A ressurreição como sanção

O mundo jurídico e o Direito, de um modo geral, são baseados na ideia de normas, de regras de comportamento, estabelecendo condutas permitidas, proibidas e obrigatórias. Essa moldura do comportamento, o que se deve ou não fazer, é o que se denomina regra primária, que dirige a ação humana imediata.

Todavia, como não existe uma adesão completa e total às normas, o que é natural, resultado do livre-arbítrio e da liberdade, não é incomum ocorrer a violação à norma estabelecida, atraindo a aplicação de uma regra secundária, que é a sanção pelo comportamento desviante.

Essa é a perspectiva positivista, em que a norma é aquela estabelecida pelo Estado, de modo que é uma expressão formal do poder político. Daí, a sanção ser entendida como uma punição, uma resposta estatal ao comportamento desviante, não havendo verdade ou realidade natural na sanção, apenas sua formalidade jurídica.

Atualmente é possível falar em sanção premial, quando a norma pretende estimular um determinado comportamento, porque benéfico para a sociedade, de modo que aquele que cumpre a norma, notadamente a que exige um maior esforço para seu atendimento, recebe algum tipo de benefício, como o desconto pelo pagamento antecipado de um tributo, por exemplo.

De uma perspectiva jusnaturalista, o Direito é a declaração de uma relação com o mundo real, regido por leis naturais. Há critérios objetivos justiça.

“A lei, ou para nossos fins, o texto da lei, tem como função declarar o justo ou o devido. Ou seja, seu significado é uma regra ou norma, e sua designação é uma relação: ‘a justiça consiste em uma relação’. A justiça é uma relação entre pessoas, mediada por atos, os atos devidos. (…)

Deste modo, a regra jurídica, como medida, tem seu caráter objetivo garantido por sua referência a uma realidade – uma relação entre as pessoas. Essa referência é mediada pela significação. O critério da ‘boa interpretação’ é a captação da realidade comunicada pela função significativa do texto normativo. A regra só funciona se medir algo para além dela. Uma interpretação que se identifique com a lei faz com que a lei seja autorreferente, perdendo seu caráter de medida e, portanto, sua razão de lei” (Luis Fernando Barzotto. Filosofia do direito: os conceitos fundamentais e a tradição jusnaturalista. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, pp. 133-134)

O autor citado adota uma filosofia realista, no sentido de que os enunciados se referem ao mundo real, há uma relação entre a asserção e um estado de coisas do mundo. Há objetividade, sendo objetivo o que é determinado pelo objeto; em contraposição à subjetividade, em que o subjetivo é determinado pelo sujeito.

A teoria realista referendada pelo autor sustenta que a objetividade da lei e a racionalidade da atividade são dadas pela referência à realidade, porque “o que dá objetividade a uma medida é a própria realidade” (Idem, p. 133).

Sobre a finalidade das leis, ainda que possam existir objetivos como arrecadação, segurança, crescimento econômico, sustenta o autor que, na tradição clássica, “o sentido, a finalidade última da lei é promover a coexistência”, o que era chamado de amizade na filosofia de Aristóteles (Idem, p. 145).

Para além do mundo grego, havia a ideia de lei do povo hebreu, em que as normas eram dadas por Deus, e se referia ao conteúdo da aliança, com o objetivo de promover a amizade entre Deus e a humanidade.

“As dez palavras, que constituem a torá, a Lei, são expressões da aliança, de tal modo que a Lei nada mais é do que a tradução prática da aliança. (…)

Como ensino, a torá é antes a manifestação de uma verdade do que uma imposição de um preceito. A verdade, na tradição clássica, é o fundamento do bem” (Idem, pp. 147-148).

Jesus Cristo, o Messias judeu, pleno cumpridor da Lei, não por acaso declarou ser a Verdade, porque havia uma correspondência entre suas ações e o cumprimento da aliança, sendo que por ele foi formada a nova aliança, que alcançou toda a humanidade, superando a aliança estrita anterior com os filhos de Israel.

Barzotto alega que, para o jusnaturalismo, o ser humano possui uma natureza que lhe é própria, e isso está de acordo com a realidade.

Transpondo para a visão hebraica, de Jesus, essa natureza e essa realidade incluem um momento futuro de existência, representado pela ressurreição. Assim, a Lei, a Torá, não é apenas uma lei humana, mas o comando divino para a vida boa, para a boa ressurreição, para o Bem e para a Verdade.

A norma primária sendo bem cumprida levará a uma ressurreição de vida, caso contrário, será um julgamento. O cumprimento da norma e sua violação acarretam uma sanção. Em qualquer caso, pois, haverá sanção, que poderá ser premial ou punitiva.

Não vos admireis com isto: vem a hora em que todos os que repousam nos sepulcros ouvirão a sua voz e sairão; os que tiverem feito o bem, para uma ressurreição de vida; os que tiverem praticado o mal, para uma ressurreição de julgamento. Por mim mesmo, nada posso fazer: eu julgo segundo o que ouço, e meu julgamento é justo, porque não procuro a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou” (Jo 5, 28-30).

A ressurreição, assim, é uma consequência natural da vida humana, faz parte da natureza humana, da realidade futura, de justos e injustos. Não é algo meramente subjetivo, ligado à pessoa individual de Jesus, mas à própria Verdade, ao Bem último destinado por Deus a todos nós.

E tenho em Deus a esperança, que também eles acalentam, de que há de acontecer a ressurreição, tanto de justos como de injustos” (At 24, 15).

O apóstolo Paulo deixa bem claro que o fato da realidade chamado ressurreição é fundamental para a crença cristã, pois sem este fato a fé de Cristo não existe.

Pois, se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, ilusória é a vossa fé; ainda estais nos vossos pecados. Por conseguinte, aqueles que adormeceram em Cristo estão perdidos. Se temos esperança em Cristo tão-somente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os homens. Mas não! Cristo ressuscitou dos mortos, primícias dos que adormeceram” (1 Cor 15, 16-20).

Se a ressurreição é um fato da realidade, deve orientar a elaboração da lei, declarando o justo e o injusto, tendo como parâmetro a Torá, na interpretação do Messias, Jesus. Indispensável que tal fato seja considerado na objetividade normativa, que é vinculada à subjetividade de Jesus.

A ressurreição de Jesus, em si, já é uma medida da verdade de suas palavras, que as torna vinculadas à realidade, dão-lhe objetividade.

Não apenas Jesus é medida da ressurreição, mas todas as pessoas, o que decorre do próprio mandamento dado por Cristo, de amar a Deus e ao próximo, porque se a justiça é uma relação entre pessoas, mediada por atos, os atos devidos, o critério da ressurreição de vida ou de julgamento decorre das relações que temos com os outros, com os atos devidos ou indevidos praticados a favor e contra nossos irmãos, decorre de como viemos nossa coexistência humana.

A boa interpretação do Cristianismo é, portanto, também uma interpretação jurídica, inclui a exigência que ele submeta todo Principado, toda Autoridade, todo Poder, político, jurídico, social e religioso.

Pois é preciso que ele reine, até que tenha posto todos os seus inimigos debaixo dos seus pés. O último inimigo a ser destruído será a Morte, pois ele tudo colocou debaixo dos pés dele. Mas, quando ele disser: ‘Tudo está submetido’, evidentemente excluir-se-á aquele que tudo lhe submeteu. E, quando todas as coisas lhe tiverem sido submetidas, então o próprio Filho se submeterá àquele que tudo lhe submeteu, para que Deus seja tudo em todos” (1Cor 15, 25-28).

A ressurreição, pois, é uma necessidade jurídica e filosófica, amparada na realidade segundo a qual tudo pertence a Deus, por isso Ele deve ser tudo em todos, com boa ou má sanção, a depender da relação que tivemos com Ele e nossos irmãos.