, 44).

Também no capítulo 7 é narrado o sonho das feras, os animais que representam “quatro reinos que surgirão na terra”, sendo o quarto animal com “dez chifres”, com surgimento de um outro chifre, “diante do qual três dos primeiros caíram, esse chifre que tinha olhos e uma boca que proferia palavras arrogantes, e cujo aspecto era mais majestoso que o dos outros chifres” (Dn 7, 20), explicado-se que os “dez chifres: são dez reis que surgirão desse reino, e outro se levantará depois deles; este será diferente dos primeiros e abaterá três reis; proferirá insultos contra o Altíssimo e porá à prova os santos do Altíssimo; ele tentará mudar os tempos e a Lei” (Dn 7, 24-25), após o que haverá um “tribunal” para tirar o poder desse rei, quando “o reino e o império e as grandezas dos reinos sob todos os céus serão entregues ao povo dos santos do Altíssimo. Seu império é um império eterno, e todos os impérios o servirão e lhe prestarão obediência” (Dn 7, 27).

Igualmente o capítulo 8 de Daniel narra a luta entre dois animais, correspondentes a dois reinos, enquanto o capítulo 11 descreve os conflitos entre um rei do norte e um rei do sul, de modo que as narrativas escatológicas e apocalípticas de Daniel estão diretamente ligadas a conflitos políticos, entre reinos humanos, que ocorrerão até que se levante Miguel, quando “os sábios resplandecerão, como o resplendor do firmamento; e os que ensinam a muitos a justiça hão de ser como as estrelas, por toda a eternidade” (Dn 12, 3).

Esse contexto apocalíptico e político está associado originariamente à nação de Israel, valendo dizer que a própria existência do Estado de Israel, hoje, com soberania sobre a terra santa, é o principal sinal profético cumprido desde a destruição de Jerusalém e a diáspora judaica, e após mais de dois mil anos de espera, demonstrando a posição especial do nosso tempo na História.

Essa é uma situação especialíssima, aguardada desde o século VII antes de Cristo, quando floresceu a atividade profética, em que está incluída a profecia apocalíptica.

O Estado de Israel cumpre uma importantíssima profecia messiânica, a restauração da realeza de Israel pela atividade do Messias, havendo inegável conexão ideológica entre o retorno do povo judeu à terra santa e a mentalidade cristã europeia e norte-americana do tempo do pós-guerra, resgatando o povo judeu e dando-lhe sua terra. Há, portanto, uma relação de causalidade entre o trabalho humano, profético e espiritual de Jesus, o Messias judeu, e o retorno da autonomia política de Israel. Também é inegável que esse fato é decorrência direta de questões políticas, que conduziram à guerra e à sua solução.

Voltando ao último livro do cânone Cristão, o Apocalipse, este começa com sua identificação como revelação (apocalipse) de Jesus Cristo, “o primeiro a ressuscitar dos mortos, o Chefe dos reis da terra” (Ap 1, 5), o que é uma posição religiosa, política e messiânica inigualável, escrevendo cartas a sete comunidades cristãs. O significado dessas sete igrejas é incerto, mas é muito interessante a leitura de sete tipos de comunidades cristãs ao longo do tempo, e que faríamos parte da igreja da Laodiceia, a sétima, que “não é quente nem fria”, mas morna, que está para ser vomitada, que se diz rica mas é “infeliz, pobre, cega e nu” (Ap 3, 17).

Em seguida é narrada a visão do livro e do cordeiro, que fez “um reino de sacerdotes; e eles reinarão sobre a terra” (Ap 5, 10). Se “reinarão sobre a terra” não tiver significação política, na terra…

O texto continua com a abertura dos sete selos, as sete trombetas e o derramamento das sete taças, com significados enigmáticos, narrando situações interconectadas do mundo humano e natural, valendo dizer que com a sétima trombeta a questão política se resolve definitivamente: “A realeza do mundo passou agora para nosso Senhor e seu Cristo, e ele reinará pelos séculos dos séculos” (Ap 11, 15).

Outra narrativa irrompe, então, descrevendo a mulher, a Igreja/Estado de Deus, que vai para o deserto, para fora da cidade/civilização, e “um grande Dragão, cor de fogo, com sete cabeças e dez chifres” (Ap 12, 3), mostrando-se inegável a ligação com o tema já tratado na profecia de Daniel, em que o dragão representa o poder político e os chifres os reinos ligados a esse poder. Tal descrição vale também para a Besta do capítulo 13, com “dez chifres e sete cabeças”, a qual recebeu uma boca “para proferir palavras insolentes e blasfêmias” (Ap 13, 5) contra Deus, repetindo o que já havia sido antecipado em Daniel, recebendo “autoridade sobre toda tribo, povo, língua e nação” (Ap 13, 7), simbologia inegavelmente política, com um domínio completo sobre a economia, “para que ninguém possa comprar ou vender se não tiver a marca, o nome da Besta ou o número do seu nome” (Ap 13, 17).

Depois de outras imagens enigmáticas, as sete taças são derramadas, sendo a sexta sobre o grande rio Eufrates, secando suas águas (Ap 16, 12), evento que está ocorrendo neste exato momento (há alguns anos), como uma simples pesquisa no Google pode comprovar.

Vale um parêntese, para reiterar a situação única que vivemos, nossa geração, que tem um planeta globalizado, a nação de Israel voltou ao centro do mundo político depois de vinte e cinco séculos, no final da segunda guerra a política humana fez descer fogo do céu sobre a terra (Ap 13, 13), bomba atômica, e o rio Eufrates está em período de seca sem comparação histórica.

Para não deixar dúvidas sobre a leitura política das imagens, “as sete cabeças são sete montes sobre os quais a mulher está sentada. São também sete reis, dos quais cinco já caíram, um existe e o outro ainda não veio, mas quando vier deverá permanecer por pouco tempo. (…) Os dez chifres que viste são dez reis que ainda não receberam um reino. Estes, porém, receberão autoridade como reis por uma hora apenas, juntamente com a Besta” (Ap 17, 9-12).

A destruição da civilização idolátrica, acabando com o domínio da Besta, causa desespero nos reis da terra, que “vão chorar e bater no peito” (Ap 18, 9), e nos comerciantes, que “também choram e ficam de luto” (Ap 18, 11), porque será encerrada tanto a dominação do homem pelo homem como a teologia do mercado, com seu consumismo irracional.

Tal evento ocorrerá quando estiver “a Besta reunida com os reis da terra e seus exércitos para guerrear contra o Cavaleiro e seu exército” (Ap 19, 19), o que não está claro como ocorrerá, sendo certo que a Besta será capturada com o falso profeta, significando a derrota da política humana irracional conduzida por uma teoria mentirosa, pela concepção científica e ideológica materialista e egocentrista que explora o homem e o leva à morte material e espiritual.

Com a derrocada da política mundana e da falsa ciência, serão estabelecidos tronos, e aos que neles se sentarem será dado poder de julgar (Ap 20, 4), que são os que dão testemunho de Jesus e da Palavra de Deus, que dão testemunho da Razão, do Logos, e governarão a humanidade de forma inteligente, com a verdadeira civilização Cristã, a cidade de Deus controlando as nações, por mil anos…

Para concluir, é importante dizer que o conceito de Verdade está associado a um movimento externo e um movimento interno.

Alguém, por exemplo, que quer ir de uma cidade A para uma cidade B, e põe-se em viagem, pode pensar que efetivamente se desloca do ponto A para o B, mas se estiver na estrada para C, distante do destino B, seu movimento externo não será verdadeiro, como não o será se disser que vai para C quando se dirige para B. Assim, o movimento somente será verdadeiro se a pessoa estiver no caminho de A para B e com a intenção e expressão conscientes de fazê-lo.

Tal ilustração vale para a História, porque existe um movimento cósmico, no qual surgiu a humanidade. Se a evolução é cega, não há sentido no futuro da humanidade, que um dia simplesmente acontecerá, sem a mínima previsibilidade. De outro lado, caso exista uma realidade subjacente, um sentido ontológico do Ser, a profecia é possível, no sentido de revelar, antecipadamente, um movimento que ainda se manifestará no tempo.

A leitura Cristã é a segunda proposta, entendendo haver um significado mais profundo nos fenômenos do mundo, e uma interconexão em tudo que ocorre, havendo, ainda, um destino para todo humano, uma futura ressurreição, como efeito de uma espécie de evolução. Nossa próxima fase evolutiva será em uma realidade mais sutil, em conexão física e espiritual, conscientemente, com Deus.

Pode-se entender, desse modo, que Jesus é a Verdade, porque dá testemunho desse movimento e seu destino ou resultado, sendo a ressurreição a prova dessa realidade, significando, em certo sentido, uma volta no tempo, um retorno de Cristo ressuscitado em um momento futuro, de uma eternidade que também é presente, ao tempo da humanidade corporal de seus seguidores, em que foi crucificado, para demonstrar a seus irmãos a verdadeira Verdade, dando-nos força e esperança, e interferindo na História pelo próprio evento da ressurreição, algo próximo à simbologia do filme “Interestelar”, para suportarmos as adversidades do mundo até que passemos por essa fase existencial, plantando as sementes das realidades vindouras, temporal e eterna, quando haverá a colheita, temporal e eterna, de nossas atividades culturais.

A Verdade ontológica

No último artigo, “O nascimento do tempo”, o tema da verdade foi abordado, ressaltando-se a origem etimológica da palavra, derivada do vocábulo grego “alethéia”, que é um termo privativo ou negativo, porque ‘a’ significa ‘sem’, e ‘lethe’ refere-se às águas do rio do esquecimento que há no mundo inferior, pelo que verdade, ou “alethéia”, tem o sentido de ausência de esquecimento.

O significado de verdade está ligado, portanto, ao entendimento sobre a autêntica origem das coisas, do mundo e da própria humanidade, à unidade inteligível que une o aqui e agora a qualquer começo que seja tomado como tal, como princípio existencial, como também seu destino. A Verdade é um tema ontológico, que não pode ser compreendido apenas em termos formais.

Ao contrário da cosmovisão científica predominante, outrossim, que tem uma aversão a temas ontológicos, contentando-se majoritariamente com o formalismo matemático, destituído de significado existencial, ou com aparências, como simples fenômenos, entendo que o conceito de Verdade não pode ser enfrentado senão ontologicamente, ou ontoteologicamente.

Depois da leitura do clássico de Karl Popper, “A lógica da pesquisa científica”, no qual é destacado o trabalho de Alfred Tarski, dediquei-me à leitura de “A concepção semântica da verdade: Textos clássicos de Tarski”, com cinco artigos sobre verdade, lógica e semântica científica, através do que, ainda que não tenha lido integralmente o artigo maior, e principal, porque referente a uma mera dedução lógico-formal, e para não abandonar a leitura simplesmente pulei as partes do texto em que há matemática com palavras no lugar de números, consegui compreender, mais uma vez, a origem e natureza do problema científico em relação à questão da verdade, que é de ordem filosófica, ou metafísica.

No artigo “Filosofia e matemática” (https://holonomia.com/2019/03/06/filosofia-e-matematica/) foi destacada a preeminência da Metafísica sobre a Matemática, o que já era o entendimento tanto de Platão como de Aristóteles, sendo que a divergência entre eles sobre a ordem das ciências estava no fato de que “o primeiro entendia que a hierarquia tinha a metafísica no topo das ciências, seguida pela matemática e depois pela física; enquanto o segundo ordenava o conhecimento partindo da metafísica, sucedida pela física, estando a matemática em terceiro lugar na importância científica”.

A questão da Verdade é, portanto, de natureza Metafísica, antecedendo a lógica formal, uma vez para esta é exigida a postulação prévia, a formulação dos axiomas, ou postulados, que são simplesmente aceitos, dos quais são derivadas as deduções lógicas, o que vale, igualmente, para os cálculos matemáticos.

Tarski, segundo a orelha do livro, “considerado, ao lado de Aristóteles, Frege e Gödel, um dos quatro maiores lógicos de todos os tempos”, destaca que, para evitar a existência de antinomias e contradições em uma linguagem formalizada:

devemos indicar todas as palavras que decidimos usar sem definição, e que são chamadas ‘termos não definidos (ou primitivos)’, e apresentar as chamadas regras de definição para introduzir termos definidos ou novos. Além disso, devemos estabelecer os critérios para distinguir, na classe de expressões, aquelas que denominamos ‘sentenças’. Finalmente, devemos formular as condições sob as quais uma sentença pode ser afirmada; em particular, devemos indicar todos os axiomas (ou sentenças primitivas), isto é, as sentenças que decidimos afirmar sem prova” (Alfred Tarski. A concepção semântica da verdade. Tradução Celso Braida … (et al.). Organização Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra. São Paulo: Editora UNESP, 2007, pp. 165-166).

Para refutar a acusação de que a concepção semântica da verdade envolve “elementos metafísicos”, uma heresia na ciência da primeira metade do século XX, sustenta que “metafísica” é uma noção vaga e equívoca, podendo indicar ontologia, oposição a empírico ou um método que não seja dedutivo ou empírico, e que não há vestígio metafísico em sua abordagem, “a não ser que alguns elementos metafísicos estejam envolvidos na linguagem-objeto à qual as noções semânticas se referem” (Idem, p. 191), o que poderia incluir seus axiomas ou termos primitivos, segundo parte dos críticos.

Enfim, depois de refutar a referida injúria filosófica profissional, salienta que:

em nenhuma interpretação do termo ‘metafísico’ que me é conhecida e mais ou menos inteligível, a semântica envolve qualquer elemento metafísico peculiar a si própria.

Gostaria de fazer uma observação final a respeito desse grupo de objeções. A história da ciência apresenta muitos casos de conceitos que foram considerados metafísicos (em um sentido vago do termo, mas, de qualquer maneira, depreciativo) antes que seu significado fosse tornado rigoroso. Contudo, tendo eles recebido uma definição formal rigorosa, a desconfiança acerca deles desapareceu” (Idem, pp. 192-193).

Sobre os argumentos metafísicos, o cientista intelectualmente honesto há que reconhecer, na linha do que afirmado por Tarski, que mesmo a base da ciência materialista é decorrente de ideias estritamente metafísicas, porque transcendem a capacidade empírica de demonstração, o que vale para a teoria da evolução, tanto hoje como quando formulada por Darwin, a psicologia de Freud e também as modernas concepções de teoria das cordas e multiverso, que estão enraizadas na mentalidade dos físicos, todos conceitos metafísicos, ou seja, especulações da atividade mental humana desenvolvendo raciocínios possíveis a partir de argumentos conhecidos, porque atualmente não existem condições tecnológicas para comprovar, por exemplo, a existência de outras dimensões espaciais ou outros universos.

Voltando a Tarski, em outro dos artigos, abordando a teoria axiomática baseada em linguagem formalizada, ele reconhece que:

as dúvidas com respeito à verdade dos teoremas não foram inteiramente eliminadas, mas ficaram reduzidas às possíveis dúvidas com respeito à verdade das poucas sentenças listadas como axiomas e quanto à infalibilidade das poucas e simples regras de demonstração” (Idem, p. 227).

Pode-se notar, enfim, uma dubiedade na argumentação de Tarski, porque ao mesmo tempo em que pretende se apegar a um sistema linguístico o máximo possível formalista, seguindo a tendência de sua época, contudo, por ser um grande lógico, tinha que reconhecer que não há, na natureza, sistemas isolados, pelo que todo sistema formal, em algum ponto, ainda que em seus limites, está aberto à totalidade do mundo natural e seus fenômenos ainda desconhecidos, com capacidade de influir em todas as áreas do conhecimento, e nos próprios sistemas formalizados, pelo que declara que mesmo os mais rigorosos significados científicos tiveram origem nas concepções da Metafísica.

Nesse ponto, portanto, é exatamente a Metafísica, ou Filosofia, que fundamenta as chamadas sentenças primitivas, os axiomas, que decidimos afirmar sem prova, os quais estão ligados às concepções fundamentais de mundo do cientista ou filósofo, dando sentido até mesmo à sua atividade intelectual.

Por isso, para concluir, é importante ressaltar, mais uma vez, que a existência de ordem é um axioma da atividade intelectual, um postulado, um ato de fé afirmado sem prova pelo pesquisador, sendo possível conceber metafisicamente duas possibilidades principais para a origem dessa ordem, que definem as duas cosmovisões básicas pelas quais o mundo pode ser compreendido: uma ateia e materialista que defende, continuando a linha dos atomistas primitivos, Demócrito e Leucipo, que a ordem é fruto do acaso, da pura sorte; e outra espiritualista e religiosa, que decorre tanto do pensamento de Platão e Aristóteles como da tradição judaico-cristã, sustentando a existência de uma ordem subjacente a todas as coisas, ligada à ideia de Bem ou ao Deus Monoteísta, como Sabedoria ou Logos.

Daí porque a ideia de Verdade é vinculada à mais radical ontologia, referente à origem metafísica ou filosófica da ordem do mundo, da inteligência que nos permite produzir conhecimento científico, sendo incomensuráveis, portanto, as noções de verdade segundo a filosofia materialista e as oriundas das ideias religiosas e espirituais, notadamente de origem Cristã.

Eis porque, enfim, o testemunho de Cristo Jesus é fundamental, uma vez que sua missão essencial é exatamente essa, dar testemunho da Verdade, segundo o Evangelho com maior carga teológica, e essa verdade é precisamente o reconhecimento de nossa origem e nosso destino, o não esquecimento dessa realidade espiritual da qual procedemos, do Logos que estava no princípio, que fez-se carne e habitou em nós, a partir do pastor da Galiléia, para nos mostrar o Pai.

Tu dizes que sou rei. Eu nasci para isso e para isso vim para o mundo, para dar testemunho da verdade. Todo aquele cujo ser é da verdade ouve a minha voz” (Jo 18, 37).

E também nosso testemunho é esse, que não pode ser dúbio, para não faltarmos com a Verdade, com a origem de nossa fé:

Ora, se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como podem alguns dentre vós dizer que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a vossa fé. Acontece mesmo que somos falsas testemunhas de Deus, pois atestamos contra Deus que ele ressuscitou a Cristo, quando de fato não ressuscitou, se é que os mortos não ressuscitam. Pois, se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, ilusória é a vossa fé; ainda estais nos vossos pecados. Por conseguinte, aqueles que adormeceram em Cristo estão perdidos. Se temos esperança em Cristo tão-somente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os homens. Mas não! Cristo ressuscitou dos mortos, primícias dos que adormeceram” (1Cor 15, 12-20).

A verdade da ressurreição aponta para a das profecias, da vinda do Reino, de modo que a tribulação que se inicia, com a pandemia que assola o mundo, à qual seguirá a crise econômica e social, talvez deva ser interpretada como sinal dos tempos antevistos pelos profetas do Altíssimo, para a necessária e esperada mudança da realidade humana, para o tempo de Justiça e Paz tão aguardados, e de Verdade!

O nascimento do tempo

O tempo é um elemento ou uma categoria fundamental para o conhecimento. É a própria Vida, se corretamente compreendido.

No pensamento de Kant o tempo é o elemento comum que permite a conexão entre as categorias a priori do conhecimento e as relações sensíveis do mundo exterior, porque organizamos nossos processos mentais sequencialmente, tanto no tempo como condição categorial de apreensão fenomênica quanto na arrumação cognitiva dos sentidos percebidos em nossa interação com o mundo.

A questão do tempo já foi abordada no artigo “A velocidade do tempo” (https://holonomia.com/2017/05/01/a-velocidade-do-tempo/comment-page-1/), em que se sustentou que a relatividade é uma teoria incompleta, “pois se fosse a palavra final em termos físicos Einstein não teria passado as últimas décadas de sua vida tentando compatibilizá-la com a física quântica, no que não logrou êxito”.

Certamente a relatividade é insuficiente porque é a teoria limite do assim chamado materialismo, refere-se ao mundo dos sentidos locais ao mundo do toque e da causalidade material, nela não estando incluído o Espírito, ou Inteligência, que é pressuposto e condição de existência da própria teoria.

Ilya Prigogine também não se satisfez com o tempo ilusão da física, tendo apresentado uma nova proposta de análise da natureza a partir dos fenômenos irreversíveis:

Aristóteles diz que o tempo é o estudo do movimento, mas – acrescenta – na perspectiva do antes e do depois. Mas a partir de que é dada esta perspectiva do antes e do depois? Aristóteles não dá uma resposta: afirma que talvez seja a alma que efectua a operação do contar.

Einstein retoma a mesma pergunta: onde está o tempo? Talvez da física? E responde que não. Numa conversa com Carnap diz textualmente: “O tempo não está na física”.

Se escolho o ponto de vista da física, o tempo, enquanto irreversibilidade, é ilusão e portanto não pode ser objecto de ciência. Sob este ponto, curiosamente, Einstein vai ao encontro quer de Bergson quer de Heidegger: Bergson defende que o tempo não pode ser objecto de ciência, porque é demasiado complexo para a ciência.

Então, porque penso, inversamente, que estamos a entrar num período de reorganização conceptual da física? Porque hoje vemos fenómenos irreversíveis na natureza e compreendemos o papel construtivo destes fenômenos irreversíveis. Vemos formarem-se estruturas, vemos como algumas regiões do espaço estão organizadas pela irreversibilidade” (Ilya Prigogine. O nascimento do tempo. Tradução Marcelina Amaral. Lisboa: Edições 70, 2018, p. 18).

Já Agostinho, antecipando Einstein, entendia que o tempo surgiu com o espaço na criação, concebendo um mundo criado com o tempo, sendo o próprio tempo uma criatura de Deus, ao contrário da visão grega aristotélica, que entendia que o universo fosse eterno.

De todo modo, é válida a concepção de Aristóteles segundo a qual o tempo é o número do movimento segundo o antes e o depois, de modo que o tempo é sempre relativo a algum movimento, alguma coisa, ou fenômeno, determinado transcendentalmente a essa coisa, além de seus limites, que, portanto, são definidos a partir de fora desse movimento, coisa ou fenômeno.

O tempo de vida de uma pessoa é determinado entre o momento de seu nascimento, que marca a temporalidade anterior, e de sua morte, que encerra aquele movimento corporal da pessoa.

Se o indivíduo humano fosse apenas matéria, sua preocupação estaria limitada ao seu tempo de vida corporal, e aí assistiria razão a Heidegger ao sustentar que o homem é um ente voltado para a morte. Essa é uma possibilidade especulativa, mas não a única.

Para os que entendem que somos mais do que nossos corpos perecíveis, há outro tempo existencial, outra espécie de movimento à qual estamos vinculados por pertencermos também, e principalmente, ao Espírito.

Nessa perspectiva, podemos entender que possuímos o tempo da própria criação, ainda que não nos apercebamos disso, porque esquecemos a Verdade. Vale dizer que a palavra “verdade” tem origem no termo grego “alethéia”.

A palavra grega que designa verdade é alethéia, que é um termo privativo, negativo. Ele é uma palavra composta: a significando ‘sem’, e lethe, referindo-se às águas do esquecimento que há no mundo ínfero. Letes é um rio de cujas águas a alma do falecido bebe enquanto deixa a existência terrena e adentra o Hades. Enquanto a alma bebe das águas do Letes, ela esquece a vida anterior.

Isso também transpira no outro extremo do ciclo do nascimento e da morte, do modo como o demonstrou Platão no ‘Mito de Er’ no final da Repúbica. As almas que estão prestes a nascer são requisitadas para beber das águas do Letes a fim de esquecer sua antiga existência celeste, quando entram neste mundo e numa nova encarnação. Essa é uma doutrina órfica que foi adotada por Platão” (Edward F. Edinger. A Psique na Antiguidade: livro um: Filosofia Grega Antiga: de Tales a Plotino. Org. Deborah A. Wesley. Tradução Alípio Correia de Franca Neto e Sandra Maria Franca. São Paulo: Cultrix, 2000, p. 57).

Não precisamos adotar a perspectiva reencarnacionista para compreendermos que possuímos uma existência que transcende nosso corpo físico, porque somos o próprio cosmos manifestando uma consciência, o que permite utilizar a noção grega de verdade, alethéia, como ausência de esquecimento, sem que seja necessário postular que a alma reencarne.

David Bohm desenvolve a ideia de consciência em termos de ordem implicada (A Ordem Implicada – https://holonomia.com/2017/05/22/a-ordem-implicada/), devendo aquela ser compreendida com a realidade como um todo, em uma proposta filosófica que supera o dualismo cartesiano, o qual afirmava haver no mundo a substância pensante distinta da substância extensa, postulando Bohm:

uma nova noção de totalidade indivisível, na qual a consciência deixaria de ser fundamentalmente separada da matéria.

Vamos agora considerar qual a justificativa que existe para a noção de que a matéria e a consciência apresentam a ordem implicada em comum. Primeiro, notamos que a matéria, no geral, é, à primeira vista, o objeto da nossa consciência. Entretanto, como já vimos neste capítulo, várias energias, tais como a luz, o som, etc., estão continuamente envolvendo informações que a princípio se relacionam com todo o Universo da matéria em cada região do espaço. Por meio dese processo, tais informações acabam entrando nos nossos órgãos do sentido, passando pelo sistema nervoso e chegando até nosso cérebro. De modo mais profundo, toda a matéria inclusa em nossos corpos, desde o início, envolve o Universo de algum modo. Será essa estrutura envolvida, de informação e matéria (no cérebro e no sistema nervoso), aquela que primeiramente penetra a consciência?” (David Bohm. Totalidade e a ordem implicada. Tradução Teodoro Lorente. São Paulo: Madras, 2008, p. 203).

A pergunta que encerra a citação tem natureza especulativa, pois não possuímos capacidade tecnológica, por ora, de respondê-la, mas a proposta é sustentada segundo as mais avançadas conclusões da Física do século XX.

De todo modo, a questão da verdade como totalidade esquecida pode ser compreendida, pois à medida que investigamos o mundo material, formando nossa individualidade e nos relacionando com as coisas do mundo externo, à qual ficamos apegados, não conseguimos nos recordar da unidade existencial a que pertencemos, o que é corroborado pela psicologia infantil, ao sustentar que a formação do complexo do ego, pelo qual o indivíduo se relaciona psicologicamente com o mundo, é iniciada nos primeiros meses de vida da criança, porque nos primeiros momentos de vida vivemos uma espécie de unidade inconsciente com o mundo, tal como sugerido por Bohm.

Da perspectiva teológica, de outro lado, caso consideremos pertencer ao Espírito, que está fora do tempo, devemos rever a posição Cristã que somente compreende nossa continuidade existencial para o futuro, para depois da morte, quando a lógica teológica permite nos posicionar existencialmente já na mente de Deus, em seu Espírito, ainda que como potência, antes da criação do mundo. Deve ser ressaltado, entretanto, que na perspectiva aristotélica o infinito não existe em potência, apenas em ato, e que, no tempo, o ato pode ser anterior à potência, pelo que é cabível afirmar nossa existência em ato antes da formação do mundo.

Deus é sempre ato, e é Espírito, e como fomos criados recebendo parte do Espírito de Deus, essa parte é ato desde a formação do tempo, do mundo, pelo que temos um nascimento anterior ao de nossos corpos. Tendo consciência dessa realidade, Jesus pôde dizer, “antes de Abraão ter existido, eu sou” (Jo 8, 58).

Em outra passagem, Jesus nos coloca no princípio, com ele: “Também vós testemunhareis, porque desde o princípio estais comigo” (Jo 15, 27). Vale citar a nota de Frederico Lourenço ao citado versículo:

15, 27 ‘desde o princípio estais comigo’: para João, princípio (arkhê) designa habitualmente o início primordial da Criação. O presente ‘estais’ (esté) corresponde ao verbo ‘ser’ em grego, pelo que uma tradução mesmo literal daria ‘desde o princípio sois comigo’” (Novo Testamento: os quatro Evangelhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 391).

Portanto, da perspectiva Cristã, nosso tempo nasce com criação, e depois, em outro nível, quando encarnamos, quando tomamos forma em um corpo material; e continuamos a existir após a morte, espiritualmente em ato, e materialmente em potência, até que essa uma nova existência material se transforme em um novo corpo, em uma nova criação. “Com efeito, vou criar novos céus e nova terra” (Is 65, 17). “Vi, então, um novo céu e uma nova terra” (Ap 21, 1).

Volto então, ao título do artigo, inspirado no livro com os textos de Ilya Prigogine, relacionando com essa nova criação. Nossa ciência não tem meios de prevê-la, sendo matéria especulativa, mas dentro da visão de Prigogine vivemos em um universo dinâmico, um sistema de não-equilíbrio, regido pela termodinâmica, com fenômenos irreversíveis, sendo possível uma nova criação temporal:

Aqui, ao contrário, um novo nascimento se torna possível, se as condições que permitiram a primeira instabilidade (Big Bang) puderem reproduzir-se. Qual é a densidade de matéria compatível com esta instabilidade? É um cálculo que os meus colaboradores e eu estamos a tentar efectuar: trata-se, provavelmente, de um tempo muito longo, 100 mil milhões de anos. Também podemos imaginar a história do universo como a de uma reacção química explosiva cujos produtos de eliminação impeçam a sua continuação, até ao momento em que forem eliminados e, por isso, uma nova explosão se torna possível.

Reparem que a instabilidade, as flutuações e a irreversibilidade desempenham um papel a todos os níveis da natureza, química, ecológica, climatológica, biológica com a formação de biomoléculas, e finalmente cosmológica” (Ilya Prigogine. O nascimento do tempo. Tradução Marcelina Amaral. Lisboa: Edições 70, 2018, pp. 54-55).

Aplicadas essas ideias ao contexto escatológico Cristão, vale lembrar que o Apocalipse descreve o tempo de mudanças por que passamos, inicialmente em termos de crise social, ecológica e política, até seja estabelecida a era messiânica; vivemos o tempo de tribulação, de instabilidade, que antecede um novo nível de equilíbrio, superior, quando haverá a reorganização conceptual da física, defendida por Prigogine, que inclui uma nova noção de temporalidade, inclusive humana, questões de tamanha complexidade que não podem ser antecipados na posição material humana, somente são conhecidas pelo próprio Deus, o Pai, o criador do tempo.

Naqueles dias, porém, depois daquela tribulação, o sol escurecerá, a lua não dará a sua claridade, as estrelas estarão caindo do céu, e os poderes que estão nos céus serão abalados. E verão o Filho do Homem vindo entre nuvens com grande poder e glória. Então Ele enviará os anjos e reunirá seus eleitos, dos quatro ventos, da extremidade da terra à extremidade do céu.

Aprendei, pois, a parábola da figueira. Quando o seu ramo se torna tenro e as folhas começam a brotar, sabeis que o verão está próximo. Da mesma forma, também vós, quando virdes essas coisas acontecendo, sabeis que Ele está próximo, às portas. Em verdade vos digo que esta geração não passará até que tudo isso aconteça. Passarão o céu e a terra. Minhas palavras, porém não passarão. Daquele dia e da hora, ninguém sabe, nem os anjos no céu, nem o Filho, somente o Pai” (Mc 13, 24-37).