Não existe uma contraposição necessária entre filosofia e enciclopédia, mas há contradição real entre essas ideias na atualidade, porque o entendimento da primeira acabou se confundindo indevidamente com o da segunda, resultando num amontoado amorfo de conhecimento, com prejuízo para a coerência intelectual que é inerente àquela.
Filosofia é a palavra que une dois conceitos, amor e sabedoria, significando amor à sabedoria, sendo certo que esse amor pode ser manifestado em elaboração e leitura de uma enciclopédia, palavra que tem origem em dois termos gregos enkyklos (geral, circular) e paideia (educação). Portanto, há uma ligação entre filosofia e enciclopédia, porque a sabedoria está associada a uma forma de educação geral, sobre todo o conhecimento, ou o máximo e mais importante conhecimento disponível, mas não se pode perder a unidade intrínseca àquela autêntica sabedoria.
Este texto é inspirado no livro “Three Rival Versions of Moral Enquiry: Encyclopaedia, Genealogy, and Tradition”, de Alasdair Macintyre, que comecei a ler na última semana; e ainda que a leitura esteja no terceiro capítulo, já é possível antecipar uma ampla concordância com a tese do autor, o qual demonstra os problemas enfrentados tanto pelo entendimento representado pela “Enciclopédia Britânica” como pelo decorrente das ideias de Nietzsche em “Genealogia da Moral”, desenvolvidas no trabalho de Foucault, o qual, segundo Macintyre, acabou se baseando em padrões atemporais e impessoais de verdade, referência e racionalidade que se mostram inconsistentes com o projeto genealógico baseado em Nietzsche.
O livro de Macintyre é a exposição de suas Gifford Lectures, proferidas em 1987, sendo que essas lectures (palestras) resultaram da vontade testamentária de Adam Gifford, que desejava a promoção do conhecimento humano, demandando que todos os palestrantes tratassem seus temas estritamente como ciência natural.
Vale dizer que conheci as Gifford Lectures ao mesmo tempo em que tive ciência do trabalho de Tom Wright, cujos ensinamentos foram fundamentais para consolidar meu entendimento do Cristianismo, porque ele ressalta a importância da ideia política do Reino na mensagem de Cristo. As palestras de Tom Wright estão disponíveis no YouTube e no sítio “The Gifford Lectures” (https://www.giffordlectures.org/lectures/discerning-dawn-history-eschatology-and-new-creation).
No primeiro capítulo de seu livro, Macintyre destaca o projeto de Adam Gifford, que considerava a Teologia Natural uma Ciência ainda em formação, e daí o realce para esse tema em suas palestras, e enfatizava a necessidade de adequadas metodologia e atenção aos primeiros princípios: “If first principles have not been truly carried out… then be sure that sooner ou later we must begin again, for nature will find out our failure…” (Apud Alasdair Macintyre. Three Rival Versions of Moral Enquiry: Encyclopaedia, Genealogy, and Tradition. University of Notre Dame: Notre Dame, 1990, p. 22). Se os primeiros princípios não foram verdadeiramente realizados… esteja certo, então, de que mais cedo ou mais tarde devemos começar de novo, porque a natureza descobrirá nossos erros…
Macintyre salienta que havia um pensamento comum no tempo de Adam Gifford, no fim do século XIX, no sentido de que era reconhecida por todas as pessoas educadas a existência de uma única concepção substantiva de racionalidade, o que não mais ocorre em nosso tempo, porque participamos de uma cultura em que há um debate entre alternativas e conflitantes concepções de racionalidade, com inafastáveis reflexos nas ideias morais. Pelo que se deduz da introdução do livro, as três versões de rivais de moralidade que ele enfrenta são representadas pela Nona Edição da Enciclopédia Britânica, por Genealogia da Moral e pela Encíclica Aeterni Patris, do Papa Leão XIII.
A razão de rejeitar a proposta de Genealogia da Moral foi sumariamente exposta acima. O autor salienta, em outra vertente, que pelo entendimento da Enciclopédia a Filosofia era a Ciência do todo, que reunia em si, como uma síntese, os conhecimentos parciais das ciências, que eram compartimentados, enquanto para Adam Gifford era a Teologia Natural a maior de todas as possíveis ciências, e a única Ciência (Idem, p. 23).
Tendo a concordar com Gifford, porque também concebo a Teologia Natural como a mãe das ciências, a autêntica Ciência, da qual dependem todas as demais, sem prejuízo de conceber, em termos aristotélicos, tal Teologia Natural como equivalente à Filosofia Primeira, ou Metafísica, ligada ao estudo dos primeiros princípios, o que talvez seja abordado ao longo do livro, porque a Encíclica Aeterni Patris, do Papa Leão XIII, tem referenciais tomistas, vinculados às ideias de Aristóteles. Em termos cristãos, vale dizer, não há como afastar essa identidade, porque o seu primeiro princípio é o Logos, conceito que abarca tanto a Filosofia grega como a Teologia judaica, entendendo-o como a Sabedoria ou Inteligência primeira segundo a qual todas as coisas foram criadas, em que tudo está ligado, para além de qualquer compartimentação: No princípio era o Logos, Deus era o Logos, através do qual todas as coisas vieram à existência.
Mas a concepção unitária de racionalidade e de mente racional que predominava no século XIX não mais existe, incluída aquela subentendida constante da Enciclopédia Britânica em sua Nona Edição, porque a Décima Quinta Edição, que circulava no tempo das palestras proferidas por Macintyre, já expressava uma dissolução da posição enciclopedista.
“Heterogeneous and divergent contributions, which recognize the diversity and fragmentation of standpoints in central areas, are deeply at odds with the overall scheme, insofar as that scheme presupposes any real unity to the work, rather then merely providing some organization for a massive work of reference (…). The encyclopaedic mode of enquiry has become one more fideism and a fideism which increasingly flies in the face of contemporary realities” (Idem, p. 56). Contribuições heterogêneas e divergentes, que reconhecem a diversidade e fragmentação de pontos de vista em áreas centrais, estão profundamente em desacordo com o esquema geral, na medida em que referido esquema pressupõe uma unidade real para o trabalho, ao invés de apenas fornecer alguma organização para uma grande obra de referência (…). O modo enciclopédico de investigação tornou-se mais um fideísmo e um fideísmo que cada vez mais se opõe às realidades contemporâneas.
O que prejudica, portanto, a unidade intelectual da enciclopédia é a ausência de uma verdadeira linha filosófica que lhe dê consistência racional, que talvez já estivesse presente nem mesmo quando da Nona Edição. Por maior que seja o conhecimento enciclopédico, sem uma vinculação filosófica, espiritual, tal não será verdadeiramente conhecimento, mas um amontoado de informações que não se consegue processar em unidade intelectual.
Portanto, ainda que os últimos séculos tenham representado um enorme acúmulo de informações e conhecimentos parciais, a humanidade continua mergulhada em ignorância quanto às realidades mais fundamentais, porque a Filosofia, ou Teologia, permanece excluída do debate sobre as questões essenciais. Considerando que o conhecimento enciclopédico peca pela desunidade racional, descambando para uma espécie de fé, disso decorre que o retorno a Deus, à Sua Sabedoria, que proporciona a Unidade Inteligente de todas as coisas, é inevitável, porque é melhor a fé na ideia de um Deus que formou nossa civilização, funda os direitos humanos, do que um fideísmo vazio, sem verdadeiro conteúdo.
“Não lhes bastou somente errar acerca do conhecimento de Deus, pois vivendo na grande guerra da ignorância, a tais males proclamam paz!” (Sb 14, 22).
Com esse retorno, o verdadeiro conhecimento encherá a terra.
“Ninguém fará o mal nem destruição nenhuma em todo o meu santo monte, porque a terra ficará cheia do conhecimento de Iahweh, como as águas enchem o mar.” (Is 11, 9)
Para tanto, é necessário que a honra devida seja dada ao Criador, que Ele seja reconhecido como Deus, Princípio de todas as coisas, exigindo-se a negação do princípio caótico como formador do mundo e da inteligência, porque para este a racionalidade é meramente acidental, o que vale para a razão da enciclopédia, assim como é indispensável dar valor aos seus mensageiros, com destaque para Cristo, que de modo inigualável expressa Sua Palavra, Seu Logos, urge, assim, seja a enciclopédia submetida ao Logos, que é a única razão, a racionalidade unitária capaz de dar inteligibilidade a todos os ramos do conhecimento, e a consequência de tal proceder é nada menos que a verdadeira paz.
“Iahweh é exaltado, pois está entronizado nas alturas; ele assegura abundantemente a Sião o direito e a justiça. Nisto estará a segurança dos teus dias: a sabedoria e o conhecimento serão a riqueza capaz de salvar-te, o temor de Iahweh, eis o seu tesouro” (Is 33, 5-6).