Juiz Cristo

Existe, na teoria do Direito, uma proposta de descrever os modelos de juiz usando ideias da mitologia, podendo serem citados os modelos Júpiter, Hércules e Hermes, cada qual representando um tipo de comportamento do magistrado e o modo como atua ao proferir suas decisões. Também pode ser mencionado o juiz MacGyver, em crítica à forma de atuação dos juízes brasileiros (https://www.conjur.com.br/2013-nov-02/diario-classe-complexo-macgyver-modelos-juiz-episodio).

Entendo que tais sugestões somente existem porque não foi corretamente compreendido o que realmente significam o Direito e o Cristianismo, dentro de uma visão integral da Vida, que não separa aspectos políticos, religiosos e científicos, os quais se inserem em uma só realidade cultural, física e histórica, em uma só substância de mundo, e uma Humanidade.

O presente texto desenvolve algumas propostas do artigo “O Juiz Sacerdote” (https://holonomia.com/2017/05/30/o-juiz-sacerdote/), em que constou:

Nas assim chamadas ciências jurídicas, a Lei ainda possui relação com a ideia do sagrado, e a Constituição representa concretamente essa Lei, como espaço especial das relações humanas. Considerando que o art. 102 da Constituição Federal, por exemplo, dispõe que compete ao Supremo Tribunal Federal guardar a Constituição, o que é missão profissional do Poder Judiciário, e obrigação cidadã de toda a população, podemos dizer que vivemos em uma nação de reis sacerdotes, em que todos têm a obrigação de servir e guardar a Constituição, sendo os magistrados sacerdotes especiais, pois são os guardiões profissionais da Constituição. Portanto, como o juiz tem a função especial de servir e guardar a Constituição, ele é o novo sacerdote.”

Toda sociedade vive dentro de um quadro simbólico, que significa, dá sentido às coisas, aos fenômenos e aos eventos da história, tendo o ocidente sido formado dentro de uma simbologia judaico-cristã, que sucedeu a do mundo grego, o qual já havia transcendido, pela Filosofia, as narrativas mitológicas, por mais que estas sejam uma forma arcaica de Ciência e tenham sido úteis para a formação da cultura helênica, a qual, por sua vez, exerceu grande ascendência sobre a vida romana.

Existe, assim, um hiato, talvez intransponível, entre os símbolos da mitologia greco-romana e os conceitos jurídicos posteriores ao desenvolvimento da Filosofia, o que não ocorre com as ideias do Cristianismo, que ainda estão presentes na vida ocidental, com elevada força simbólica unificadora capaz de canalizar grande volume de energia na comunidade.

Nesse sentido, vale dizer que o fundamento de nossa civilização, a dignidade humana, vincula-se teórica, científica e historicamente, de maneira indissolúvel, ao judaísmo, à pessoa de Jesus Cristo e às ideias a ele ligadas. Daí porque é muito apropriado falar em juiz Cristo, para posicionar a figura do magistrado dentro da cosmovisão da qual se originaram os direitos humanos, narrativa que não pode ignorar a pureza moral, incluindo o aspecto sexual, de Jesus, de João Batista, que o antecedeu, e de Paulo, o maior responsável pela propagação das ideias de Jesus Cristo, e sua relação com a integridade conceitual da dignidade humana e dos direitos humanos.

É importantíssimo, ainda, inserir a pessoa do magistrado, e não somente sua função, em um quadro simbólico, porque o mundo é feito de pessoas e por pessoas, e não de coisas, ou por coisas. A autoridade pública é exercida por pessoas, e quanto melhor a pessoa mais corretamente exerce essa autoridade, como exposto no artigo “Sobre a autoridade secular” (https://holonomia.com/2018/11/28/sobre-a-autoridade-secular/).

No caso do juiz, do magistrado, a pessoa do julgador pode favorecer ou comprometer a autoridade da decisão, e não é por outro motivo que a Lei Complementar n.º 35, de 1979, que dispõe sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, no inciso VIII do seu art. 35, estabelece como dever do magistrado manter conduta irrepreensível na vida pública e particular.

A identificação com a postura do cristão é imediata, porque, no Cristianismo, Deus, o Juiz Supremo, que é Santo e Perfeito, delegou o julgamento do mundo a Cristo, expressão humana da perfeição de Deus, e aos cristãos, ou alter cristos, os que se portam como Cristo, buscando a santidade e a perfeição, porque “os santos julgarão o mundo” (1Cor 6, 2), e ser santo é manter conduta irrepreensível permanentemente, dentro de nossa imperfeição, tendo como modelo de vida aquele que deu corpo ao Logos, encarnando-O em Vida, cumprindo a Lei plenamente.

Antes, como é santo aquele que vos chamou, tornai-vos também vós santos em todo o vosso comportamento, porque está escrito: Sede santos, porque eu sou santo. E se chamais Pai aquele que com imparcialidade julga a cada um de acordo com as suas obras, portai-vos com temor durante o tempo do vosso exílio” (1Pd 1, 15-17).

Deus é Legislador, Rei e Juiz da Criação, e da Humanidade, é o Logos, a Sabedoria Suprema, da qual derivam a dignidade humana e os direitos humanos, conceitos estes dependentes daquele conjunto de ideias, o Logos que serve de parâmetro para a definição eterna do que é o Direito e a Justiça. A lei é elaborada pela Razão, o governo é exercido segundo a Razão e o julgamento é proferido pela Razão, e quanto melhor a Razão, tanto melhores a lei, o governo e o julgamento.

Nesse sentido, porque Jesus Cristo deu corpo, encarnou a Razão Perfeita, o Logos, irá “julgar os vivos e os mortos, pela sua Aparição e por seu Reino” (2 Tm 4, 1). “E ordenou-nos que proclamássemos ao Povo e déssemos testemunho de que ele é o juiz dos vivos e dos mortos, como tal constituído por Deus” (At 10, 42).

Sua Aparição e seu Reino são vinculados ao reconhecimento público de sua Autoridade, com a plena submissão a ela e com a superação da hipocrisia que separa a teoria Cristã da prática dos que se chamam cristãos, especialmente na vida pública e no ambiente político e jurídico, na medida em que o Reino é o governo segundo o Logos, Logos que também é a Lei que fundamenta o julgamento, a atuação do juiz.

O juiz Cristo é o que possui autoridade na comunidade, sendo capaz de, com sua força moral, não condenar um culpado, como ocorreu com a mulher adúltera, no episódio emblemático que foi apresentado na novela Jesus, transmitida pela emissora Record, nessa semana, ao salientar que aquele que condena deve estar sem pecado, não pode ser hipócrita: “Quem dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra!” (Jo 8, 7). Contudo, a condição para que a condenação não seja executada é o arrependimento, o reconhecimento do erro, teórico e prático, com a sincera disposição de não mais falhar, o que é um julgamento feito pelo juiz sobre uma dificílima questão de fato, relativa à alma, sobre o coração humano, sobre a boa-fé ou a má-fé: “Nem eu te condeno. Vai. A partir de agora não voltes nunca mais a errar” (Jo 8, 11).

A atividade do juiz é tanto técnica como simbólica, e se refere aos valores mais elevados da comunidade, à Política, cuja teoria variou muito ao longo dos últimos séculos. Com a restauração dos estados nacionais, após o período chamado Idade Média, a função de juiz era exercida pelo monarca, que era considerado um delegado de Deus entre os homens, o que pode ser considerado um período de predomínio do que hoje chamamos de poder executivo. Em seguida, com a proposta de se alcançar uma razão objetiva para regular o comportamento social, essa razão se associou à ideia de um poder legislativo, sobrevindo um tempo de codificação, em que o Direito era o que estava nas leis e nos códigos, sendo o juiz a boca da lei, uma vez que ênfase estava na função legislativa. Contudo, toda lei exige interpretação e aplicação aos casos, inclusive dos valores fundantes do Estado, conforme o constitucionalismo, de modo que a atividade julgadora passou a ganhar cada vez mais destaque. O pêndulo jurídico passou da subjetividade do monarca para a objetividade da lei, e diante da necessidade de sua concretização a ênfase do Direto volta a destacar a subjetividade, desta vez do julgador, em confronto com a pretensa objetividade da Lei.

A dificuldade está, portanto, em encontrar uma objetividade para além da subjetividade do julgador, para que as decisões sejam proferidas segundo a norma pública e racionalmente estabelecida, e não segundo uma vontade meramente individual ou pessoal do magistrado, para que haja máxima previsibilidade nos julgamentos, ou segurança jurídica, sem prejuízo para a realização da justiça no caso.

Quanto à objetividade, a física moderna, tanto pela relatividade como pela orgânica quântica, demonstra que a posição do sujeito é fundamental para a determinação de sua relação com os fenômenos observados, e com a objetividade. Segundo a relatividade, não existe um ponto de Arquimedes material que sirva de referencial absoluto para as observações, devendo ser destacado que a relatividade trata apenas de fenômenos materiais, aqueles em que está envolvida uma troca local de partículas. Assim, o significado dos eventos depende da posição relativa dos observadores, dos referenciais adotados, dos sujeitos. Igualmente pela física quântica, a observação e o modelo de medição escolhidos são determinantes para o resultado do experimento.

A posição do sujeito, pois, importa física e psiquicamente, porque coloca a subjetividade dentro de um contexto, e essa posição é determinada tanto materialmente, dentro do espaço-tempo, como simbolicamente, em uma narrativa de mundo, um arcabouço teórico, que dá sentido aos eventos dentro do espaço-tempo, inclusive determinando a seta do tempo, a direção da História, e se o resultado da medição será em termos particulares ou ondulatórios, como partícula local com posição ou velocidade determinada ou como onda espalhada em um campo não local.

Outrossim, a objetividade só é possível se o sujeito estiver na posição correta, que inclua tanto uma posição material local quanto uma relação não local, ou transcendente. Para o juiz, a objetividade inclui, portanto, sua manifestação local, pelas teorias e razões expostas no processo, e sua relação não local, o arcabouço teórico que encarna e os símbolos que o movem, consciente e, principalmente, inconscientemente, como o demonstra a psicologia moderna, notadamente a psicologia profunda.

Quando o arcabouço teórico é mais definido, e nele está inserido conscientemente o magistrado, a previsibilidade do julgamento é maior, do que é exemplo claro a Suprema Corte dos Estados Unidos e a divisão filosófica entre conservadores e liberais. Mesmo assim, ambas as linhas filosóficas pecam por incompletude e incoerência, porque ainda trabalham, como exposto no artigo anterior, sob domínio do inconsciente, e porque a simbologia ocidental está fragmentada desde a modernidade, pela separação cartesiana e os seus efeitos prejudiciais à integridade do conhecimento científico no período subsequente, incluída a atual teoria do Direito.

Daí porque é necessária a restauração da cosmovisão Cristã, com sua adequada simbologia, para posicionar os sujeitos corretamente dentro de uma objetividade teórica integral, com unidade psíquica entre consciente e inconsciente, através do uso apropriado dos símbolos na sociedade.

O Estado, ou Igreja, a Ekklesia de Cristo, é um sistema de ideias corretas, adotado por um grupo de pessoas, um pensamento encarnado em pessoas que agem convenientemente, com fundamento na dignidade humana, que encarnam o Logos, sendo expressão viva da Sabedoria. O Cristianismo é também um sistema meritocrático de liderança, baseado em ideias, fundado no Logos, em que têm mais mérito e, portanto, mais autoridade aqueles que melhor encarnam consciente e permanentemente o respectivo sistema de ideias, manifestam o sistema jurídico em comportamento e linguagem.

O juiz Cristo é o que conhece biblicamente, porque O vive, o Logos, conhece o Princípio que dá unidade ao sistema e sustenta a totalidade e a integridade do Direito, mantendo conduta irrepreensível na vida pública e particular, sendo santo porque santo é o Pai, santa é a Lei, santo é o Logos, e por isso seu julgamento é imparcial, porque sua subjetividade é uniplurissubjetiva, ele é, objetivamente, a própria Humanidade, uma Ideia realizada em uma pessoa que compartilha essa Ideia em sua vida privada e profissional, mantendo a unidade social no plano moral, o que implica ser ético, e jurídico, o que significa ser justo.

Essa é a correta teoria, essa a simbologia que será, enfim, alçada à condição de verdade científica, o que é condição para a Paz, para a realização do Reino, quando “o poder de julgar” será entregue ao juiz Cristo (Ap 20, 4), depois que Jesus Cristo for devidamente reconhecido e elevado, em nossa simbologia prática, Religiosa, Política e Jurídica, ao lugar que lhe cabe, à direita de Deus.

Em verdade vos digo que, quando as coisas forem renovadas, e o Filho do Homem se assentar no seu trono de glória, também vós, que me seguistes, vos sentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel” (Mt 19, 28).

Domínio do inconsciente

No artigo anterior, “Direito e ordem mental”, foi destacado que os indivíduos dos dias atuais ainda são dominados pelo inconsciente, apesar das conquistas tecnológicas alcançadas, sendo ressaltado que o desenvolvimento da personalidade se dá em direção à consciência, como ocorre no mito do herói, que se liberta da inconsciência.

A inconsciência está tanto nas pessoas como nos grupos, repercutindo no mundo das ideias e dos conceitos, comprometendo a racionalidade do ambiente intelectual humano, inserindo equívocos nas teorias científicas, não percebidos num primeiro momento, o que afeta sobremaneira o ambiente social, e jurídico. Por isso não vivemos em uma sociedade de paz, mas no mundo do consumo irracional, da concorrência, muitas vezes desleal, em que o crime é uma constante.

Para que seja possível a superação desse ambiente de permanente tensão, inclusive no plano internacional, é necessário despender muita energia física e psíquica da forma e na direção corretas, de modo a permitir que alcancemos um estado de maior consciência, de conhecimento da realidade mais profunda, como afirma Erich Neumann: “o estado inconsciente é o estado básico e natural; o estado consciente, o produto de um esforço que consome libido” (Erich Neumann. História da Origem da Consciência. 5 ed. Trad. Margit Martincic. São Paulo: Cultrix, 2014, p. 205).

Uma vez que nossa libido é desperdiçada, consciente e inconscientemente, na realização de desejos egoístas e em razão de instintos que não dominamos, e que, de fato, nos dominam, o estado de consciência mais elevada não é atingido.

Como ressaltado no último artigo, o esforço para se chegar ao conhecimento mais profundo da realidade, à inteligência, inclui a superação da ordem de mundo materialista de Freud, em que o conceito de libido, ou energia psíquica, foi indevidamente limitado a uma conotação sexual. No Código Penal Brasileiro, por exemplo, nos arts. 130, 148, 213, 215, 217-A, dentre outros, o termo “ato libidinoso” recebe o sentido exclusivamente sexual, o que é derivado das teorias de Freud sobre o mundo, com uma visão incompleta sobre o ser humano, sexualmente limitada, visão essa que é, portanto, inconsciente.

Assim, as palavras citadas por Erich Neumann acima, indicando que o estado de consciência depende de “um esforço que consome libido”, podem ser deturpadas em decorrência da leitura falha que Freud fez da humanidade, entendendo os fenômenos de uma perspectiva limitada, e indevida. Por mais que tenha tentado desvendar o inconsciente, a teoria freudiana é inconsciente da realidade humana mais profunda.

Como junguiano, Erich Neumann entende libido como energia psíquica. Segundo Jung, “é melhor compreender o processo psíquico simplesmente como um processo de vida. Desta forma estendemos o conceito restrito de uma energia psíquica para o conceito mais amplo de uma energia de vida, a qual engloba a chamada energia psíquica como componente específico”; afirmando que sugeriu “designar por libido a hipótese da energia de vida, levando em conta a sua utilização psicológica (…) para diferenciá-la de um conceito universal de energia” (Carl Gustav Jung. A energia psíquica. Trad. Maria Luiza Appy. 14 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p. 27).

Jung destaca a importância dos símbolos religiosos para a formação psíquica humana, porque tais símbolos foram produzidos pelo inconsciente para permitir a utilização da energia psíquica no desenvolvimento da consciência. De certa forma, em contraste com o entendimento de Jung, o pensamento de Freud pode ser considerado uma teoria infantil, uma teoria imatura, que não apreende a totalidade humana:

Na experiência direta, o espírito primitivo só nos é dado sob a forma da psique infantil, ainda possível de ser lembrada. As particularidades da mesma são consideradas por Freud, com certa razão, como sexualidade infantil; pois é desta disposição embrionária que mais tarde surgirá o ser sexuado maduro. Freud, porém, faz derivar da disposição embrionária infantil uma série de particularidades mentais, de forma a parecer que a mente também provém de um estágio sexual preliminar, e portanto não passa de um subproduto da sexualidade. Mas para Freud passa desapercebido que a disposição embrionária infantil polivalente não é apenas um estágio preliminar perverso singular de uma sexualidade normal e madura, mas que justamente ela parece ser perversa porque não é apenas um estágio preliminar da sexualidade madura, mas também o é da singularidade mental do indivíduo. Da disposição embrionária infantil surgirá posteriormente o ser humano inteiro, razão pela qual a disposição embrionária não é pura sexualidade, da mesma maneira que a psique do ser humano adulto não o é” (Idem, pp. 64-65).

A teoria de Freud é entendida, assim, como limitada, parcialmente correta, mas incapaz de ser universalizada, hipótese em que “só poderá ser uma explicação fictícia”, quando aplicada, por exemplo, à interpretação da obra de arte ou a uma experiência religiosa.

Jung destaca que “a formação da religião ou do símbolo tem para o espírito primitivo um interesse tão grande quanto a satisfação do instinto”, de modo que “o caminho da continuidade do desenvolvimento é assim dado logicamente” (Idem, p. 72). O desenvolvimento da consciência ocorre, portanto, por meio de símbolos religiosos, que “possibilitaram ao ser humano construir uma posição contraposta à natureza instintiva primitiva, uma atitude cultural diante da mera instintividade. Foi esta desde sempre a função de todas as religiões” (Idem, p. 73).

Esse processo de conscientização é iniciado por um indivíduo, um ser singular com consciência de sua singularidade, dando início ao progresso cultural, que é uma ampliação da consciência.

No mundo ocidental, esse ser singular, que moldou nossa cultura, inquestionavelmente, é Jesus Cristo, que tomou conhecimento de sua unidade com Deus, cumprindo as profecias ou ideias religiosas necessárias para o progresso da humanidade. Vale dizer que o Cristianismo ainda não aconteceu na sociedade humana, apenas tivemos vislumbres dessa realidade, ofuscada pelos dogmas que impediram o conhecimento da Verdade Cristã em sua plenitude religiosa, política e científica.

Nesse sentido, segundo a simbologia da religião Cristã primitiva, antes do pleno desenvolvimento da cultura iniciada por Jesus Cristo, antes que a civilização por ele inaugurada aflore na era messiânica, era necessário que o símbolo oposto se desenvolvesse, pela manifestação do anticristo e pela ação do falso profeta.

O profeta significa aquele que serve de meio para a revelação de Deus, a Verdade, sendo que na simbologia atual a verdade está associada à Ciência, que reclama para si a autoridade plena sobre o conhecimento racional. Cristo significa “Ungido” pelo Espírito, que age por ação do Espírito, o que é o oposto do que faz a ciência reducionista dos dias atuais. Desta feita, o falso profeta que permite a manifestação do anticristo é a ciência materialista que prevalece no mundo contemporâneo, fazendo com que a humanidade permaneça sob o domínio do inconsciente, porque impede a consciência sobre a totalidade da experiência da realidade e o conhecimento sobre o ser humano inteiro.

Pois hão de surgir falsos Cristos e falsos profetas, que apresentarão grandes sinais e prodígios de modo a enganar, se possível, até mesmo os eleitos” (Mt 24, 24).

Hão de surgir falsos Messias e falsos profetas, os quais apresentarão sinais e prodígios para enganar, se possível, os eleitos” (Mc 13, 22).

Vivemos sob o domínio de falsos Messias e falsos profetas, falsos cientistas, como Freud, que realizam prodígios e sinais enganosos, do que é exemplo a tecnologia que encanta as pessoas desviando-as da Vida, mas que não encontraram a Verdade e desviaram a humanidade do seus verdadeiros conhecimento e desenvolvimento.

A Verdade está, sim, na Ciência, desde que vinculada a Cristo, ao Logos encarnado, porque Cristianismo é Ciência, e a Vida segundo a Razão, a Lógica, sendo Jesus Cristo o maior cientista de todos os tempos, o Homem pleno.

Erich Neumann, ao tratar do desenvolvimento da personalidade, fala da fase adolescente, passível de ser aplicada à coletividade de nosso tempo, aduzindo que a “perversão sexual não passa de expressão mórbida da dominância dessa fase arquetípica”, vinculada à “bissexualidade original da Grande Mãe urobórica” (Obra citada, p. 223). E continua:

Do mesmo nível desses adolescentes narcisistas e passivos são os homens identificados com a Grande Mãe, que realizam essa identificação, quer como castrados, que sacrificam o falo, ou, como ‘travestis’, usando roupas femininas.

Na psicologia, esses níveis intermediários desempenham importante papel nas neuroses, nas quais surgem, de preferência, como estado de fusão do ego masculino com a Anima e, na mulher, com o Animus, o que representa uma fixação que impede a completa diferenciação da personalidade.

Também nas neuroses, como nas perversões e na homossexualidade – todas pertencentes ao mesmo nível –, o desenvolvimento do ego e da consciência é incompleto e o domínio do inconsciente continua, isto é, em nenhum desses casos foi atingido o estágio da luta heroica” (Idem, p. 223).

Em seguida Neumann arremata dizendo que tal situação psicológica do indivíduo deve “ser considerada um desenvolvimento defeituoso”.

Vivemos, assim, coletivamente, sob o domínio do inconsciente, porque as pessoas com desenvolvimento defeituoso e incompleto são oficialmente consideradas normais, o que significa que a norma perdeu o sentido, a consciência coletiva se desviou do caminho de seu desenvolvimento, fixando-se em símbolos de perversão, de uma fase imatura da vida, do que a questão sexual é apenas um aspecto. Se Jung estiver correto, esse fato levará o inconsciente coletivo a compensar essa situação, sem o controle da consciência, com os riscos decorrentes, potencialmente catastróficos. Daí a importância de manter a consciência alerta, vigilante.

Olhai, vigiai, pois não sabeis quando será o momento. Será como um homem que partiu de viagem; deixou sua casa, deu autoridade a seus servos, distribuiu a cada um sua responsabilidade e ao porteiro ordenou que vigiasse. Vigia, portanto, porque não sabeis quando o Senhor da casa voltará: à tarde, à meia-noite, ao canto do galo, ou de manhã, para que, vindo de repente não vos encontre dormindo” (Mr 13, 33-36).

Direito e ordem mental

Direito é ordem mental, organização das ideias que atuam sobre o mundo, movimentando pensamentos, dentro de nós e na comunidade a que pertencemos, pensamentos os quais, por sua vez, agem sobre as pessoas que cumprem (ou descumprem) as ordens ou mandamentos normativos ao atuarem no mundo social segundo o (ou contrariamente ao) sistema jurídico.

A expressão ordem mental remete ao âmbito científico, existindo na Ciência dois ramos fundamentais, sem os quais o conhecimento perde sustentação racional, porque se referem aos aspectos mais essenciais da natureza, ramos que dizem respeito às raízes da realidade, exterior e interior. A Física, que trata das bases materiais do mundo, e a Psicologia, que condiciona a apreensão inteligível de todos os fenômenos, tanto os exteriores aos corpos dos indivíduos como na parte mais interna ou subjetiva, são disciplinas que moldam as categorias pelas quais compreendemos o universo.

A ordem mental do mundo, portanto o Direito, é diretamente dependente tanto da Física como da Psicologia, ainda que a temporalidade dessa influência possa ser postergada. Nesse sentido, o sucesso das ideias heliocêntricas de Copérnico e Galileu, reforçadas pela mecânica de Newton, todos cientistas que atuaram no ramo da Física, teve impacto no poder jurídico religioso, estimulando um modo formal e racional de pensamento, no tempo conhecido como Iluminismo, que levou às revoluções dos séculos XVIII e XIX e que ainda exerce influência no Direito.

Contudo, tratando de Física e de Psicologia, o século XX foi um tempo de profundas transformações nas bases da ordem de mundo, porque a relatividade e a orgânica quântica, de um lado, abalaram os fundamentos da física newtoniana; e o aprofundamento do conhecimento da psicologia do inconsciente, de outro lado, demonstrou que a vida humana é regida por forças até então ocultas que escapavam ao controle de uma racionalidade superficial.

Na Física o assombro sobre a realidade permanece, situação cristalizada na frase do ganhador do Nobel, Richard Feynman, ao afirmar “que ninguém entende física quântica”. Na Psicologia, por sua vez, as propostas materialistas e antirreligiosas de Freud exercem profunda influência no mundo intelectual ocidental, e no Direito, numa sociedade que, paradoxalmente, intitula-se majoritariamente como Cristã, por mais que as ideias freudianas tenham se mostrado inúteis para a resolução dos problemas existenciais humanos, uma vez que se a psicanálise não fosse um completo fracasso os problemas psíquicos da humanidade já teriam sido por ela resolvidos.

Assim, já passou o tempo necessário para que a visão ontológica de Jung, que se opôs a Freud, sobre a psique, defendendo Jung uma religiosidade natural do ser humano e a preponderância dos arquétipos do inconsciente coletivo no mundo psíquico, diante do fracasso da proposta freudiana, já passou o tempo necessário para que as ideias junguianas sejam devidamente valorizadas e postas em prática, e no Direito.

Erich Neumann, discípulo de Jung, escreveu a obra “História da Origem da Consciência”, cujo Prefácio é do próprio Jung, no qual este destacou as vantagens do trabalho da segunda geração dos estudiosos da psicologia analítica, ou junguiana, afirmando que Neumann “foi bem-sucedido na construção de uma história ímpar da evolução da consciência (…). Chega, assim, a conclusões e percepções que estão entre as mais importantes já alcançadas nesse domínio”, e arrematando:

Nenhum sistema pode prescindir de uma hipótese geral que dependa, por seu turno, do temperamento e de pressupostos subjetivos do autor e, simultaneamente, de dados objetivos. Em psicologia, esse fator é a da maior importância, pois a ‘equação pessoal’ dá colorido à maneira de ver. A verdade final, se existe tal coisa, exige o concerto de muitas vozes” (Prefácio de Jung. Erich Neumann. História da Origem da Consciência. 5 ed. Trad. Margit Martincic. São Paulo: Cultrix, 2014, pp. 11-12).

A “equação pessoal” é a ordem mental incorporada pela pessoa, é o olho ou filtro pelo qual os fenômenos entram para a consciência, interferindo na forma pela qual a realidade é apreendida e compreendida.

A lâmpada do corpo é o olho. Portanto, se o teu olho estiver são, todo o teu corpo ficará iluminado; mas se o teu olho estiver doente, todo o teu corpo ficará escuro. Pois se a luz que há em ti são trevas, quão grandes serão as trevas!” (Mt 6, 22-23).

A cosmovisão, ou ordem mental mais ampla, a hipótese geral, destarte, condiciona o modo como nos portamos perante o mundo, de modo que nosso comportamento é tanto mais luminoso quanto mais luz possuirmos em nossa “equação pessoal”, em nosso olho.

É indispensável, outrossim, a revisão da simbologia psíquica que ampara o conhecimento intelectual do mundo, e do Direito, para rejeição dos equívocos da “equação pessoal” freudiana com a incorporação de uma psicologia compatível com a visão de mundo ocidental, estabelecida na tradição judaico-cristã, a partir das propostas de Jung, ainda que este também tenha cometido erros, porque, de todo modo, a compreensão junguiana da mitologia e do significado do herói é mais coerente com as ideias de uma civilização Cristã, como a nossa.

Como sustentado por Erich Neumann, o mito do herói deve ser compreendido no sentido da libertação do mundo inconsciente e sua simbologia, urgindo o devido esclarecimento sobre esses pontos, “tanto mais necessário por causa dos enganos da psicanálise, cuja interpretação errônea do chamado complexo de Édipo e da mitologia totêmica derivada deste causou a maior confusão” (Obra citada, p. 111).

Neumann reconheceu que Freud fez descobertas importantes sobre o fenômeno do totemismo e do desenvolvimento do mundo espiritual, “mas distorceu e entendeu erroneamente algumas (descobertas) ainda mais importantes” (Idem, p. 114).

Ainda sobre o complexo de Édipo, afirmou Neumann:

A teoria freudiana sobre o assassinato do pai, que Rank tentou aplicar, reúne como unidade sistemática as seguintes características: o romance familiar, sempre relacionado com o filho, culmina no desejo incestuoso deste em relação à mãe, ao qual o pai se opõe de maneira hostil; o herói é o rapaz que mata o pai e desposa a mãe. O mito do herói é uma plasmação da fantasia pela qual a imagem desse desejo se impõe de modo direto ou indireto. Essa teoria é ‘sustentada’ – mas, na realidade, ‘entulhada’ – pela hipótese de Freud, inconsequente e antropologicamente inviável, de um pai gorila. Um poderoso patriarca-macaco rouba as mulheres dos filhos e é abatido pelos irmãos unidos. A superação do pai é o aspecto heroico. Freud toma isso ao pé da letra e deriva daí o totemismo e o surgimento de características importantes da cultura e da religião. Aqui, como noutras partes, devido ao seu preconceito personalista, Freud interpretou fatores decisivos de maneira errônea” (Idem, p. 122).

Se Freud distorceu e entendeu erroneamente as descobertas mais importantes sobre o totemismo e o mundo espiritual, se ele interpretou fatores decisivos de maneira errônea, sendo sua hipótese inconsequente e antropologicamente inviável, a estrutura de sua psicologia está equivocada, exigindo seja descartada a ordem mental de mundo e a “equação pessoal” freudiana sobre a humanidade.

A Psicologia e sua simbologia exercem influência preponderante no mundo jurídico, porque determinam a ordem mental coletiva, que constrange o comportamento das pessoas, pelas razões que fundamentam as ações, conformes ou contrárias àquela ordem, amparando argumentos morais que se tornam científicos e, em consequência, jurídicos, formando a razão coletiva de ação, da qual decorre a censura moral e social sobre as atitudes individuais.

Portanto, mais importante do que as ideias individuais são as coletivas, relativas aos simbolismos da alma humana, em que dominam arquétipos e imagens primordiais, expressadas na mitologia e nas grandes religiões.

A realidade de qualquer cultura e civilização, inclusive a nossa, é composta pela realização dessas imagens da alma. Toda arte, religião, ciência e tecnologia, tudo o que já foi feito, falado ou concebido, tem a sua origem nesse centro criador. O poder autogerativo da alma é o segredo verdadeiro e definitivo do homem, que faz dele a imagem semelhante à Divindade Criadora e o distingue das outras criaturas vivas” (Idem, p. 160).

Essa a verdadeira ordem mental do mundo, em que as questões religiosas recebem a atenção que merecem, pois o comportamento religioso do homem é “a nascente de toda cultura” (Idem, p. 161), decorrendo da tradição judaico-cristã o entendimento segundo o qual a humanidade foi criada à imagem e semelhança de Deus, do Criador.

A ênfase deve ser dada, portanto, à psique inconsciente de grupo, porque “os indivíduos dos nossos dias, apesar de todas as suas realizações conscientes, ainda estão contidos na estrutura do seu grupo e no inconsciente que o domina” (Idem, p. 198), porque é do inconsciente coletivo, a camada mais profunda da psique, que flui a energia original da qual surge a consciência.

O comportamento dos indivíduos é pautado, assim, pelo grupo a que pertencem, porque o “relacionamento com o mundo exterior é, em larga medida, realizado, não diretamente pelo indivíduo, mas pela entidade imaginária ‘grupo’, cuja encarnação é o líder ou animal dirigente, e cuja consciência representa a de todas as partes do grupo”, sendo destacado quanto a essa passagem, no rodapé, que o “líder, o Estado, etc. representam a sua consciência e o arrastam às cegas para movimentos de massa, como as guerras” (Idem, p. 200).

Daí porque a ordem mental, o Direito, deve ser pautado por Cristo, na simbologia original do Messias, constante das Escrituras, entendido como líder político, bom pastor.

Em verdade, em verdade, vos digo: eu sou a porta das ovelhas. Todos os que vieram antes de mim são ladrões e assaltantes; mas as ovelhas não os ouviram. Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim, será salvo; entrará e sairá e encontrará pastagem. O ladrão vem só para roubar, matar e destruir. Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância. Eu sou o bom pastor: o bom pastor dá sua vida pelas suas ovelhas. O mercenário, que não é pastor, a quem não pertencem as ovelhas, vê o lobo aproximar-se, abandona as ovelhas e foge, e o lobo as arrebata e dispersa, porque ele é mercenário e não se importa com as ovelhas. Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas e as minhas ovelhas me conhecem, como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu dou minha vida pelas minhas ovelhas” (Jo 10, 7-15).

Por tudo isso, nossa civilização somente alcançará a plenitude quando Cristo for reconhecido herói da humanidade, e quando a ordem mental do mundo, o Direito e a Política se sujeitarem às suas ideias, que são o Logos, a Consciência encarnada, porque o fundamento do Estado já é a dignidade humana, restando ser reconhecido que ele Cristo ainda é a consciência humana, o líder cujo exemplo heroico deve ser enaltecido, seguido e multiplicado.

Direito Comum da Humanidade

Encerrada a leitura do Volume I, Tomo I, de “História do Direito Comum da Humanidade: Ius Commune Humanitatis ou Lex Mundi?”, Dissertação de doutoramento em Ciências Histórico-Jurídicas apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa por Eduardo Vera-Cruz Pinto, Professor Catedrático da mencionada instituição, merecem destaque abordagens fundamentais da obra, que impressiona inicialmente já pela extensa bibliografia pesquisada e devidamente anotada, sendo mais de cento e trinta páginas, além do vasto número de obras indicadas nas notas de rodapé, não constantes da bibliografia.

Vera-Cruz censura a abordagem jurídica da atualidade, avaliação bem exposta na obra “O Futuro da Justiça”, na qual faz críticas aos sistemas de ensino, judicial e político, dizendo ser necessária uma radicalidade filosófico-jurídica, reconstruindo a realidade intelectual a partir da desconstrução da existente, por meio de uma grande ruptura daqueles sistemas para a realização plena da Justiça, destacando a necessidade de restaurar a auctoritas dos jurisprudentes, dentro de uma determinada leitura do Estado Constitucional, para que este seja um Estado de Direito. A autoridade é fundamental na comunidade humana, como já exposto no artigo “Autoridade” (https://holonomia.com/2018/10/16/autoridade/), urgindo seja resgatada em sua concepção correta e original.

O retorno às origens é indispensável, e como se pode extrair do artigo “Estado, Cristo e culto” (https://holonomia.com/2018/07/30/estado-cristo-e-culto/) a noção moderna de Estado surge após a chamada Paz de Westfália (1648), havendo uma tendência em grande parte das doutrinas jurídica e política no sentido de negar ou ignorar, por influência do positivismo, os milênios de evolução do conhecimento que antecederam a modernidade, pois os fundamentos antigos da vida social, política e jurídica eram religiosos e metafísicos, pelo que seria exigida uma fundamentação na ciência positiva para se alcançar o último estágio mental da humanidade.

De outro lado, como tenho sustentado, o último estágio mental da humanidade, com adoção da verdadeira Ciência, foi atingido por Jesus Cristo em sua metodologia unitária e monoteísta de mundo, científica, metafísica e religiosa, pela qual conheceu a Verdade, integrando plenamente em sua vida a conduta ajustada à ordem cósmica, com o Logos, a Razão que fundamenta a realidade em todos os seus níveis, entendimento que pode ser vislumbrado no plano teórico-científico a partir da física moderna, na leitura dada por David Bohm, e da psicologia coletiva, consciente e inconsciente, sistematizada pelos princípios estudados por Carl Jung.

Contudo, ainda prevalece no meio universitário uma ojeriza à visão científica de mundo que seja compatível com ideias espirituais e religiosas, e com os sistemas filosóficos respectivos, no que se inclui o idealismo, especialmente o de Hegel, o que também explica a rejeição a Jung e a Bohm, sendo majoritária a ideologia materialista fundada em autores como Marx e Freud, e em um neodarwinismo eminentemente dogmático, e materialisticamente religioso.

Grandes autores e teorias do passado, e mais recentes, são rejeitados de plano, pois se considera que o verdadeiro conhecimento científico deve ser iniciado pelas leituras de mundo de Marx e Freud, o último amparado no niilismo existencialista de Nietzsche, sendo mister a rejeição dessas ideologias, para redirecionar o conhecimento à Verdade e à Ciência da totalidade do mundo, com o sentido espiritual nele existente.

Nessa mesma linha, Vera-Cruz desenvolve a ideia de Ius Commune Humanitatis como “conceito jurídico com raízes no Ius Romanum, cuja tematização, no plano metodológico, tem sua sedes materiae na História do Direito Romano e, no plano antropológico, na visão cristã do Homem” (Eduardo Vera-Cruz Pinto. História do Direito Comum da Humanidade: Ius Commune Humanitatis ou Lex Mundi? Vol. I. Tomo I. Lisboa: Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2003, pp. 170-171).

Divergindo parcialmente de Vera-Cruz, entendo que também no plano metodológico se inclui a visão cristã do Homem, o que decorre da leitura teológica segundo a qual a trindade não é um conceito cristão, e considerando que o Reino de Deus é deste mundo e será realizado na História da Humanidade, ao contrário do entendimento dominante no Cristianismo pelo qual o Reino não é deste mundo.

Ainda assim, porque Vera-Cruz concede a devida relevância histórica e teórica às ideias de Cristo, há compatibilidade filosófica e pragmática entre a minha e a sua abordagem do Direito, especialmente quando ele afirma:

Como conjunto de normas jurídicas materiais concretas, como um Direito de direitos, o Ius Commune Humanitatis preenche, mais que uma ideia de Direito como ideal de Justiça, uma instância de regulação objectiva ao serviço da dignidade humana, não de mera técnica de concertação de interesses e pacificação de conflitos ou descrição lógico-conceitual da realidade humana, mas meio de responsabilizar, fazendo recuar o inhumanum-iniustum” (Idem, pp. 171-172).

Trata-se de restaurar a cosmovisão de mundo que contém verdades morais absolutas, transcendendo o relativismo moral materialista em direção à natureza religiosa, transpessoal e mítica do humano, com seu fundo psíquico comum, unidade psíquica a ser trazida da inconsciência instintiva para a consciência da dignidade humana, esta decorrente do Monoteísmo e da visão espiritual de Cristo, maior herói e líder da Humanidade, o Messias judeu.

Enquanto a moderna historiografia, com o seu viés personalista, se inclina a representar os eventos coletivos da vida das nações e da humanidade como dependentes dos impulsos personalistas de monarcas e líderes, o mito reflete a realidade transpessoal através dos eventos singulares da vida do herói” (Erich Neumann. História da Origem da Consciência. 5 ed. Trad. Margit Martincic. São Paulo: Cultrix, 2014, p. 152).

É preciso, destarte, reinterpretar Cristo, deixando de vê-lo como membro de uma trindade para entendê-lo não como Deus e sim como o mais Humano dos humanos, e assim plena imagem e semelhança de Deus, significando o mito, enquanto realidade psíquica arquetípica, do herói que realiza em si a Humanidade completa, no tempo e fora do tempo, indicando o Caminho que deve ser seguido por todos os que pretendem se tornar plenamente humanos, portanto imagem e semelhança de Deus, encarnação do Logos, tanto no mundo psíquico interior como na realidade objetiva.

Política e juridicamente, Cristo ou Messias é o modelo de líder a ser imitado pelos governantes, realizando a Razão da Humanidade, o Logos, no plano público oficial, no Estado, na nação, na comunidade internacional, como serviço coletivo da dignidade humana, que independe de nacionalidade, segundo sua (da dignidade humana) concepção autêntica e cristã.

Daí porque o Cristianismo é a Ciência da transformação da realidade objetiva, adequando os comportamentos da vida material, nos níveis individual e coletivo, portanto normativo, à Ordem mais profunda do universo, ao Cosmos, ao Logos, a Teoria de Tudo que é não só Física como também Biológica, Psíquica e Jurídica.

Por isso está com razão Vera-Cruz ao dizer ser necessária a responsabilização de cada um, pelo Direito, para que todos sejam responsáveis pela dignidade humana, sejam heróis em suas batalhas individuais para alcançar a Humanidade, apontando para

uma responsabilidade mais intensa, não só jurídico-política mas também moral (ligação dever-moral, obrigação cívica e responsabilidade civil) (…), é preciso investir na consciência da ‘ilicitude’ como base da responsabilidade. (…)

A construção de um Ius Commune Humanitatis só pode partir de uma perspectiva não materialista da vida e do Homem, que dê primazia ao espiritual” (Obra citada, p. 173).

O Direito Comum da Humanidade exige, destarte, ontologicamente, um conceito de humanidade, um conceito de consciência, que seja compatível com o primeiro, e um sistema jurídico no qual a perspectiva da vida e do Homem seja fundada no Espírito, pelo que o Direito Comum da Humanidade é a transposição do Cristianismo de mera religião espiritual, de salvação individual, para o seu devido lugar como Ciência, também no aspecto religioso da vida humana, incluindo as realidades política e jurídica da vida social, porque o Cristo é o Messias, e este é essencialmente um conceito político-jurídico dentro da visão Monoteísta (e Espiritual) da realidade, que inclui a natureza e o governo das nações.

É preciso passar do não-sistema materialista de mundo para o único sistema de conhecimento possível, fundado na unidade de um Espírito e um Corpo, governado por Cristo, em nome Daquele que é Santo e Perfeito, Clemente e Misericordioso, o Autor do Direito e da Justiça.

Adorai a Iahweh no seu santo esplendor, terra inteira, tremei em sua frente! Dizei entre as nações: ‘Iahweh é Rei! O mundo está firme, jamais tremerá. Ele governa os povos com retidão’. Que o céu se alegre! Que a terra exulte! Estronde o mar, e o que ele contém! Que o campo festeje, e o que nele existe! As árvores da selva gritem de alegria, diante de Iahweh, pois ele vem, pois ele vem para julgar a terra: ele vai julgar o mundo com justiça, e as nações com sua verdade” (Sl 96, 9-13).