Política como Teologia – parte III

Aproveitando o domingo de ramos, que significa a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, é possível continuar o tema dos artigos anteriores, na medida em que tal passagem bíblica tem inegáveis conotações políticas, quando o povo aclamou Jesus, cantando: “Bendito o que vem em nome de Iahweh!” (Sl 118, 26); enquanto ele entrava na cidade montado em um jumento, significando que trazia mensagem de paz.

Desse momento de glória, Jesus passou, na semana que se seguiu, pela paixão e, então, pela ressurreição.

É sempre importante dizer que, sem a ressurreição, a Páscoa continuaria sendo uma festividade apenas judaica, eminentemente política, significando a libertação daquele povo específico da escravidão do império egípcio, o maior poder político e militar daquele tempo. Acerca da historicidade de tal fato, recomendo “Exodus Rediscovered: Documentary” (https://www.youtube.com/watch?v=bk4CLwL9BQs), que, a partir da arquelogia egípcia, defende a plena compatibilidade da referida narrativa bíblica com fatos históricos já conhecidos da ciência atual, referentes àquele da humanidade.

Urge que o Cristianismo volte a interpretar a Páscoa em seu contexto verdadeiro, dentro da narrativa bílica, não mais apenas a libertação política do povo escolhido, mas algo de proporções muito maiores, de natureza cósmica, o momento em que a própria morte foi vencida, juntamente com os poderes malignos que ainda exercem influência no mundo, e que estão na iminência de serem derrotados.

Toda a Bíblia narra a história da humanidade, do momento de sua criação, a queda, até a redenção promovida por Jesus, cuja ressurreição inicia a nova criação, que se consumará nos novos céus e terra, descritos tanto nas profecias veterotestamentárias, como Isaías e Jeremias, assim também no livro do Apocalipse. Esse contexto essencial da Escritura não pode ser esquecido, sob pena de desvio da interpretação dos textos sagrados, prejudicando o entendimento sobre o significado de nossa vida e dos nossos afazeres, menos e mais importantes.

Nesse ponto, como desenvolvido nos artigos anteriores, a questão Política é essencial no contexto judaico-cristão, haja vista que Jesus é o Messias Judeu, o Rei de Israel, aquele através do qual as nações adorarão ao Deus único, Iahweh. A história bíblica passa da queda de Adão, ao chamado de Abraão, para ser pai de muitas nações, os eventos envolvendo os seus filhos Ismael e Isaac, e depois Jacó, que passou a ser chamado Israel, gerando Judá, Moisés, Davi e Salomão, culminando em Jesus, que reconduziu a humanidade para Deus, reunindo a partir de si todas as nações, cumprindo as promessas feitas a Abraão.

Tal, contudo, é um longo processo que hoje conta com quase quatro mil anos, contados do tempo de Abraão. Portanto, existe um desenvolvimento ideológico e político em curso durante esse vasto período de tempo, tanto aquele que antecede a vinda do Messias como após sua manifestação, até a consumação de sua obra.

No último período, a ideia política se dissociou da teológica, provavelmente para o desenvolvimento pleno das capacidades humanas, segundo os propósitos de Deus para a criação.

“Lembremo-nos dos níveis nos quais o espírito europeu dos últimos quatro séculos se movimentou, e das diferentes esferas espirituais nas quais ele encontrou o centro da sua existência humana. São quatro grandes passos simples, seculares. Eles correspondem aos quatro séculos e vão do teológico ao metafísico, daí ao humanitário-moral e, finalmente, ao econômico. (…) Nos passados quatro séculos da história europeia, a vida espiritual teve quatro centro diferentes, e o pensamento da elite activa que formava a respectiva tropa avançada movia-se, nos diferentes séculos, em torno de diferentes pontos centrais” (Carl Schmitt. O conceito do político. Tradução Alexandre Franco de Sá. Lisboa: Edições 70, 2019, pp. 142-143).

Tal passagem se encontra num texto com o nome “A Era das Neutralizações e das Despolitizações”, descrevendo a mudança nas convicções e argumentos, de natureza espiritual, utilizados pelas elites, afirmando, depois do período teológico, o pensamento sistematicamente científico, metafísico ou natural, o que foi seguido por uma filosofia deísta no século XVIII, quando formados os “conceitos fundamentais da moral e da teoria do Estado”, até chegar mundo econômico e da industrialização do século XIX.

“Certamente, o progresso técnico torna-se, já no século XIX, tão espantoso, e as situações sociais e econômicas transformam-se, em consequência disso, tão rapidamente, que todos os problemas morais, políticos, sociais e econômicos são apanhados pela realidade deste desenvolvimento técnico. Debaixo da tremenda sugestão de sempre novas e surpreendentes invenções e realizações, surge uma religião do progresso técnico para a qual todos os outros problemas se resolvem por si mesmos precisamente através do progresso técnico. Para as grandes massas das terras industrializadas esta crença era evidente e óbvia. Elas saltaram por cima de todos os níveis intermediários que são característicos do pensamento das elites liderantes, e nelas emerge logo, a partir da crença nos milagres e no além, sem elo intermédio, uma religião do milagre técnico, das realizações humanas e da dominação da natureza. Uma religiosidade mágica para uma igualmente mágica tecnicidade. Assim, o século XX aparece, no seu começo, como a era não apenas da técnica, mas também de uma crença religiosa na técnica” (Idem, pp. 145-146).

Essa religiosidade da técnica, cada vez mais afastada de Deus, é a persistência do exercício dos poderes do mundo que Jesus derrotou, mas continuam hoje com grande influência planetária, preparando exatamente o campo da última batalha, naquela guerra que já vencida pelo Enviado de Deus.

Ideias têm consequências, pelo que as realizações de Jesus produzem efeitos de longo prazo, ainda que não seja fácil para a maioria compreender como, neste mundo desordenado, existe um governo justo em ação, sendo importante ressaltar, nesse ponto, que a própria noção de justiça e o entendimento de vivemos um tempo de injustiça mostram a força do trabalho de Cristo, isto é, que nenhum outro ser humano expressou ideia melhor sobre governo humano, sobre o exercício do poder e sobre a ideia de Justiça. A inafastabilidade da dignidade humana e dos direitos humanos é a prova cabal da vitória de Cristo sobre os poderes do mundo, restando apenas serem corretamente aplicados tais conceitos na governança das nações, segundo a doutrina messiânica.

“Jesus chega a Jerusalém e não vê mais o Templo como lugar onde o céu se relaciona com a terra, mas como lugar onde Mamom e a violência reinam sem limites, em cumplicidade com o governo de César” (N. T. Wright. Como Deus se tornou rei. Tradução Elissamai Bauleo. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2019, p. 219).

Os poderes espirituais que exerciam influência sobre Caifás, Pilatos e César ainda estão em ação no mundo, o dinheiro e a violência ainda reinam, mas isso não diminui a vitória de Jesus sobre eles, na medida em que é necessário o cumprimento das profecias, é indispensável que o projeto de Deus se realize em sua totalidade, para que seja visível e concluída a ação de seu Messias, o que ocorrerá quando passarmos a segui-lo no plano político internacional, porque não há dúvida em qualquer argumento racional no sentido de que a dignidade humana e os direitos humanos são axiologicamente superiores ao dinheiro e à violência.

Tal desenvolvimento pode ser claramente extraído tanto das visões proféticas de Daniel como no livro do Apocalipse, que retoma e reorganiza as profecias veterotestamentárias, agora sob a perspectiva da entronização de Jesus como mandatário de Deus, nos céus e na Terra, depois de cumprida sua missão salvadora.

No capítulo 12 do livro da Revelação é descrita a mulher que dá à luz ao filho que governará as nações, simbolizando a vitória do Messias sobre a bestialidade que domina os poderes humanos.

Ela deu à luz um filho, um varão, que irá reger todas as nações com um cetro de ferro. Seu filho, porém, foi arrebatado para junto de Deus e de seu trono, e a Mulher fugiu para o deserto, onde Deus lhe havia preparado um lugar em que fosse alimentada por mil duzentos e sessenta dias. Houve então uma batalha no céu: Miguel e seus Anjos guerrearam contra o Dragão. O Dragão batalhou, juntamente com seus Anjos, mas foi derrotado, e não se encontrou mais um lugar para eles no céu” (Ap 12, 5-8).

A mulher é Israel, a nação eleita, e o filho varão é o Messias, Jesus, arrebatado para junto de Deus e seu trono, ficando a mulher, agora a comunidade Cristã, no deserto, ou seja, fora cidade, sem acesso ao governo político, esperando o desenvolvimento dos efeitos da guerra no céu já vendida pelos anjos de Deus. Na teoria política e teológica, e no céu, não mais há lugar para a venalização humana ou para a violência política, a guerra já foi vencida.

Enquanto isso, na terra, na realidade dos fatos temporais, as nações ainda são dominadas pela Besta, que, em nome do Dragão, exerce a influência dos poderes espirituais sobre a humanidade, por meio daquela crença religiosa na técnica, a religião do progresso técnico descrita por Carl Schmitt.

Ela opera grandes maravilhas: até mesmo a de fazer descer fogo do céu sobre a terra, à vista dos homens. Graças às maravilhas que lhe foi concedido realizar em presença da Besta, ela seduz os habitantes da terra, incitando-os a fazerem uma imagem em honra da Besta que tinha sido ferida pela espada, mas voltou à vida. Foi-lhe dado até mesmo infundir espírito à imagem da Besta, de modo que a imagem pudesse falar e fazer com que morressem todos os que não adorassem a imagem da Besta. Faz também com que todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e escravos recebam uma marca na mão direita ou na fronte, para que ninguém possa comprar ou vender se não tiver a marca, o nome da Besta ou o número do seu nome. Aqui é preciso discernimento! Quem é inteligente calcule o número da Besta, pois é um número de homem: seu número é 666!” (Ap 13, 13-18).

Temos, pois tanto os milagres técnicos produzidos pela Besta, o fogo que faz descer do céu sobre a terra, à vista dos homens, as bombas atômicas explodindo sobre Hiroshima e Nagasaki, como o controle econômico sobre as nações e a população mundial, estabelecendo quem pode comprar ou vender.

A Política, pois, nada mais é do que a expressão moderna da Teologia.

Política como Teologia – parte II

Por acaso não consiste nisto o jejum que escolhi: em romper os grilhões da iniquidade, em soltar as ataduras do jugo e pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar todo o jugo? Não consiste em repartires o teu pão com o faminto, em recolheres em tua casa os pobres desabrigados, em vestires aquele que vês nu e em não te esconderes daquele que é tua carne? Se fizeres isto, a tua luz romperá como a aurora, a cura das tuas feridas se operará rapidamente, a tua justiça irá à tua frente e a glória de Iahweh irá à tua retaguarda” (Is 58, 6-8).

Para expressar a realidade da Política como Teologia, o texto acima, do livro de Isaías, é bem esclarecedor, principalmente neste tempo de quaresma, em que o jejum é uma prática comum dos cristãos, especialmente os católicos, porque o profeta, falando em nome de Deus, já muito antes de Cristo, coloca na atividade do jejum temas que são políticos e jurídicos: romper os grilhões da iniquidade, pôr em liberdade os oprimidos, despedaçar todo o jugo, repartir o teu pão com o faminto; em que a questão da justiça social, tema político, é tratado como coisa religiosa, integrante da relação mais próxima da humanidade com Deus.

Retoma-se, pois, ao entendimento da Teologia ou Filosofia como teoria e modo de vida da unidade do conhecimento racional, o que inclui tanto a coerência das ideias como destas com o agir social, e da dificuldade dos teóricos modernos em pensar a partir dessa perspectiva unitária.

Encerrada a leitura de “O Conceito do Político”, de Carl Schmitt, percebe-se que, como ele mesmo havia afirmado em “Teologia Política”, em que afirma que qualquer mudança profunda nessa esfera de conhecimento passa pela superação do dogma, seu trabalho ainda está inserido numa ideia de separação, não tendo logrado êxito em conceber a expressão do político como teológico fora do dualismo mental em que inserido, ainda que seu texto aponte para tal reunificação.

Depois de afirmar que a unidade política pressupõe a possibilidade real do inimigo e que não pode haver um “Estado” mundial, assevera que a “unidade política, segundo a sua essência, não poder ser universal, no sentido de uma unidade que abarque toda a humanidade e a Terra inteira” (Carl Schmitt. O conceito do político. Tradução Alexandre Franco de Sá. Lisboa: Edições 70, 2019, pp. 96-97), quando não haveria nem política nem Estado, apenas economia, moral, direito, arte, etc.. E continua:

“A humanidade, enquanto tal, não pode fazer qualquer guerra, pois ela não tem qualquer inimigo, pelo menos não neste planeta. O conceito de humanidade exclui o conceito de inimigo, pois também o inimigo não deixa de ser homem e nele não se encontra nenhuma diferenciação específica” (Idem, p. 98).

Contudo, reconhece que em nome da humanidade são feitas guerras, com uso desse conceito universal como um instrumento ideológico das expansões imperialistas, e que o confisco de tal palavra acarreta consequências, como “a terrível reivindicação de que ao inimigo é recusada a qualidade de homem” (Idem, p. 99).

Schmitt remete o conceito humanitário para doutrinas do direito natural e afirma que tal é uma construção ideal universal, que abrange todos os homens da Terra, em que o agrupamento amigo-inimigo se torna impossível. Ao concluir o capítulo sobre esse tópico, ele afirma que um “Estado mundial” não será político, pois abarcará a Terra inteira, em unidade econômica.

“Se ela (a humanidade) quisesse formar, para além disso, também ainda uma unidade cultural, mundividencial ou alguma outra ‘mais elevada’, mas simultaneamente, ainda assim, uma unidade incondicionalmente apolítica, ela seria uma corporação consumidora e produtiva que procura, entre as polaridades de ética e economia, um ponto de indiferença. Ela não conheceria nem Estado nem Reich nem Império, nem República nem Monarquia, nem Aristocracia nem Democracia, nem protecção nem obediência, mas teria perdido de todo qualquer caráter político.

Mas a questão que se coloca é a de a que homens cabeira o poder temível que está ligado a uma centralização econômica e técnica que abranja a Terra inteira. Esta questão de modo nenhum pode ser contornada ao esperar-se que tudo passe a ‘ir por si mesmo’, que as coisas ‘se administrassem a si mesmas’, e que um governo de homens sobre homens se tornasse supérfluo porque os homens seriam, então, absolutamente ‘livres’; pois pergunta-se precisamente para que é que se tornam livres. A isso pode responder-se com suposições optimistas e pessimistas que, em última análise, remontam todas a uma profissão de fé antropológica” (Idem, pp. 104-105).

Volta-se, assim, ao conceito de humano, à sua concepção ontológica, pois a profissão de fé antropológica não pode deixar de ser também uma profissão de fé teológica, sobre a natureza humana, e nesse ponto a limitação dogmática da Teologia de Schmitt o impede de compreender que as respostas às suas perguntas já foram dadas por Cristo e seus seguidores.

Não é que a Política não mais existirá, mas que voltará a não mais haver distinção entre ela e Teologia, porque de Teocracia se tratará, uma nunca antes praticada, que se aproveitará de todo aparato científico e tecnológico produzido pela humanidade, para que sejam utilizados os poderes humanos a serviço do Logos, do Deus criador de todas as coisas, de modo que os homens que exercerão esse poder serão os servos e santos do Altíssimo, os reis e sacerdotes de Cristo, por meio da técnica, do método, o Caminho, que é o próprio Cristo. Continuarão a existir Estados e nações, bem como o caráter político, mas vinculado a uma concepção simultaneamente teológica e antropológica, além de ética e econômica.

Entra aí a leitura evangélica de Thomas Wright, restaurando para o Cristianismo o entendimento judaico sobre o futuro da humanidade e sua governança, na medida em que Jesus Cristo, como o Rei dos Judeus, necessariamente se insere no cumprimento das profecias do antigo Israel, segundo as quais, um dia, “as nações seriam convocadas a jurar lealdade a alguém maior do que Davi, isto é, ao Filho de Davi” (N. T. Wright. Como Deus se tornou rei. Tradução Elissamai Bauleo. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2019, p. 152). Após o Iluminismo, que separou Igreja e Estado, a história genuína pode ressurgir, de modo que a atual geração tem condições de fazer a correta leitura judaica e política dos evangelhos, nos quais Jesus é declarado o Messias. “É chegado o tempo de reler os evangelhos como ‘teologia política’ – não porque não dizem respeito a Deus, à espiritualidade, ao novo nascimento, à santidade etc., mas, precisamente, porque dizem respeito a isso tudo” (Idem, p. 155).

Na base desse entendimento está, de fato, uma profissão de fé antropológica, encontrada nos textos bíblicos, que restou prejudicada em Schmitt em razão de sua Teologia, estritamente vinculada ao dogma, e pela mentalidade dos últimos séculos.

Para além de uma discussão rasteira entre evolucionismo e criacionismo, a narrativa bíblica descreve a criação do homem à imagem e semelhança de Deus, o desvio que impediu que a humanidade atingisse sua plena potencialidade, a partir do pecado ou erro de Adão, e a consumação dessa plenitude existencial em Jesus de Nazaré, o qual reconduziu a criatura para o seu correto desenvolvimento, que culminará na nova criação, nos novos céus e nova Terra.

“A própria nova criação começou, os apóstolos diziam, e será completada. Jesus está governando sobre essa nova criação, tornando-a uma realidade por meio do testemunho da igreja. ‘O governante deste mundo’ foi derrotado; os poderes deste mundo foram postos por último na procissão triunfal de Jesus como um exército derrotado, maltrapilho. E é assim que Deus está se tornando rei na terra como no céu. Essa é a verdade que os evangelhos estão ávidos por nos contar, verdade que, nos últimos duzentos anos, as culturas europeia e americana têm tentado abafar desesperadamente” (Idem, p. 178).

Para o Cristão, Jesus ressuscitou, isso é um pressuposto definidor do Cristianismo.

Ora, se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como podem alguns dentre vós dizer que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a vossa fé. Acontece mesmo que somos falsas testemunhas de Deus, pois atestamos contra Deus que ele ressuscitou a Cristo, quando de fato não ressuscitou, se é que os mortos não ressuscitam. Pois, se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, ilusória é a vossa fé; ainda estais nos vossos pecados. Por conseguinte, aqueles que adormeceram em Cristo estão perdidos. Se temos esperança em Cristo tão-somente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os homens. Mas não! Cristo ressuscitou dos mortos, primícias dos que adormeceram. Com efeito, visto que a morte veio por um homem, também por um homem vem a ressurreição dos mortos. Pois, assim como todos morrem em Adão, em Cristo todos receberão a vida. Cada um, porém, em sua ordem: como primícias, Cristo; depois, aqueles que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda. A seguir haverá o fim, quando ele entregar o reino a Deus Pai, depois de ter destruído todo Principado, toda Autoridade, todo Poder. Pois é preciso que ele reine, até que tenha posto todos os seus inimigos debaixo dos seus pés. O último inimigo a ser destruído será a Morte, pois ele tudo colocou debaixo dos pés dele” (1Cor 15, 12-27).

Esta passagem destaca tanto a antropologia, como a política e mesmo a física, porque deixa claro que a ressurreição foi um evento físico, corporal, real.

É curioso como hoje se fala em criogenia, conservação de corpos e memórias, para resgatar uma vida, em energia atômica, em avanços tecnológicos vários, alguns esperando até uma nova vida em novo corpo, tudo feito por mãos humanas, mas se esquece que a condição existencial do Cristianismo é o evento da maior magnitude já ocorrido, a ressurreição, sem a qual não haveria motivo para os apóstolos enfrentarem as autoridades judaicas e romanas, e a morte, depois a crucificação de Jesus. É ilógico que eles passassem por isso se não tivessem a certeza da superação da morte por Jesus, pela ressurreição, que significa o princípio material da nova criação, da qual todos participaremos.

Para além disso, há uma clara ideia antropológica ligada à pessoa de Jesus, a plena realização da imagem e semelhança de Deus na humanidade, nele Jesus, sendo evidente o teor político do Evangelho, tanto no que diz respeito à missão do Cristo, como o Rei dos Judeus, o que tem uma conotação inequivocamente política, como pela necessidade de que ele reine, até que tenha posto todos os seus inimigos debaixo dos seus pés.

Então Jesus tem inimigos, de modo que a proposta de Carl Schmitt não é de todo equivocada, porque os inimigos de Jesus são exatamente aqueles principados, autoridades e potestades que exercem o governo da humanidade, uma realidade espiritual que encarna em pessoas concretas, dominando as nações, pelo que os inimigos não são propriamente as nações ou seus membros, mas aquelas realidades espirituais com suas ideias e ações que se manifestam nas nações, em seus governos de todos os níveis, opondo-se à governança de Deus na Terra, opondo-se ao verdadeiro serviço público e à realização da justiça (que é sempre social).

Fundamental, portanto, a análise teológica da questão política, e que seja levado solenemente a sério o trabalho de Tom Wright, lembrando que no “judaísmo, o Deus criador desejava que o mundo fosse ordenado e governado por aqueles que criou segundo a suam imagem” (Idem, p. 188), imagem esta que restou consolidada na pessoa de Jesus, o santo do Altíssimo por excelência.

Quanto aos quatro grandes animais, quatro reis surgirão da terra. Mas os santos do Altíssimo receberão o reino e o possuirão para todo o sempre” (Dn 7, 17-18).

“Já está claro. Como de costume em ‘literatura apocalíptica’, os elementos da visão são simbólicos e precisam ser decodificados. Os monstros representam impérios humanos, mas ‘um semelhante ao filho do homem’ representa Israel, ou pelo menos os justos em Israel. Há muito eles sofrem sob o governo dos monstros, porém serão resgatados – não apenas resgatados, mas colocados em posição de soberania sobre o mundo” (Idem, pp. 205-206).

A referência a Schmitt é novamente clara, quanto à questão da humanidade, do filho do homem, e dos monstros, que se opõem aos justos de Israel, dos inimigos que não são homens, pelo que estão presentes, indissoluvelmente, conceitos antropológicos, teológicos e políticos na narrativa bíblica.

Vi, então, tronos, e aos que neles se sentaram foi dado poder de julgar. Vi, também, as vidas daqueles que foram decapitados por causa do Testemunho de Jesus e da Palavra de Deus, e dos que não tinham adorado a Besta, nem sua imagem, e nem recebido a marca sobre a fronte ou na mão, eles voltaram à vida e reinaram com Cristo durante mil anos” (Ap 20, 4).

Portanto, respondendo às indagações de Carl Scmitt sobre “a que homens cabeira o poder temível que está ligado a uma centralização econômica e técnica que abranja a Terra inteira”, são os alter cristos, os outros Cristos, os santos do Altíssimo, que, de fato, realizam a verdadeira imagem e semelhança de Deus, são os verdadeiros humanos, no seu melhor conceito, não se submetem à Besta, e quanto à questão “para que é que se tornam livres”, a reposta é exatamente para serem servos do Altíssimo.

Pois aquele que era escravo quando chamado no Senhor, é um liberto do Senhor. Da mesma forma, aquele que era livre quando foi chamado, é um escravo de Cristo” (1Cor 7, 22), para romper os grilhões da iniquidade, soltar as ataduras do jugo, pôr em liberdade os oprimidos, despedaçar todo o jugo e repartir o pão com o faminto, manifestando, assim, a justiça e a Glória de Deus.

Política como Teologia

Enquanto a formação jurídica desenvolve alguns conceitos políticos e normativos, a religiosa trata de temas teológicos e espirituais, sempre, no tempo contemporâneo, separando as referidas esferas de entendimento do mundo e de ação sobre este, o que é o resultado de uma interferência tida como maléfica, do período anterior, quanto aos âmbitos terreno e espiritual.

Todavia, do ponto de vista filosófico, considerada a Filosofia como teoria e modo de vida da unidade do conhecimento racional, o que inclui tanto a coerência das ideias como destas com o agir social, referida separação afronta a unidade da inteligência, padecendo de uma irracionalidade fundamental, cuja compreensão somente pôde ser melhor alcançada com o aparato epistemológico oriundo da física moderna e da psicologia profunda, que apontam para uma unidade entre observador e observado, entre ideia e ação.

Na medida em que a unidade teórica da razão foi rompida em termos estruturais, em que conceitos científicos, religiosos, jurídicos, políticos, teológicos etc. estão em esferas distintas da abordagem intelectual, a Filosofia acabou se transformando em outra coisa, em uma nova disciplina, menor, insuficiente para os fins a que se destina.

Da perspectiva aristotélica, que expressa o modo de pensar geral do mundo antigo, a Filosofia é indistinta da Teologia, porque considera em conjunto as coisas e tudo o que existe desde os primeiros princípios, desde de sua origem mais remota e primordial intelectualmente concebível, que tem o lugar de deus no respectivo sistema de pensamento, e pode ser tanto o caos ou acaso, não-deus, como o próprio Deus criador (ou deuses, da perspectiva politeísta), sejam quais forem suas respectivas qualidades ou atributos.

Na busca da superação de tal dualidade, considerei forçosa uma ressignificação do que seja o Cristianismo, em sua essência, tanto filosófica como científica e religiosa, o que torna necessária a pesquisa impossível de toda a produção intelectual humana ocidental que trata dos temas referidos, tanto na análise da filosofia política como teológica, e nunca abandonando as descobertas técnicas da chamada pesquisa acadêmica.

A conclusão atual de meu trabalho investigativo leva a uma refutação da Teologia Política de Agostinho, em sua ideia de separação das cidades de Deus e dos homens e de sua escatologia, ainda que tal pensamento tenha sido plenamente justificável pela sua posição histórica intermediária, entre a revelação da encarnação e sua compreensão científica.

A expressão “Teologia Política”, por sua vez, remete às ideias do século XX, a Carl Schmitt, à sua ligação com o nacional-socialismo alemão, à reação das nações a este movimento religioso, o que culminou na restauração política do povo judeu, no Estado de Israel, fato que cumpre importantíssimas profecias messiânicas contidas em Isaías 52 e Ezequiel 37, e na declaração universal dos direitos humanos.

A questão dos direitos humanos é, hoje, exatamente o tema em que convergem as abordagens tanto da Política como da Teologia, sendo certo que a atual concepção da primeira tenta, de todo modo, afastar a última do debate, fundando-se exatamente naquela divisão estrutural das esferas do conhecimento antes mencionada.

Nesse ponto, iniciada a leitura de “O Conceito do Político”, já é possível antever, salvo uma correção interpretativa decorrente da análise do restante da obra, o que considero uma falha categorial do pensamento de Schmitt, ao estabelecer como a diferenciação essencialmente política aquela tida entre amigo e inimigo.

“O inimigo político não precisa ser moralmente mau, não precisa ser esteticamente feio; não tem de surgir como concorrente econômico e até talvez possa parecer vantajoso fazer negócios com ele. Ele é, precisamente, o outro, o estrangeiro, e é suficiente, para a sua essência, que ele seja existencialmente, num sentido particularmente intensivo, algo outro e estrangeiro, de tal modo que, em caso extremo, sejam possíveis conflitos com ele que não possam ser decididos nem por uma normatização geral, que possa ser encontrada previamente, nem pela sentença de um terceiro ‘não participante’ e, portanto, ‘apartidário’” (Carl Schmitt. O conceito do político. Tradução Alexandre Franco de Sá. Lisboa: Edições 70, 2019, pp. 51-52).

O ambiente político é, antes de tudo, a área em que o humano se mostra em seus extremos, de modo que a diferenciação política essencial, ao contrário do que o referido autor sustenta, ocorre entre as categorias humano e bestial, faces manifestadas no conflito político máximo, a guerra, de modo que, então, secundariamente, as distinções amigo e inimigo poderiam surgir, mas já com uma normatização capaz de solucionar os conflitos, os direitos humanos. A disputa principal não é entre o amigo e o inimigo, mas entre Cristo e a besta, entre uma concepção plena de humanidade, que inclui sua natureza espiritual, e aquela que nega a existência do Espírito e altera as concepções do corpo, categorias em que temas políticos e teológicos estão indissoluvelmente interligados, referentes à própria existência humana e seu significado último, do que são exemplos a discussão sobre os direitos humanos, o aborto e mesmo a gestão humana sobre o planeta. As categorias amigo e inimigo, portanto, são de um pensamento de certo modo pré-cristão, anterior à formatação dos direitos humanos como fundamento das relações internacionais e ao estabelecimento, por Cristo, do Reino da fraternidade, exercendo a soberania de Deus sobre toda a Terra, de modo que o inimigo é, de fato, o opositor da humanidade e sua melhor expressão.

A controvérsia sobre o sentido da dignidade humana é, atualmente, o locus da disputa teórica da Política, a qual resta sequestrada por sua separação absoluta da Teologia, e que mesmo assim usa uma narrativa, em última análise, teológica, naquela acepção aristotélica, para fundamentar suas decisões, porque remete o plano humano para o estritamente corporal e material, já adotando, assim, uma posição filosófico-teológica segundo a qual é possível e necessária tal separação, dado que questões espirituais não podem e não devem ser admitidas no debate político. A dignidade humana fica restrita, nessa análise, ao corpo da pessoa e à vontade do indivíduo, à sua visão quase solipsista de mundo, em que não existe uma natureza das coisas, a não ser aquela dada pelo próprio indivíduo, o qual assume o controle da criação, dispensando qualquer ideia sobre o Criador.

De outro lado, mesmo a Teologia concorda com tal afastamento, como resultado de uma concepção do Cristianismo assentada no mundo ocidental cristão, que, contraditoriamente, nega as próprias bases teóricas e teológicas da mensagem do Cristo.

O significado do que é o ser humano, do que é a dignidade humana, depende de uma visão filosófica desse ente, dessa realidade existencial, de sua história, de sua origem última, e das respectivas concepções sobre o bom, o belo, o útil, o justo etc., sem as quais aquela expressão, dignidade humana, resta vazia e sem conteúdo, e pode ser relativizada ou manipulada. Não há como afastar a Política, portanto, dos fundamentos da própria existência humana, do que se entende por racionalidade humana, e sua aplicação às relações sociais.

Nessa linha, vinda de direção contrária, indispensável a revisão da Teologia, sendo altamente adequada a visão de Thomas Wright, exposta em seu “Como Deus se tornou Rei”. Tal obra é exatamente no sentido de reunificar o que, do ponto de vista de Cristo e seus seguidores, nunca foi e nunca será apartado, Teologia e Política.

Wright destaca quatro visões acadêmicas mais comuns sobre o trabalho de “pregar o evangelho” e Jesus: “um revolucionário, esperando derrotar os romanos por meio de violência militar e estabelecer um novo Estado judaico; um visionário apocalíptico, esperando o fim do mundo; um mestre gentio de razoabilidade dócil, cuja ênfase estava na paternidade de Deus e na fraternidade do ‘ser humano’; ou talvez uma combinação de todas essas opções” (N. T. Wright. Como Deus se tornou rei. Tradução Elissamai Bauleo. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2019, p. 45).

O autor destaca que dos três primeiros resulta um Jesus iludido, porque não matou os romanos, o “fim do mundo” não veio e a maioria de seus discípulos são tudo, menos amáveis e razoáveis.

Trazendo tais pontos para a Política, todavia, temos inequívoco que os romanos caíram, que o novo Estado judeu foi estabelecido e a obrigação de sermos fraternos e razoáveis é decorrente de uma leitura mais ou menos óbvia da declaração universal dos direitos humanos: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. Tenho que todos esses efeitos resultam diretamente, ainda que com alguma postergação temporal, do trabalho messiânico de Jesus, cujo alcance é muito maior do que a filosofia dos últimos séculos costuma aceitar.

Outrossim, voltando a Wright, o objetivo de seu livro é mostrar que a história narrada pelos Evangelhos serve para explicar como os acontecimentos envolvendo “a vida, a morte, a ressurreição e a ascensão de Jesus” dizem respeito ao reino vindouro de Deus, estabelecendo o autor que, se “nosso desejo é nos apegar à grande tradição, devemos estar preparados para levar os evangelhos mais a sério” (Idem, p. 51).

Quanto à tradição, aproveitando o gancho para fazer um parêntese, e dando ênfase à questão da coerência filosófica, é possível dizer que podemos compreender maravilhosamente bem uma teoria hermenêutica moderníssima como a de Gadamer, mas na medida em que a própria tradição, que está no centro do trabalho filosófico de Gadamer, carrega consigo falhas interpretativas de elevada magnitude, acabamos entendendo muito pouco sobre a realidade intelectual, nossa interpretação mais elaborada do mundo resta fadada a repetir equívocos de toda ordem.

Assim, Wright enfatiza o desafio escondido por trás da Ciência moderna, a Teocracia, sendo necessário superar os erros e desencontros do mundo pós-iluminista, fruto da filosofia epicurista, cuja visão existencial era oposta à Cristã, para chegarmos, enfim, à correta compreensão do que seja um mundo ordenado por Deus e da própria mensagem do Cristo para o plano político das nações.

A “principal filosofia do Iluminismo”, salienta Wright, “nada mais era do que uma versão da filosofia antiga de Epicuro, cujo ensinamento era que os deuses, se existiam, estavam a uma longa distância do mundo dos humanos e não se preocupavam com eles. Como resultado, o mundo que conhecemos cresce, muda e se desenvolve sob seu próprio engenho, como se por meio de uma força inerente. Aplique isto ao estudo científico das origens e o resultado é a evolução darwinista mais uma vez, não uma ideia nova, mas a conclusão lógica que surge na ausência de controle e intervenção divinos. Em vez de ‘descobrir os pensamentos de Deus’, a ciência estava agora estudando o mundo como se Deus não existisse. Aplique-o à ciência política e o resultado é a democracia, a sociedade se orienta de acordo com os próprios desejos e caprichos, medos e modas. Em lugar do ‘direito divino’ dos governantes, a política agora ordenava o mundo – pelo menos na França e nos Estados Unidos – com base na separação estrita entre igreja e Estado.

Apenas quando essas conexões e paralelos são trazidos à luz fica claro o motivo pelo qual, do século XVIII em diante, a grande massa de pesquisas dos evangelhos fez certas perguntas e propôs certas respostas. A escolha entre o revolucionário judaico fracassado de Reimarus e o visionário apocalíptico fracassado de Schweitzer é, de acordo com os próprios evangelhos, uma escolha entre alternativas falsas. Nem Reimarus nem Schweitzer estavam preparados para considerar a possibilidade, proposta de maneira categórica pelos evangelhos, de que, em Jesus, o Deus de Israel – ou seja, o Deus criador – realmente tenha confundido epicureus e todos os demais grupos ao se tornar rei na terra como no céu. Teocracia – mas de um tipo radicalmente diferente de qualquer coisa que alguém já há muito imaginara – era o nome do jogo. Mas o mundo pós-Iluminismo, mesmo o mundo devoto, piedoso, evangélico ou católico pós-iluminista, não estava pronto para aceitá-lo. Se a questão da teocracia fosse levantada, remeteria prontamente ao clero corrupto e preguiçoso que tentava intimidar uma população fraca, ou a Jorge III, enviando bispos para as colônias a fim de manter o controle sobre elas. A teocracia não era desejada nem pelo reformador cético, nem pelo ‘ortodoxo’ piedoso, ambos contentes, como os rabinos depois da revolta de Bar-Kochba, em abandonar a visão do reino de Deus na terra e se retirar para um mundo de piedade privada, um mundo de ‘religião’” (Idem, pp. 53-55).

Não há como ter uma correta compreensão do Cristianismo sem entender que Jesus é o Messias judeu, o Rei de Israel, e que quando ele estabeleceu sua Ekklesia, palavra grega que designa Igreja, fê-lo em um contexto que é indissociavelmente político e teológico, de modo que toda e qualquer leitura que se faça da realidade social deve considerar a Política como Teologia e a Teologia com Política, e somente a partir desse pressuposto será possível resolver de forma duradoura os problemas da sociedade contemporânea.