A unidade entre corpo e alma

O presente artigo continua o anterior, fruto da leitura de trabalhos de Gottfried Wilhelm Leibniz, incluídos em “A Monadologia e outros textos”, agora mais especificamente os outros escritos constantes na citada obra, que vale a pena ser adquirida e lida, para os interessados em temas filosóficos, porque o custo-benefício é excelente.

No livro há um texto chamado “Sistema Novo da Natureza e da Comunicação das Substâncias”, e chega a ser impressionante o nível de acerto do autor em determinados pontos, segundo penso, como é igualmente inexplicável o motivo de tal abordagem não ser mais difundida. Na realidade, tal fato é plenamente compreensível, de outro lado, pela rejeição de uma visão espiritual de mundo, o que era o comprometimento intelectual do autor em questão, como se extrai de seus textos.

Inicialmente, é possível dizer, a partir do aludido escrito de Leibniz, um grande matemático e filósofo, que ele antecipou em nada menos que duzentos anos os conceitos fundamentais da teoria da relatividade de Einstein, exigindo seja reduzida proporcionalmente a importância dada a este último, sem, evidentemente, desmerecer seu trabalho, que inequivocamente contribuiu para o avanço científico.

Essas considerações, por mais metafísicas que possam parecer, são, contudo, maravilhosamente úteis na física por fundamentarem as leis do movimento, como minha Dinâmica será capaz de demonstrar. Podemos, pois, afirmar, que quando dois corpos colidem cada um é afetado apenas por sua própria elasticidade, causada pelo movimento que nele já existe. E no que diz respeito ao movimento absoluto, nada pode determiná-lo matematicamente, desde que tudo consiste de relações: o resultado sendo aquele em que há sempre uma equivalência perfeita de teorias, como na astronomia; de modo que, seja qual for o número de corpos que tomemos, deveremos arbitrariamente especificar ou o repouso ou algum grau de velocidade àquele que preferirmos, sem que nos seja possível ser refutados pelos fenômenos do movimento, se em uma linha reta, em uma circunferência ou em um composto. É ainda razoável, todavia, em conformidade com a noção de ação que estabelecemos aqui, atribuir movimentos autênticos aos corpos de acordo com o que se explicam os fenômenos do modo mais inteligível” (Gottfried Wilhelm Leibniz. A Monadologia e outros textos. Org. e trad. Fernando Luiz Barreto Gallas e Souza. São Paulo: Hedra, 2009, pp. 69-70).

Na passagem transcrita, Leibniz mostra uma divergência fundamental com Newton, quanto à questão do movimento absoluto, negado por aquele e defendido por este, tema no qual a atual leitura relativística indica o acerto do primeiro. Contudo, entendo que, uma vez considerada a expansão cósmica, que representaria um movimento constante em relação a todos os corpos existentes no universo, poder-se-ia falar em alguma espécie de movimento absoluto, que talvez não seja matematicamente formulável, como defendido por Leibniz, mas conceitualmente inteligível quando sincronizados os movimentos individuais relativos com o movimento da totalidade cósmica representado por aquela expansão, hoje atribuída ao que se chama de “energia escura”, a partir de uma singularidade inicial.

Mas para além da questão do movimento material, é digna de nota a abordagem de Leibniz quanto à sua interpretação metafísica ou teológica do universo, postulando, como um pensador monoteísta coerente, no texto “Sobre a origem fundamental das coisas”, que é necessário admitir Deus como “a razão fundamental e extramundana das coisas” (Idem, p. 72) para que se possa compreender como “uma espécie de Matemática Divina, ou Mecanismo Metafísico, é utilizada na criação das coisas e como a determinação de um máximo encontra lugar” (Idem, p. 74).

O teólogo em exame não consegue fugir de algum entendimento mecanicista de mundo, manifestado nas palavras usadas nos seus textos, o que era comum naquele tempo, constando no apêndice do citado livro, ao transcrever nota do Dicionário Histórico e Crítico de Pierre Bayle, em menção ao trabalho de Leibniz:

Ele (Leibniz) esclarece seu pensamento através do exemplo de dois relógios que estão perfeitamente sincronizados: isto é, ele supõe que, segundo as leis particulares que fazem agir a alma, ela deve sentir fome em um instante; e que, segundo as leis particulares que regem o movimento da matéria, o corpo que está unido àquela alma deve ser modificado quando a alma tem fome” (Idem, p. 104).

Tal passagem se refere ao entendimento de Leibniz sobre a relação entre corpo e alma, uma vez que ele rejeitava a ideia de causas ocasionais referidas por Descartes para explicar a ligação dos movimentos da alma com os do corpo. E a analogia com o relógio ainda existe, uma vez que um dos principais autores ateus da atualidade, Richard Dawkins, escreveu a obra “O Relojoeiro Cego” defendendo uma determinada ideia de seleção natural, cujo título faz referência ao pensamento deísta que via o mundo como uma máquina, como um relógio criado por Deus.

Tal tema é atualíssimo, porque referente ao entendimento sobre a consciência, a conexão entre mente e cérebro (corpo), sendo questão relativa à mais fundamental natureza humana, sobre a existência da alma e do Espírito. As respostas dadas a essas indagações partem de pressupostos metafísicos ou teológicos distintos, com suas várias possibilidades: o monismo materialista, entendendo que a alma é uma ilusão, um mero epifenômeno da bioquímica cerebral; algum tipo de dualismo, como o cartesiano, sustentando a existência de duas substâncias, ou o leibniziano, da sincronia entre alma e corpo; ou um monismo espiritual, do tipo oriental, dizendo que ilusória é a realidade material.

Leibniz afirmava que as almas possuem internamente a representação de todo universo, cada uma de seu ponto de vista, possuindo perfeita harmonia com as coisas que estão fora das almas, regidas pelas leis do mecanismo corporal. “E como a natureza da Alma é representar o universo de um modo muito exato (embora com maior ou menor nitidez), a sucessão de representações que a Alma produz para si mesma irá naturalmente corresponder à sucessão de mudanças no próprio universo” (Idem, p. 67). Desse modo, há também um dualismo no entendimento do autor, por não haver interferência nos mecanismos das leis do corpo com a atividade da alma, porque tudo que ocorre nesta é originado de sua constituição original, como representação de todo universo, expressando cada coisa externa no seu devido tempo, pela harmonia conferida por Deus a todas as coisas.

Por mais louvável e coerente que seja a tentativa de Leibniz, considero necessário superar o entendimento dualista, como também penso serem inaceitáveis os monismos materialista e espiritualista, porque acabam negando a importância do espírito ou da realidade corporal, ainda que, em favor das ideias orientais, deva ser dada prioridade ao plano espiritual, que é, em última análise, de fato, mais real que o corporal. Portanto, é crucial pensar uma forma de monismo integral, e para tanto pode-se ver como indispensável uma nova formulação teológica que abarque a questão, porque o tema da conexão entre e corpo e alma é fruto de uma prévia concepção teológica ou filosófica da realidade, tanto no que diz respeito ao materialismo ateísta como nas versões espiritualistas ocidentais e orientais, incluídos os dualismos de toda sorte.

Inicialmente, vale dizer que concordo com Leibniz quando diz que “Deus é a unidade primitiva” (Idem, p. 34), que “todo corpo se ressente de tudo que se faz no universo, de tal modo que Aquele que tudo vê poderia ler em cada um o que se faz em toda parte e até o que foi ou erá feito, observando no presente o que está afastado tanto nos tempos como nos lugares” (Idem, p. 37), que as almas racionais são “imagens da própria Divindade ou do próprio Autor da Natureza, capazes de conhecer o sistema do Universo e de imitar algo dele por intermédio de amostras arquitetônicas, sendo cada Espírito como uma pequena divindade em seu domínio” (Idem, p. 41), bem como que “as formas constitutivas das substâncias devem ter sido criadas com o mundo e devem sempre subsistir” (Idem, p. 60).

Leibniz entende espíritos como almas racionais, constando no glossário do livro citado que “espírito é uma alma virtualmente reflexiva, uma substância capaz de agir por si mesma. Cada espírito é uma expressão do universo, uma representação viva do universo como um todo” (Idem, p. 109).

Nesse ponto, entendo que há uma questão teológica a ser enfrentada, pois tenho um entendimento monoteísta no sentido de que é mais acertado dizer que há apenas um Espírito, Deus. Em termos escriturísticos “Deus é Espírito” (Jo, 18, 24), e podemos afirmar que “há um só Corpo e um só Espírito” (Ef 4, 4).

Portanto, dizendo que há um só Corpo, falamos que a realidade material é uma só, o que permite que cada corpo individual se ressinta de tudo que se faz no universo, o que é também entendido pela relatividade, na medida em que existem ondas gravitacionais demonstrando que há uma conexão material em tudo que existe, ou mesmo o campo de Higgs, que dá massa a todas as partículas, ou seja, um só Corpo.

Para se entender a existência de um só Espírito exige-se ainda mais esforço interpretativo, mais capacidade intelectiva, porque tal conceito somente é captado transcendentalmente, como unidade de todas as coisas. Para o materialista, ainda que use o Espírito para seus raciocínios e pensamentos, pois apenas por Ele temos essa capacidade, é muito difícil aceitar que somente uma unidade que está além dos corpos individuais, uma realidade imaterial, permite a comunicação entre as ideias particulares. Apenas por meio do Espírito foi possível elaborar a fórmula E=mc², pela inteligência daquele “=” (igual), na lógica que permite a tradução entre conceitos distintos em uma unidade intelectual superior. A inteligência é espiritual e, como tal, não local, está em toda parte, ainda que parcialmente, e daí porque a mesma inteligência, as mesmas leis cósmicas, estão em todo lugar, sendo buscadas pela Ciência, como Leis da Natureza. Há apenas uma Natureza, com suas interconexões profundas e sutis buscadas pela atividade científica, exercida por meio do Espírito, que é um e está presente na alma humana, e somente e em razão da participação nesse Espírito temos inteligência, além de liberdade para agir segundo ou contra Ele.

Finalmente, resta entender o significado da alma, que é algo situado simultaneamente no Corpo e no Espírito, é uma individualidade, uma Mônada, nas palavras de Leibniz, a unidade simples ou átomo real da natureza, ocupando uma posição material no Corpo, no tempo e no espaço, e uma posição inteligente no Espírito, não limitado espacial ou temporalmente. A alma está conectada materialmente a todo universo e espiritualmente ao próprio Deus, porque é em Seu Espírito.

Nossas almas, porque ligadas ao Espírito, que está em todos os lugares e em todos os tempos, e também fora do tempo e do espaço, como sustenta Leibniz, existem, no Espírito, desde antes do mundo.

Nele (em Cristo) Ele (Deus) nos escolheu antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis diante dele no amor” (Ef 1, 4).

Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a fundação do mundo” (Mt 25, 34).

Assim, ao contrário das almas dos animais, que são de racionalidade mais restrita, com menos liberdade, temos possibilidade de tentar negar o Espírito, rejeitando sua ação, sua realidade transcendente, sua inteligência imaterial, para viver apenas no corpo, limitando-nos espacial e temporalmente, como animais, e perdendo, assim, parte significativa de nossa capacidade intelectual.

Se a alma não tem como, em vida, afastar-se do Corpo ao qual está unida, porque é a vida de um indivíduo, um membro vivo desse Corpo, é seu princípio de movimento, sua força ativa; ela pode perder conexão com o Espírito, passando a agir com inteligência, racionalidade, limitada, vivendo como se Ele não existisse, impedindo até mesmo o pleno desenvolvimento de seu cérebro, quanto às conexões neurais associadas à atividade espiritual.

Outrossim, havendo um Corpo, este é movido pelo Espírito, por Deus, que nos permite atuar na parte daquele Corpo em que nossos corpos estão situados, de modo que nossas almas tenham atuação sobre nossos corpos, em unidade intelectiva.

Mas, além disso, também podemos atuar sobre o Corpo, seja por meio do Espírito, em sua não localidade, com Sua força, que ainda desconhecemos, presente na energia abundante que a realidade quântica demonstrou existir, seja por meio instrumentos materiais elaborados como resultado da atividade espiritual, por ação das almas individuais interagindo umas com as outras e com o meio natural, o Corpo.

Encerro, finalmente, dizendo que a unidade entre corpo e alma, como salientado, é inegável, seja para considerar a alma ou o corpo como ilusão, ligada ao seu oposto que é a única autêntica realidade, seja de modo sutil, como no dualismo, que aceita suas duas existências, ou como sugerido acima, a alma como órgão do único Espírito no único Corpo, devendo cada um escolher a proposição que seja mais adequada às suas concepções mais fundamentais da realidade, isto é, mais coerente com sua Teologia.

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