Arqueologia e história bíblica

O conhecimento científico é fundamental para a correta interpretação da realidade, o que inclui a efetiva história narrada nos textos bíblicos, os quais mesclam memórias passadas de geração em geração, unindo narrativas fragmentadas sob uma perspectiva cosmológica, ou seja, dentro de uma cosmovisão de mundo, além de visões e inspirações de pessoas especiais.

Nesse sentido, uma leitura meramente literal do Gênesis, por exemplo, não é adequada ou correta, como ocorre em certos setores cristãos que ainda entendem que a idade da Terra é de poucos mil anos, havendo até mesmo um museu nos EUA, o Museu da Criação, com dinossauros mecânicos no Jardim do Éden, com humanos.

Assim, necessária uma compreensão inteligente e espiritual dos textos sagrados, para seu correto entendimento, como expus no artigo “Pecado Original” (https://holonomia.com/2017/11/09/pecado-original/), interpretando a Queda em termos políticos e sociais:

Nesse ponto, há que se considerar que o Gênesis traz uma descrição um tanto resumida e simbólica de um passado da humanidade, podendo ser considerada alguma forma de evolução da vida até que surgissem os primeiros grupos humanos. E essa hipótese encontra respaldo até mesmo pelo que é dito no Gênesis, pois a oferta de Caim e Abel já significava uma cerimônia religiosa, não explicada no texto da Escritura, possivelmente dentro de uma comunidade, quando ocorreu a preferência de Iahweh pela oferenda de Abel. E logo após o fratricídio, quando havia sido noticiada somente a existência de Adão, Eva, Caim e Abel no texto sagrado, constou que ‘Caim se uniu à sua mulher, que concebeu e deu à luz Henoc’ (Gn 4, 17).

Portanto, a melhor interpretação dos textos sagrados, conjugada com os conhecimentos científicos modernos, pois a existência da mulher de Caim faz presumir a de outras pessoas no planeta no tempo de Adão, leva à aceitação de um grupo humano primitivo, podendo ser entendido que Adão era o líder dessa coletividade, um líder político e religioso, um rei sacerdote que violou seu compromisso com a comunidade, contrariando os interesses da coletividade para um benefício individual, de sua família, quando o egoísmo superou o dever.”

Será muito difícil resgatar os fatos históricos dos períodos mais antigos narrados na Bíblia, principalmente no tempo anterior ao Dilúvio, evento este narrado nas mais diversas culturas do planeta, como no Irã, pela narrativa de Gilgamesh, o mesmo na Grécia, dizendo que Poseidon inundou a Terra.

Para o período mais, recente, contudo, a Arqueologia tem se mostrado frutífera, apontando para a existência real de personagens bíblicos como o rei Davi, mesmo que não haja comprovação material de um reinado portentoso narrado nas Escrituras.

Em 1993, por exemplo, foi encontrado um artefato com a inscrição “casa de Davi”, em Tel Dan, no norte de Israel:

A parte mais importante da inscrição é a descrição de Hazel, vangloriando-se de seus inimigos:

(Eu matei Jo)rão filho de (Acab), rei de Israel, e (eu) matei (Ocoz)ias filho de (Jeroão, re)i da casa de Davi. E eu transformei (suas cidades em ruínas e converti) suas terras em (desolação).

Esta é a uma evidência cabal da fama da dinastia davídica menos de cem anos depois do reinado de Salomão, filho de Davi. O fato de que Judá (ou talvez sua capital, Jerusalém) é referida apenas como uma menção à casa regente é evidência clara de que a reputação de Davi não foi uma invenção literária de um período muito posterior” (Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman. A Bíblia desenterrada: a nova visão arqueológica do antigo Israel e das origens nos seus textos sagrados. Tradução Nélio Schneider. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018, p. 137).

Dando credibilidade ao texto citado, vale dizer que os autores do livro têm como prioridade histórica o conhecimento arqueológico, em detrimento, em caso de conflito, da literalidade das narrativas bíblicas. A tese do livro é no sentido de que a formação definitiva do texto bíblico se consolidou no tempo do rei Josias, no século VII a.C, dentro de uma leitura deuteronomista da história, e com destaque para a linhagem de Judá.

Desse modo, alguns eventos narrados na Bíblia ocorridos há três mil anos estão devidamente comprovados pela ciência secular, e ainda assim algumas pessoas continuam questionando a existência histórica de Jesus Cristo, em relação ao qual as únicas dúvidas científicas ateias que podem ainda ser suscitas são quanto ao exato teor de suas palavras e a respeito de sua efetiva ressurreição. Sobre o último ponto, também não há controvérsia sobre o fato de que várias pessoas narraram ter visto Jesus vivo após sua crucificação, e continuaram sustentando essa narrativa mesmo com a perseguição do maior império da história do Planeta, pelo que: ou os seguidores de Jesus eram loucos; ou estavam convictos até a morte de que diziam a verdade.

Que Jesus existiu e que era um judeu com uma mentalidade próxima daquela dos essênios, mas com particularidades teológicas próprias, disso qualquer pessoa com a mínima honestidade intelectual não pode ter dúvidas.

A respeito do conteúdo da Bíblia, Carl Jung e, atualmente, Jordan Peterson, defendem a existência de verdade científica nas Escrituras, do ponto de vista da Psicologia.

Hegel, por sua vez, reconhece a verdade filosófica por trás das narrativas bíblicas, ainda que faça uma interpretação própria do seu significado.

Jürgen Habermas também credita adequadamente os valores judaico-cristãos para a formação histórica da moderna noção de direitos humanos, fato este que deve ser tido como cientificamente verdadeiro.

Desta feita, negar a posição de destaque da Bíblia para o melhor da vida humana atual é negar a própria racionalidade, é defender o indefensável.

Em nenhum outro lugar do mundo antigo foi inventada uma saga compartilhada tão poderosa: as epopeias e os mitos gregos falavam somente por meio de metáforas e exemplos; as epopeias religiosas mesopotâmicas e persas ofereceram segredos cósmicos, mas nenhuma história terrena nem um guia prático para a vida. A Bíblia Hebraica ofereceu ambos, suprindo um quadro narrativo em que cada judeu podia identificar tanto a história da família quanto a história nacional. Em suma, a saga de Israel, que se cristalizou pela primeira vez na época de Josias, tornou-se o primeiro pacto nacional e social do mundo plenamente articulado que englobou homens, mulheres e crianças, os ricos, os pobres e os desamparados de toda uma comunidade” (Bíblia desenterrada, p. 318).

Com a mensagem de Cristo, rejeitada pelos judeus nacionalistas, a histórica bíblica se fundiu à do resto do mundo, transformando-se na narrativa comum da humanidade, o que está implícito no texto, porque este não chega a falar de Jesus de Nazaré:

O poder da saga bíblica provém de ela ser uma narrativa atraente e coerente, expressão dos temas atemporais da libertação de um povo, da continuada resistência à opressão e da busca por igualdade social. Ela expressa de modo eloquente o sentido profundamente arraigado das origens, das experiências e do destino comum que toda comunidade humana necessita para sobreviver” (Idem, p. 320).

A humanidade passa por momentos cruciais para sua existência e seu futuro, do que são exemplos as mudanças climáticas, a iminente crise econômica internacional e os riscos de novos conflitos bélicos de grandes proporções, pelo que é inevitável e urgente que a cosmovisão bíblica seja devidamente conhecida e reconhecida, por sua importância essencial para o destino humano, de modo que, então, o pacto social com proeminência espiritual, que é o Cristianismo, seja o fundamento da prática social, e mesmo científica.

Cristianismo: a filosofia da ordem

A filosofia estuda o ser, aquilo que sempre é, formulando as categorias pelas quais esse ser pode ser apreendido intelectualmente. Na era grega, o alvorecer da civilização ocidental, o materialismo entendia que o que sempre é seria o átomo, indivisível, imutável e indestrutível; tendo Platão sido o grande defensor de uma realidade das ideias perenes, aquilo que sempre é. Foi Aristóteles, um discípulo de Platão, por sua vez, quem começou a desenvolver as ciências naturais e empíricas como a conhecemos, como consequência de suas ideias filosóficas.

A ciência, de seu lado, tem por objeto o estar, um determinado aspecto do ser, ao qual está sempre vinculado, a partir das categorias desenvolvidas pela filosofia, até que essas categorias sejam falseadas, ou seja, até que sejam apontadas contradições entre as categorias, ou entre estas e a realidade, o que exige sua reformulação, isto é, uma nova elaboração dos conceitos fundamentais, pelo conceito dos conceitos, atribuição da filosofia.

Toda ciência, dessa forma, é uma filosofia aplicada, porque a concreção de conceitos filosóficos, ou categorias, sua experimentação na natureza, realizando um corte espaço-temporal do ser para sua apreensão racional, que é um estado específico, um estar, do ser. O corte espaço-temporal ocorre pela abstração de diversas qualidades do mundo, que não são analisadas na experimentação, porque esta é reducionista, tem foco restrito, pela impossibilidade material de se fazer uma abordagem, inclusive matemática, integral e simultânea da realidade natural.

A experimentação científica se refere a um ponto específico da natureza, tirado do todo do qual é abstraído, dando a essa parte uma concretude própria, com aparência de realidade, mas que, na verdade, como tal, não passa de uma ficção, porque a realidade concreta e verdadeira é a totalidade, com todas as suas qualidades e características interligadas, que, no mundo real, autêntico, não podem ser afastadas, porque não existem sistemas isolados, criados pelo homem ou no mundo natural, sendo a abstração, a limitação experimental, um mero artifício provisório, e, nesse sentido, artificial, com perda das características naturais, com a função pedagógica de explicar um aspecto aproximado de um fenômeno complexo e indivisível, incindível, sob pena de perda de sua substância, sob pena de transformar a realidade viva em natureza morta.

O corte experimental, ou medição, fato demonstrado pelo princípio da incerteza de Heisenberg, dessarte, acarreta uma perda de conhecimento material do mundo, relativa ao que é deixado de lado na opção metodológica do cientista, e essa perda não pode ser compensada por conhecimento material, ainda por aplicação do princípio da incerteza, sendo a Filosofia, Metafísica ou Teologia a única cola racional com possibilidade de restaurar a unidade do conhecimento, permitindo conectar novamente, de forma inteligível, a parte ao todo do qual foi extraída. A ciência, por isso, é dependente da Filosofia e seus conceitos fundamentais.

Assim, Kant estava parcialmente correto ao dizer que nosso conhecimento científico é dependente das categorias e fenomênico, porque incapaz de alcançar a plenitude da coisa em si, mas aquele conhecimento, de outro lado, se refere, efetivamente, a um aspecto da coisa, da realidade em si, do mundo numênico, ainda que limitado, parcial, e que somente pode ser interpretado e compreendido corretamente dentro do contexto da totalidade que integra, dada pela Filosofia, contexto a partir do qual referido conhecimento deve ser considerado, para que seja aprimorado.

A separação entre o mundo numênico e fenomênico, outrossim, pode ser total ou nenhuma. Total quando o objeto de conhecimento é tomado em si e por si, isolado do todo a que pertence, como a própria realidade última. Inexistente, por sua vez, quando compreendido o fenômeno em seu contexto numênico, quando presentes a aceitação da limitação cognitiva da realidade pela sua apreensão fenomênica e, ao mesmo tempo, a abertura dessa mesma cognição à totalidade existencial, pela relação simbólica (inteligível) e psicológica (sensorial e anímica) entre a parte e o todo, de modo que haja a devida significação da transcendência que está presente na parte, para que esta sempre aponte intelectual e materialmente para o todo que integra.

Por isso, o Cristianismo é a melhor forma de apreensão intelectual da realidade, é a melhor filosofia possível, porque tem como princípio fundador do mundo o Logos, que está presente no mundo, com o qual interagimos, por meio do próprio Logos em nós.

O Cristianismo pressupõe uma lógica universal, desenvolvendo suas categorias e suas relações, e, então, redescobre que essa lógica, suas categorias e suas relações estão presentes na natureza. O homem busca o Logos no mundo, relacionando-o ao Logos em si, por categorias que são projetadas no mundo, e reformuladas, dialeticamente, mantendo uma unidade do Logos. Nesse sentido, a ordem da natureza, investigada pela ciência, transcende os próprios aspectos materiais da natureza, porque integralmente existente e presente no princípio da formação do mundo, como Logos eterno, quando o que nós conhecemos por natureza existia apenas como potência, como gérmen, sendo permitido, pela adoção das corretas categorias filosóficas, que são também teológicas, a contemplação dessa realidade transcendente, e dessa ordem imanente, o que, em certo aspecto, é a finalidade da ciência natural, a qual, na vertente materialista atual, todavia, remete não para a ideia platônica, ou para Deus, ou o Logos, mas para o multiverso, uma realidade com a qual, por definição, não temos possibilidade de contato.

Kant, por razões teológicas, desenvolveu categorias incompletas, e por isso não são adequadas à realidade física atual, na medida em que os conceitos da relatividade e da orgânica quântica representam uma nova reformulação dos conceitos kantianos fundamentais, para trazer para o mundo, na linha adotada por Hegel, homem e natureza, o Espírito Absoluto, ou Logos.

Mesmo o materialismo, com seu multiverso, também é dependente de razões teológicas.

Já afirmei anteriormente neste capítulo que é o cúmulo da irracionalidade postular um número infinito de universos que nunca fossem causalmente conectados uns com os outros apenas para evitar a hipótese do teísmo. Dado que a simplicidade determina a probabilidade prévia e uma teoria é mais simples quanto menos entidades ela postular, é muito mais simples postular um Deus que um número infinito de universos, cada um diferindo do outro de acordo com fórmulas regulares, não causado por qualquer outra coisa” (Richard Swinburne. A existência de Deus. Trad. Agnaldo Cuoco Portugal. Brasília, DF: Academia Monergista, 2019, p. 216).

O materialismo moderno, portanto, é uma filosofia da desordem, e viola claramente a Navalha de Occam, princípio filosófico segundo o qual a explicação mais simples de um fenômeno, que exige o menor número possível de hipóteses, deve ser a preferencial, para que não sejam criadas premissas desnecessárias.

Desse modo, o teísmo, em sua vertente mais difundida, que é o Cristianismo, por uma análise hegeliana aprimorada, é a filosofia da ordem mais adequada, bem como o fundamento da ciência, e, portanto, salvo para os que preferem ficar criando mundos apenas para tentar fugir da responsabilidade do inevitável encontro com Deus, deve ser a origem das categorias científicas e, principalmente, da prática tanto científica, propriamente dita, como social, incluídas, pois, nessa vertente lógica e racional, as chamadas ciências humanas ou do espírito.

Se aceitares, meu filho, minhas palavras e conservares os meus preceitos, dando ouvidos à sabedoria, e inclinando o teu coração ao entendimento; se invocares a inteligência e chamares o entendimento; se o procurares como o dinheiro e o buscares como um tesouro; então entenderás o temor de Iahweh e encontrarás o conhecimento de Deus. Pois é Iahweh quem dá a sabedoria; de sua boca procedem o conhecimento e o entendimento” (Pr 2, 1-6).