Paulo não era um Cristão

Paul was not a Christian: the original message of a misunderstood apostle”, ou “Paulo não era um Cristão: a mensagem original de um apóstolo incompreendido”, é o nome de um livro de Pamela Eisenbaum, uma Judia com Ph.D. pela Columbia University e que leciona Estudos Bíblicos e Origens Cristãs na Universidade de Denver. A tese da obra é bem lógica e muito interessante, no sentido de que Paulo não foi o fundador do Cristianismo ou um convertido do Judaísmo, e sim alguém que se manteve como um Judeu devoto, que acreditava em Jesus, mas que continuou vinculado ao Judaísmo até sua morte. Como consta na primeira frase do primeiro capítulo do livro, em tradução literal, “Paulo viveu e morreu um Judeu – essa é a reivindicação essencial deste livro”.

A proposta da obra é defender que Paulo não se converteu do Judaísmo após seu encontro com Jesus ressuscitado, um evento fundamental, e místico, que mudou o curso da História, mas apenas evoluiu seus conceitos religiosos judaicos para adiantar seu relógio apocalíptico, entendendo o encontro com Jesus algo como um “chamado de Deus” para cumprir uma missão particular prevista pelos profetas para a escatologia messiânica: levar o conhecimento do Deus único, o Deus de Israel, para todas as nações do mundo.

A autora se baseia nas cartas não disputadas de Paulo, aquelas que os especialistas reconhecem como escritas pelo próprio Paulo: Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1 Tessalonicenses e Filemon. Isso porque a carta aos Hebreus é reconhecida entre os estudiosos como não tendo sido escrita pelo apóstolo, havendo controvérsia sobre a autoria das cartas aos Efésios, Colossenses, 2 Tessalonicenses e das Cartas Pastorais (1 e 2 Timóteo e Tito).

Essa lista de textos, por si só, já demonstra a importância de se entender, do melhor modo possível, o significado dos escritos de Paulo e de sua mensagem, porque dos 27 (vinte e sete) livros que compõem cânon do Novo Testamento, os 14 (quatorze) citados são relacionados a Paulo, sem falar nos Atos dos Apóstolos, em que, a partir do capítulo 8, até o final, no capítulo 28, são narradas, quase exclusivamente, as atividades de Paulo, pelo que o livro poderia ser chamado de Atos do Apóstolo Paulo.

Por essa e outras razões, Eisenbaum destaca que Paulo é “o segundo homem mais importante na história do Cristianismo”, o que confirma a relevância da correta compreensão de sua mensagem e da interpretação de sua Teologia.

E no desenvolvimento do aspecto teológico, segundo a autora, Agostinho relacionou sua conversão à de Paulo, o que acabou sendo um modelo para o mundo Cristão, dizendo que a leitura de Paulo através de Agostinho prevaleceu, leitura no sentido de que o apóstolo rejeitou o Judaísmo. “Because Augustine stands as the single most important theologian in Christian history, his interpretation of Paul has reigned ever since” (Pamela Eisenbaum. Paul was not a Christian: the original message of a misunderstood apostle. New York. HarperOne – HarperCollins Publishers, 2010, p. 48) (Como Agostinho é individualmente o teólogo mais importante na história Cristã, sua interpretação de Paulo reinou desde então).

Vale dizer que a pesquisa que resultou no livro está inserida em um movimento que pode ser chamado de “Nova perspectiva em Paulo”, no que está incluído o trabalho de N. T. Wright, como narrado no artigo “Teologia Cristã em Paulo” (https://holonomia.com/2019/07/04/teologia-crista-em-paulo/), um debate que é mais afeto ao mundo protestante, porque, como constou no artigo “A cidade de Deus” (https://holonomia.com/2017/12/03/a-cidade-de-deus/), o catolicismo romano segue a escatologia de Agostinho, negando a realização do Reino na História, segundo a doutrina do parágrafo 676 do Catecismo da Igreja Católica:

676. Esta impostura anticrística já se esboça no mundo, sempre que se pretende realizar na história a esperança messiânica, que não pode consumar-se senão para além dela, através do juízo escatológico. A Igreja rejeitou esta falsificação do Reino futuro, mesmo na sua forma mitigada, sob o nome de milenarismo (642), e principalmente sob a forma política dum messianismo secularizado, «intrinsecamente perverso» (643)”.

De outro lado, como mencionado no artigo “Sobre a autoridade secular” (https://holonomia.com/2018/11/28/sobre-a-autoridade-secular/comment-page-1/), tal posição também é amplamente adotada no protestantismo:

Vale salientar que Lutero segue a teoria de Agostinho das duas cidades, proposta que não tem amparo bíblico e que mais se aproxima de uma ideia gnóstica maniqueísta, porque aquele declara que ‘Deus instituiu os dois governos, o (governo) espiritual, que molda os verdadeiros cristãos e as pessoas justas por meio do Espírito Santo sob Cristo, e o governo secular (weltlich), que reprime os maus e os não-cristãos e os obriga a conservarem-se exteriormente em paz e a permanecerem quietos, gostem ou não disso’ (Idem, p. 15).

Calvino adota a mesma linha, não aceitando que a era messiânica ocorra neste mundo, como ainda é esperado pelos judeus:

Mas qualquer um que saiba como distinguir entre a alma e o corpo, entre esta vida transitória atual e a vida eterna que está por vir, não terá dificuldade em compreender que o reino espiritual de Cristo e o governo civil são coisas muitíssimo distantes uma da outra. É uma insensatez judaica esperar o reino de Cristo entre as coisas que constituem este mundo e encarcerá-lo entre elas’ (Idem, p. 73)”.

Contudo, a insensatez talvez seja o entendimento que prevaleceu no Cristianismo desde Agostinho, incluindo o catolicismo e os protestantismos de Lutero e Calvino, rejeitando o aspecto político do Reino de Deus, o que exige que seja devidamente recuperado o significado da mensagem evangélica, daquilo que Jesus efetivamente realizou, inclusive no âmbito político, como o Messias de Israel. Essa releitura do Cristianismo aponta para uma revisão do que seja a religião, no sentido de entender sua natureza essencialmente política, na linha judaica original, assim como segundo o Islamismo, em sua melhor hermenêutica.

Outrossim, é possível fazer até mesmo uma interpretação política do conceito de pecado original, no desenvolvimento de uma Teologia Cristã mais consentânea com o Evangelho na sua perspectiva autêntica, como esboçado no artigo “Pecado original” (https://holonomia.com/2017/11/09/pecado-original/).

Destarte, é necessário interpretar adequadamente o trabalho de Paulo, o que remete o Cristianismo à sua origem judaica, e nesta senda o livro de Eisenbaum é muito significativo, por mais que a visão judaica anterior a Jesus exija o aprimoramento realizado por Paulo, para se entender que a profecia se cumpriu em Jesus, o qual é efetivamente o Messias de Israel e, por sua ressurreição, tornou universal a Lei, moral e política, judaica, como, aliás, também sucede com o Islamismo, na sua interpretação sem deturpação, no sentido de que sua mensagem é, literalmente, segundo o próprio Alcorão, apenas uma confirmação da Torá e do Evangelho.

Daí a importância do livro “Paul was not a Christian”, que aborda questões históricas relevantes, sem deixar de enfrentar assuntos teológicos fundamentais, sobre a salvação através da fé de (ou em) Jesus e/ou com base nas obras (da Lei).

Assim, termino este texto com a mensagem encaminhada à autora do livro em comento:

Eu penso que você entendeu Paulo muito bem, porque ele era realmente um Judeu.

Mas penso que ele também era Cristão, ou melhor, um Cristo.

Minha tese é que Jesus é o problema e a chave para entender o Monoteísmo, pois as três principais religiões têm uma interpretação errada sobre ele, porque na minha opinião ele é o Messias de Israel, ele não é membro de uma trindade e ele é O Profeta.

Jesus salva, na verdade, não apenas os Gentios, mas também os Judeus. Foi o seu Espírito, o Espírito encarnado através dele em nós, que salvou os Judeus e levou Israel de volta à terra prometida. O Estado de Israel é um efeito de Jesus agindo como Messias, embora tenha levado algum tempo para que isso acontecesse, assim como levou tempo para a realização da promessa feita a Abraão sobre todas as nações, como você escreveu em seu livro.

Jesus, de fato, é também uma figura política, e como o Messias, e o maior conhecedor da Lei, ele tinha autoridade para fazer exceções, como ninguém mais. Não haverá ninguém melhor que ele como líder político. Seu exemplo tem que ser seguido na política, porque sua igreja é o estado fundado nos direitos humanos, na dignidade humana, já que somos todos filhos de Deus, a igreja de Jesus não é o que os Cristãos pensam como igreja.

Nesse sentido, sobre o Reino, o Estado de Israel só aconteceu por causa de Jesus, o Messias, já que não foi o povo judeu que levou Israel de volta à terra prometida, mas o Espírito de Cristo, em seus seguidores, o novo Israel, as pessoas com a fé de Jesus, em reação ao holocausto, que cumpriu a profecia. Há uma ligação direta e inegável entre as ações de Jesus, o Messias de Israel, e a restauração da soberania de Israel na terra prometida, pelos direitos humanos, embora o longo tempo passado desde a ressurreição. Foi o tempo de Deus.

Quando Israel reconhecer esse fato, que Jesus é o Messias, eles voltarão, como está escrito em Romanos 11, e eu acho que estamos perto disso. Talvez nossa geração, finalmente, seja a geração.

Na minha opinião, Israel tem que reconhecer Jesus como o Messias para que todos sigam seu exemplo, com sua fé, para serem alter christus, para que Deus possa viver conosco e através de nós.

Paz!

O juiz total, ou juiz holonômico

O juiz total, ou holonômico, é o oposto do juiz parcial, pois enquanto este está ligado a uma das partes aquele se vincula à comunidade como um todo, o que inclui as pretensões ideais das partes como integrantes de uma organização social, da plena acusação à ampla defesa. O juiz total é mais do que o juiz imparcial, ou seja, o que está entre as partes do processo, equidistante, porque naquele estão presentes todas as vontades de todas as partes com deveres e direitos previstos no sistema jurídico, podendo ser também chamado de magistrado pleno, ou completo.

No processo penal, por exemplo, e principalmente, uma vez que em debate eventos afetos aos bens jurídicos mais elevados de uma sociedade, o juiz total, holonômico ou completo atua, simultaneamente, como acusador e defensor, porque tem o compromisso com a decisão justa, isto é, que faça o peso da balança pender para o lado que o Direito determina. O juiz com a mínima consciência jurídica e social não pode permitir que, sob sua jurisdição, o réu potencialmente culpado seja absolvido por ineficiência da acusação, ou que o acusado sem responsabilidade pelo ilícito seja incriminado, para o que é necessário que exerça o poder-dever instrutório, de produção de provas de ofício, para esclarecer a realidade da culpa, a insuficiência de provas de sua ocorrência ou a inocência do acusado. Ainda que essa seja a mesma obrigação do promotor de justiça, não tem o juiz a vinculação psicológica ou a posição institucional, como titular da ação penal, daquele que formulou a peça acusatória, fato este que é capaz de prejudicar a mais perfeita isenção do membro do Parquet.

Quanto ao objeto da ação penal, o próprio sistema jurídico estabelece quais são os valores que devem ser protegidos pelo Estado, ditando os comportamentos que são nocivos à Vida e à integridade social. Nesse sentido, os fatos são tipificados abstratamente como ilícitos, tendo em vista uma ordem geral de mundo, um determinado sentido existencial. Assim, no processo, iniciada a investigação, é dever do juiz providenciar que a definição sobre a ocorrência do crime e a qualificação do fato seja a mais precisa possível, com a maior quantidade de circunstâncias, ou informações juridicamente relevantes, para permitir a certeza sobre a materialidade, a autoria, ou ausência de participação, e a tipicidade, responsabilizando o autor do delito, ou absolvendo o inocente e aquele contra quem não há prova suficiente de culpa, para permitir a recuperação, ainda que simbólica, da ordem de mundo rompida pelo ato ilícito.

Vale dizer que o juiz não tem compromisso com partes concretas, mas com partes ideais, enquanto membros de uma comunidade cônscios de seus direitos e deveres, à procura da verdade dos fatos, segundo as normas jurídicas vigentes, no sentido de buscar indícios que sustentam a acusação, enquanto houver elementos de culpabilidade, e, ao mesmo tempo, verificar todas as condições e situações favoráveis ao réu, uma vez que haja elementos probatórios que apontem para sua culpa, pois sem a prova de responsabilidade ou participação no delito a decisão satisfatória para o juiz, e para a comunidade, é a absolutória.

O magistrado total tem o compromisso com a máxima eficiência do Direito, como um todo, em sua integridade significativa e instrumental, incluído o Direito Processual, cujo objetivo é proporcionar a apreciação do mérito com qualidade, em termos fáticos e teóricos. O Direito, em si, tem uma função, pelo que as normas jurídicas são teleológicas, possuem finalidade, o que é determinado, em termos gerais, por exemplo, pelo artigo 3.º da Constituição Federal, ao dispor sobre os objetivos da República: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

E mesmo no Preâmbulo da Lei Maior são declarados os valores supremos de nossa sociedade: o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça.

A realização da justiça, portanto, é um valor e um objetivo da República, do Estado Brasileiro, estando incluída nessa empreitada, destarte, a absolvição dos inocentes e a responsabilização penal dos delinquentes, para que se arrependam, mudem de mentalidade, por meio do processo, tornando efetivas as normas penais, dando concretude aos valores liberdade e segurança dos cidadãos.

Por isso consta como dever do magistrado, conforme artigo 35 da Lei Orgânica da Magistratura, cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício, porque o Poder Judiciário tem especialmente a incumbência de ser o guardião da Constituição.

Assim, e para tanto, segundo o Código de Processo Penal, deve o juiz, de ofício, dentre outras, adotar as seguintes providências: declarar a extinção da punibilidade (art. 61); ordenar o sequestro dos bens imóveis, adquiridos pelo indiciado com os proventos da infração (arts. 125 e 127); proceder à verificação da falsidade (art. 147); instaurar o incidente de insanidade mental do acusado (art. 149); ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida, e determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante (art. 156); proceder a novo interrogatório (art. 196); determinar a busca pessoal ou domiciliar (arts. 240 e 242); impor medidas cautelares (art. 282); decretar, no curso da ação penal, a prisão preventiva (art. 311); aplicar interdições provisórias de direitos (art. 373); e, como presidente do Tribunal do Júri, determinar as diligências destinadas a sanar nulidade ou a suprir falta que prejudique o esclarecimento da verdade (art. 497, XI). São medidas que o juiz deve implementar, a bem da sociedade e do Direito, no processo penal, segundo sua capacidade e experiência pessoal, e sem que, por fazer isso, possa ser tachado de parcial ou suspeito.

O art. 251 do estatuto processual, por sua vez, dispõe que ao juiz incumbirá prover à regularidade do processo, sendo que, por força do art. 5.º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Outrossim, ninguém mais simboliza ou presentifica o Estado do que Estado-Juiz, que concretiza os valores e todo o sistema jurídico, o Estado de Direito, em sua atividade, nas decisões dos magistrados.

Daí porque o melhor juiz é o holonômico, é a Lei do todo em ação na parte desse todo, sem perda do sentido de totalidade; e o todo, o Direito, em sua integralidade e integridade, deve se fazer presente no processo e no julgamento mais especificamente por seus valores essenciais, porque o julgamento deve manifestar a essência do Estado de Direito, que é, substancialmente, promover a Justiça.

O juiz holonômico, finalmente, sabe que exerce uma função divina, e que será julgado por Aquele que lhe outorgou essa autoridade, porque a Lei do todo também se aplica aos julgadores, pois estes também estão sujeito a julgamento, tanto humano como divino.

Deus se levanta no conselho divino, em meio aos deuses ele julga: ‘Até quando julgareis injustamente, sustentando a causa dos ímpios? Protegei o fraco e o órfão, fazei justiça ao pobre e ao necessitado, libertai o fraco e o indigente, livrai-os da mão dos ímpios! Eles não sabem, não entendem, vagueiam em trevas: todos os fundamentos da terra se abalam. Eu declarei: Vós sois deuses, todos vós sois filhos do Altíssimo; contudo, morrereis como um homem qualquer, caireis como qualquer dos príncipes’. Levanta-te, ó Deus, julga a terra, pois as nações todas pertencem a ti!” (Salmo 82).

Quem é o inimigo?

Houve então uma batalha no céu: Miguel e seus Anjos guerrearam contra o Dragão. O Dragão batalhou, juntamente com seus Anjos, mas foi derrotado, e não se encontrou mais um lugar para eles no céu. Foi expulso o grande Dragão, a antiga serpente, o chamado Diabo ou Satanás, sedutor de toda a terra habitada — foi expulso para a terra, e seus Anjos foram expulsos com ele. Ouvi então uma voz forte no céu, proclamando: ‘Agora realizou-se a salvação, o poder e a realeza do nosso Deus, e a autoridade do seu Cristo: porque foi expulso o acusador dos nossos irmãos, aquele que os acusava dia e noite diante do nosso Deus. Eles, porém, o venceram pelo sangue do Cordeiro e pela palavra do seu testemunho, pois desprezaram a própria vida até à morte. Por isso, alegrai-vos, ó céu, e vós que o habitais! Ai da terra e do mar, porque o Diabo desceu para junto de vós cheio de grande furor, sabendo que lhe resta pouco tempo’. Ao ver que fora expulso para a terra, o Dragão pôs-se a perseguir a Mulher que dera à luz o filho varão” (Ap 12, 7-13).

O texto acima representa o momento histórico em que e a humanidade atual está inserida, um tempo de guerra, que já foi vencida no céu, restando pendente sua definição na terra, quando o inimigo da humanidade será acorrentado por mil anos, para que possamos, enfim, viver uma era de paz, até que, ao final, a guerra seja definitivamente vencida.

Mas qual o significado concreto disso tudo?

A passagem transcrita da Escritura se refere a um contexto teológico, político e religioso, inserido na narrativa bíblica de redenção da humanidade, porque houve, em algum momento da história, um rompimento da humanidade com Deus, com reflexo na relação dos homens entre si e com a natureza.

As questões climáticas e ecológicas são parte dos sintomas desse rompimento, são a reação da natureza à violação de suas leis pela espécie humana. Uma vez desrespeitado o sutil equilíbrio cósmico, nós sofremos as consequências, individual e coletivamente, de nossas ações.

O mesmo problema é verificado no âmbito das relações humanas, regulado pela política e pela religião, que, na realidade, são uma só e mesma coisa, fato que somente não é percebido pela cegueira do homem moderno, que, em sua empreitada unilateral decorrente do racionalismo iluminista, perdeu o contato com o sentido da vida, como exposto no artigo anterior.

A grande dificuldade está no fato de que poucos conseguem compreender que, em nome da ciência, a “civilização sucumbiu à fantasia”, sendo que a maioria não entende, de fato, o que acontece a sua volta, porque vive segundo as ideias do passado, e, o pior, segundo uma indevida interpretação dessas ideias, na medida em que as melhores ideias ainda são as do passado, notadamente as ideias de eternidade. Como bem falou Nietzsche no parágrafo 285 de “Além do bem e do mal ou prelúdio de uma filosofia do futuro”:

Os maiores acontecimentos e as maiores ideias — e as ideias maiores são também os maiores acontecimentos — são os últimos a serem compreendidos, as gerações contemporâneas não chegam a vivê-los — passam sempre ao lado deles. Acontece na vida como acontece entre os astros. A luz das estrelas mais longínquas chega mais tarde até nós e tanto que o homem que não as percebeu nega a sua existência. ‘Quantos séculos necessita um espírito para ser compreendido?’”.

Em que pese a loucura de Nietzsche, e sua falta de compreensão do plano mais elevado da realidade, algumas de suas críticas ao pensamento ocidental são válidas, uma vez que o Cristianismo, a principal ideia e o maior evento da história da humanidade, de fato, padece de falhas consideráveis na interpretação que prevaleceu, a começar pela separação artificial entre sociedade política e religiosa, a cidade de Deus e a cidade dos homens, ainda que ao tempo de sua formulação essa interpretação pudesse ter aparência de razoabilidade.

Assim, o maior evento da História ainda não é devidamente vivido, pois se passaram quase vinte séculos sem que Espírito de Cristo tenha sido adequadamente compreendido em sua correta significação política, porque, afinal, o Messias é o Rei dos Judeus, o que, inquestionavelmente, é uma questão de ordem política, e isso também vale para o adversário de Cristo, que age principalmente no mundo político.

O inimigo da humanidade, o Dragão, a Serpente, o Diabo ou Satanás, é o espírito que separa o homem de Deus, e esse espírito, como todo espírito, é invisível, e se manifesta através das ações humanas, pelo que nossos inimigos não são as pessoas, ainda que essas manifestem ou encarnem aquele espírito, dando-lhe expressão concreta, causando mal aos filhos de Deus.

Em sentido oposto, o amigo da humanidade é Cristo, que através de ações humanas manifesta o Espírito de Deus, encarnando a Razão Divina, o Logos, ao fazer o Bem.

Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos. Vós sois meus amigos, se praticais o que vos mando” (Jo 15, 12-14).

O Cristo é o servo fiel de Deus, que cumpriu sua missão de mostrar como o Rei, o governante, deve se portar, o que possui uma profunda realidade espiritual e religiosa, daí porque Jesus, o Messias, venceu a guerra no céu, mostrou o dever e o ser do verdadeiro governante, como deve agir, a serviço da Lei Perfeita, que é a Lei de Deus, sendo servo até a morte, dando a vida por seus amigos, e por isso, como Messias, ele é o Rei dos Reis.

Essa guerra já foi vencida no céu, no plano espiritual, no mundo das ideias, na teoria, porque não há exemplo melhor de governante do que o de Cristo, ou Messias, e esse é um exemplo antigo e eterno, que não pode ser superado, e será sempre uma luz contra a mentira e os desvios do poder, o que se apresenta em comportamentos egoístas arraigados na humanidade, que muitas vezes ocorrem sem que o percebamos, inconscientemente.

Pois o nosso combate não é contra o sangue nem contra a carne, mas contra os Principados, contra as Autoridades, contra os Dominadores deste mundo de trevas, contra os Espíritos do Mal, que povoam as regiões celestiais” (Ef 6, 12).

Esses espíritos povoam as regiões celestiais mas agem sobre as pessoas, e até Freud entendeu isso, fazendo com que os interesses individuais contrários à Lei Perfeita sejam realizados, em detrimento do próximo, quando o amor a si exclui o amor ao próximo, quando as vontades pessoais, familiares, partidárias ou ideológicas tentam falar mais alto que a Verdade, o que só pode ocorrer com sucesso de forma provisória, porque a Verdade é invencível, pelo que a guerra será também vencida na terra.

Por isso deveis vestir a armadura de Deus, para poderdes resistir no dia mau e sair firmes de todo o combate. Portanto, ponde-vos de pé e cingi os vossos rins com a verdade e revesti-vos da couraça da justiça e calçai os vossos pés com a preparação do evangelho da paz, empunhando sempre o escudo da fé, com o qual podereis extinguir os dardos inflamados do Maligno. E tomai o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a Palavra de Deus” (Ef 6, 13-17).

O que falta, portanto, é a guerra da prática, no plano terreno, no dia a dia, no cotidiano, pela ação conforme a verdade, com a Palavra de Deus, com a Razão, com Logos, inicialmente em nós mesmos, e depois pela pregação ou proclamação da Verdade, para que, enfim, o inimigo seja vencido, individual, pelo exemplo de Cristo, e coletivamente, pela encarnação de seu Espírito, quando as pessoas o compreenderem e passarem a viver encarnando o Logos, ou Vontade Deus, também no âmbito político.

Seja feita Vossa vontade, assim na terra como no céu”.

Cosmos e transcendência

Cosmos e transcendência: rompendo a barreira da crença cientificista” é o mais recente livro de Wolfgang Smith traduzido para o português, lançado originalmente em 1984, em língua inglesa. Já foram editados, em português, do mesmo autor, “O enigma quântico: desvendando a chave oculta”, “Ciência e mito” e “A sabedoria da antiga cosmologia”, obras essas escritas depois de “Cosmos e transcendência”. Consta na orelha deste livro, ora em comento, que “suas pesquisas e artigos em aerodinâmica e campos de difusão forneceram a chave teórica para a solução de problemas de reentrada na atmosfera em viagens espaciais”, tendo Wolfgang Smith obtido Ph.D. em Matemática pela Columbia University, e também foi professor no MIT e na University of California. Trata-se, portanto, de alguém com grande conhecimento teórico e prático, e não de um simples criador de ideias fantasiosas.

Na apresentação, consta a seguinte mensagem de Harry Oldmeadow:

Como este livro não poderia deixar mais claro, a Revolução Científica do século XVII proclamou o triunfo de uma determinada cosmovisão científica (racionalista, materialista), com sua epistemologia (o empirismo) e seus procedimentos (o ‘método científico’). Ao contrário do que supõe o vulgo, a ciência moderna não é tão somente um modo desinteressado, desapegado e não-valorativo de investigar o mundo material: é um complexo de disciplinas e técnicas que se ancora todo ele em pressupostos e atitudes de base cultural, relativos à natureza da realidade e às maneiras mais apropriadas de explorar os fenômenos materiais, explicá-los e, talvez mais significativamente, controlá-los. Com efeito, seria impossível separar dos métodos da ciência moderna as suas teorias e as ideologias que fornecem a sua força motriz – e é a esse novelo emaranhado, ou, no dizer de Wolfgang Smith, aos pressupostos inverificáveis assumidos pelas proposições ‘verificáveis’ da ciência, que o autor aplica o termo cientificismo” (Cosmos e transcendência, p. 9).

No capítulo I é tratado o tema do universo físico, objeto de estudo da Física, relativo às coisas que podem ser descritas em termos matemáticos, do qual é excluído tudo o que não pode ser reduzido a extensão e número. A ideia de universo físico decorre de um pressuposto metafísico que divide a realidade em dois mundos, um extenso e um pensante, o que remonta a Galileu e Descartes, que foi assumido por Newton, e daí penetrou no pensamento científico ainda vigente. Newton adotou a metafísica bifurcacionista, e fortaleceu a “filosofia experimental”, que prevaleceu quase absoluta por duzentos anos, até ser questionada pela relatividade.

Pela física clássica, associada a Newton, o homem era um mero espectador local de um mecanismo eterno, em um espaço absoluto e um tempo absoluto. Contudo, a relatividade passou a exigir a adoção de referenciais, concluindo que não há o espaço e o tempo absolutos da física clássica, tendo a orgânica quântica, então, obrigado o cientista a “admitir que o conhecimento científico é irremediavelmente fenomênico – um conhecimento não de coisas em si mesmas, mas de coisas em relação ao observador” (Cosmos e transcendência, p. 28). Pode-se notar, claramente, por essa citação, que Wolfgang Smith adota uma postura kantiana perante a realidade, pelo que, em que pese o brilhantismo de sua obra, talvez sua posição filosófica, por mais que evolua para superar o materialismo, ainda não seja o que de melhor a razão humana desenvolveu.

Uma vez que a investigação científica, portanto, é o estudo de nossa relação com o cosmos, conclui o autor que o postulado da bifurcação provou-se carente de aval científico, passando a uma ideia opcional, ou seja, “um pressuposto metafísico, que se sustenta ou se derruba em bases estritamente filosóficas” (Idem, p. 33).

O dualismo cartesiano mente-corpo, ou postulado da bifurcação, decorreu da concepção segundo a qual apenas o universo extenso pode ser descrito em termos mecânicos, com leis que regulam o movimento da res extensa, ou matéria, no espaço.

Todo o resto fica relegado a res cogitans, ou substância pensante, que existe por si só como uma espécie de entidade espiritual. É digno de nota que a res cogitans surge a Descartes logo no início das suas meditações como a uniquíssima certeza imediata – o famoso cogito ergo sum –, ao passo que a existência do universo mecânico, âmbito externo à res cogitans, é alcançada só depois por meio de um argumento lógico construído sobre a ideia de Deus e Sua veracidade. É mesmo uma ironia assinalável que a premissa básica do materialismo moderno se tenha fundado sobre a teologia!” (Idem, p. 39)

Wolfgang Smith narra que, a despeito do sucesso do universo mecânico como “doutrina oficial da ciência”, houve quem questionasse seus fundamentos, como George Berkeley, ao sustentar, sobre as coisas não pensantes, que “não podem elas ter existência fora da mente ou da coisa pensante que as percebe”, e que “não há outra substância além do Espírito, ou aquilo que percebe” (Apud Wolfgang Smith, obra citada, p. 42).

Depois veio Kant com sua tentativa de superar o entendimento de Hume, valendo ressaltar que, do mesmo modo como Descartes, aquele:

estava preocupado em apoiar a ciência da mecânica sobre uma firme base teológica. Escutara atento a corrente controvérsia filosófica e entendera que o busílis da questão se encontrava num abismo intransponível entre o cientista e seus objetos. A solução kantiana para o problema resumia-se em puxar os objetos para o lado de cá daquele abismo” (Idem, pp. 42-43).

Wolfgang Smith destaca que Kant, de seu modo, resolve o problema da bifurcação de uma forma compatível com a situação atual da física, segundo a qual o objeto da ciência é nossa relação com o cosmos. Depois cita Edmund Husserl e Alfred North Whitehead, que “são as figuras de maior destaque na refutação filosófica contemporânea da premissa cartesiana”, dizendo, então, que foi dado o “veredicto no julgamento filosófico da cosmovisão ‘científica’: o pressuposto básico dela provou-se insustentável” (Idem, p. 50).

Ainda assim, apesar da “derrocada da física clássica”, a mentalidade dos cientistas continua atrelada à metafísica newtoniana, e a despeito de uma certa sofisticação sobre as noções básicas da ciência, adquirida em razão da física moderna, as questões fundamentais do conhecimento continuam sendo abordadas em um “clima de superficialidade – um pluralismo leviano – que evita e escamoteia o problema básico em vez de resolvê-lo” (Idem, p. 53), porque nossa cosmovisão científica continua a “repousar sobre as velhas fundações newtonianas”, sustentadas pela doutrina cartesiana, sendo que, “apesar de tudo o que se desenrolou no transcurso dos últimos três séculos e meio, essa contestadíssima hipótese ainda constitui o alicerce metafísico da ciência moderna, implicado, como já vimos, pelo próprio conceito de universo físico” (Idem, p. 54).

Este conceito de universo físico, contudo, “é alheio à física num plano técnico e, assim, pouco passa de um capricho pessoal, um tineta desprovida de aval científico” (Idem, pp. 54-55), sendo que a comunidade científica está alheia a esse problema fundamental da ciência.

Isso nos leva, enfim, à conclusão aparentemente paradoxal de que a cosmovisão associada à mais exata das ciências está inçada de equívocos fundamentais. Segue fugindo ao entendimento convencional que a Weltanschauung pretensamente científica se baseia não em legítimas descobertas da ciência, mas em pressupostos filosóficos ocultos que se revelam em última análise autocontraditórios. Em nome da física, a civilização sucumbiu à fantasia” (Idem, p. 57).

Em seguida, Wolgang Smith informa que o cientificismo significou a perda do sentido de transcendência, do entendimento cristão de que o cosmos é uma teofania, ou manifestação de Deus; demonstra que a evolução é apenas uma hipótese geral, ao invés de significar um fato científico incontroverso; e questiona o entendimento da psicologia do século XX, tanto em relação a Freud como Jung.

Ao final, o autor aborda a questão da cosmologia, assunto que será melhor desenvolvido no livro “A sabedoria da antiga cosmologia”, citado mais acima, narrando que a cosmologia é uma doutrina referente ao cosmos em sua inteireza, afirmando que:

as coisas da natureza apontam para além de si próprias; ainda que sejam corpóreas, falam de domínios incorpóreos – são símbolos. Existe mesmo uma correspondência analógica entre os vários planos: ‘como em cima, assim em baixo’, segundo reza o axioma hermético. Não nos esqueçamos que apesar da sua estrutura hierárquica o cosmos constitui uma unidade orgânica, muito afim à unidade orgânica de mente, alma e corpo que podemos vislumbrar em nós mesmos. Acaso o rosto não espelha emoções, os pensamentos ou até o próprio espírito do homem? Viemos a perder de vista que também o cosmos é um ‘animal’, como observavam os filósofos antigos” (Idem, pp. 196-197).

Assim, falando de “coisas que apontam para além de si próprias”, remeto, finalmente, o leitor ao meu artigo “Transcendência imanente” (https://holonomia.com/2017/09/14/transcendencia-imanente/), com uma proposta para resolver o problema da transcendência, que, na linha adotada por Descartes e Kant, é fundada na Teologia, que, de fato, é o fundamento de toda Ciência.

Teologia Cristã em Paulo

A Teologia é uma realidade onipresente na vida moderna, ainda que poucos o percebam, porque os temas teológicos fundamentais são dados como certos pela maioria absoluta das pessoas, estão arraigados nas visões de mundo e nas filosofias que lhes são subjacentes, em suas linhas gerais de pensamento. Na vida cotidiana estão implícitos conceitos desenvolvidos teológica e filosoficamente, que repercutiram, direta e indiretamente, nas variadas ciências, da Física ao Direito, porque a revolução científica, por exemplo, foi baseada em uma visão deísta de ordem do mundo e a dignidade humana é fruto do desenvolvimento filosófico do Cristianismo.

Na tradição ocidental, é possível dizer que, desde o tempo de Jesus, estamos em um processo de mutação teológica, de mudança na compreensão de Deus e de sua ação sobre o mundo, o que teve reflexo na atividade filosófica e científica de grandes pensadores, de Agostinho a Tomás de Aquino, de Descartes a Newton e Galileu.

Assim, é fundamental o retorno à análise dos fundamentos teológicos, filosóficos e científicos que embasam nossa visão de mundo, com destaque para Paulo, o primeiro e grande sistematizador das ideias relativas a Cristo.

Recomendo, pois, o vídeo “Why and How Paul Invented ‘Christian Theology’” (Por que e como Paulo inventou a ‘Teologia Cristã’ – https://www.youtube.com/watch?v=Y4CY73psVFQ), uma palestra proferida pelo teólogo N. T. Wright, no seu trabalho de trazer uma nova perspectiva sobre o significado da mensagem de Paulo, que tem o sentido de ensinar os membros da igreja a pensar de uma nova forma, entendendo como Jesus, o Messias de Israel, revelou, por sua vida, morte e ressurreição, a nova criação de Deus. O que segue é um resumo da referida palestra:

Na abordagem de Paulo, segundo Wright, é ensinado ao Cristão não se conformar com o tempo presente, mas viver na nova era já iniciada por Jesus, devendo o seguidor de Cristo aprender a pensar, e não apenas a se comportar, de acordo com a era inaugurada por Cristo. Assim, a nova comunidade tem uma nova mentalidade, vinculada a Jesus, como Messias, e à nova criação por ele aberta, o Reino de Deus, que possui um modo próprio de pensamento. Indo além das abordagens filosóficas da época, pelas suas disciplinas fundamentais, que eram a física, a ética e a lógica, Paulo direcionou tal conhecimento à cosmovisão do judaísmo, de um modo como ninguém havia feito anteriormente, redefinindo o povo de Deus em termos judaicos e não judaicos, e ensinando a pensar como o Messias.

Em seus escritos, Paulo estimula a comunidade a viver em unidade e em santidade, sendo exigido grande esforço para que a manutenção da unidade não prejudique a santidade, e para que a santidade não se dê pela fragmentação do corpo da comunidade a cada desacordo, o que prejudicaria a unidade. Para tanto é necessário ensinar as pessoas a pensar em termos messiânicos, de modo que a Teologia Cristã seja uma tarefa, uma vocação e uma atribuição de todo Cristão, porque somente assim é concebível que haja a unidade e a santidade da comunidade, como um processo de pensamento que se torne uma realidade.

Paulo está, assim, ensinando a transformação mental da nova era, do Reino de Deus inaugurado pelo Messias de Israel, Jesus. O objetivo de suas cartas, como das Escrituras, é ensinar a direção da viagem do povo de Deus para a era messiânica que já começou com a ressurreição, fazer com que as pessoas aprendam a pensar de modo diferente e a descobrir a rota a seguir, pelo que desafia seus ouvintes a pensar teologicamente, a fazer Teologia Cristã como uma tarefa compartilhada, para amadurecer na nova forma de pensar.

Portanto, pelo conforto que há em Cristo, pela consolação que há no Amor, pela comunhão no Espírito, por toda ternura e compaixão, levai à plenitude a minha alegria, pondo-vos acordes no mesmo sentimento, no mesmo amor, numa só alma, num só pensamento, nada fazendo por competição e vanglória, mas com humildade, julgando cada um os outros superiores a si mesmo, nem cuidando cada um só do que é seu, mas também do que é dos outros” (Fl 2, 1-4).

Essa atividade só é possível pela mente do Messias, com humildade e abandono de si ao amor. No Messias é oferecida a salvação, mas para isso é necessário seguir o seu exemplo, e o do próprio Paulo, pensando como o Messias, aprendendo a pensar com a mente do Messias, pelo que o desenvolvimento da Teologia Cristã é um trabalho de toda a igreja, de toda a comunidade e de seus integrantes.

O destaque dessa Teologia é a morte e a ressurreição de Jesus, o Messias, que não fazia o menor sentido para o pensamento da época, para judeus ou pagãos, e ainda assim, por mais que absurda tal ideia pudesse ser e pareça, é o marco inaugural do novo mundo, não apenas como um mundo diferente, mas como a transformação do velho mundo a partir de dentro, o que contrariava o senso comum antigo, era uma coisa sem sentido, assim como a ideia de uma comunidade unida em santidade. Nesse processo de mudança entre o mundo velho e o novo, os seguidores do Messias devem ser transformar, pela renovação de sua mentalidade, o que não acontece automaticamente, sendo, na verdade, uma atividade que está em curso desde a ressurreição de Jesus, de formação de uma nova humanidade a partir de uma nova forma de pensamento, uma comunidade de membros com a mente desperta e com plena responsabilidade, porque o Reino de Deus é feito de pessoas, e não de fantoches.

Há uma nova sabedoria desde Cristo, que deve ser buscada por seus seguidores, o que faz com que estes sejam todos teólogos, e não meros dogmáticos, pensando como o povo do Reino de Deus, que vive no mundo da Escritura, em que há um Deus a Quem todas as coisas pertencem, e na mente do Messias.

De Iahweh é a terra e o que nela existe, o mundo e seus habitantes” (Sl 24, 1)

No ponto, Paulo era um judeu, e recitava regularmente a Shemá, a profissão de fé do Monoteísmo, segundo a qual há somente um Deus.

não há outro Deus a não ser o Deus único. Se bem que existam aqueles que são chamados deuses, quer no céu, quer na terra — e há, de fato, muitos deuses e muitos senhores —, para nós, contudo, existe um só Deus, o Pai, de quem tudo procede e para quem nós somos, e um só Senhor, Jesus Cristo, por quem tudo existe e por quem nós somos” (1Cor 8, 4-6).

A Teologia Cristã inventada por Paulo é uma atividade que significa aprender a pensar e a viver na narrativa das promessas feitas a Abraão e a Israel, que se realizaram em Jesus, quando Deus agiu de forma chocante, surpreendente, mudando o mundo, por sua ressurreição, o que foi o cumprimento daquelas antigas promessas.

A atividade teológica de Paulo incluiu o antigo mundo pagão, cuja filosofia abordava as questões de física, ética e lógica, sendo a física a origem do mundo, a ética sobre o comportamento adequado e a lógica a ciência do conhecimento correto. Havia, de outro lado, uma nova física no novo mundo, criado em Jesus, transformado do antigo, e não uma criação ex nihilo; uma nova ética, exigindo que as pessoas vivam com discernimento das coisas, com novos comportamentos; e um novo conhecimento, decorrentes da nova mente do Messias.

Assim, Paulo inventou a Teologia Cristã porque apenas quando a comunidade, ou igreja, está engajada nessa atividade há alguma esperança de realização das virtudes da unidade e da santidade. O trabalho de refletir sobre Deus, sobre o povo de Deus e o futuro de Deus é, assim, a novidade de Paulo, pois esse modo de pensar não ocorria no mundo judeu ou não judeu.

Paulo ensina a pensar uma narrativa escriturística reconfigurada pela mente do Messias, até que essa forma pensar e esse conhecimento encham toda a Terra e toda a criação; e que uma visão judaica da nova criação a partir do Messias é o fundamento para o engajamento criativo de um mundo mais amplo, o que é a disciplina da Teologia Cristã.

Em outras exposições muito pertinentes, “Gifford Lectures 2018” (https://www.youtube.com/watch?v=zdUM0ZB5zT0&list=PLv797D4CCFPAyZfVlS02nzhFD-l2GgHf4), que também ficam indicadas, N. T. Wright aborda o tema do Reino de Deus, esquecido pela Teologia Cristã.

Saindo das lições de Wright, é possível entender que a atual divisão da sociedade seja a consumação de profecias do próprio Jesus, até que, enfim, a comunidade possa se tornar unida e santa, no Reino de Deus.

“‘Pensais que vim para estabelecer a paz sobre a terra? Não, eu vos digo, mas a divisão. Pois doravante, numa casa com cinco pessoas, estarão divididas três contra duas e duas contra três; ficarão divididos: pai contra filho e filho contra pai, mãe contra filha e filha contra mãe, sogra contra nora e nora contra sogra’.

Dizia ainda às multidões: ‘Quando vedes levantar-se uma nuvem no poente, logo dizeis: ‘Vem chuva’, e assim acontece. E quando sopra o vento do sul, dizeis: ‘Vai fazer calor’, e isso sucede. Hipócritas, sabeis discernir o aspecto da terra e do céu; e por que não discernis o tempo presente? Por que não julgais por vós mesmos o que é justo? Com efeito, enquanto te diriges com teu adversário em busca do magistrado, esforça-te por entrar em acordo com ele no caminho, para que ele não te arraste perante o juiz, o juiz te entregue ao executor, e o executor te ponha na prisão. Eu te digo, não sairás de lá antes de pagares o último centavo’” (Lc 12, 51-59).

No Brasil, enquanto um certo ex-presidente e seus seguidores não entenderem a mensagem mais profunda da passagem acima, e o significado de verdade e santidade, e isso também vale para seus opositores, nossa comunidade continuará dividida…

O cristianismo, se for falso, não tem valor; se for verdadeiro, tem valor infinito. A única coisa que lhe é impossível é ser ‘mais ou menos’ importante”. C. S. Lewis