Monoteísmo como condição da Ciência

Assistindo a uns vídeos sobre a história das religiões, produzidos por Leandro Karnal, em que pesem as profundas divergências teóricas entre meu pensamento e o dele, reafirmei meu entendimento sobre a indispensabilidade histórica do pensamento religioso monoteísta, e da Teologia, para o desenvolvimento da Ciência, tal como a conhecemos, apesar da publicidade em sentido contrário produzida por muitos pretensos cientistas, pela chamada academia, em geral.

Explicando a criação do mundo pelo Deus da Bíblia, o historiador mostra a distinção entre o pensamento monoteísta e aquele da religião grega e das religiões indígenas da América, porque apenas no Monoteísmo há um Deus que preexiste a tudo, e é anterior ao tempo e ao espaço, que deu origem ao mundo (https://www.youtube.com/watch?v=CztqsoWZOQU).

Do ponto de vista cosmológico, e ao contrário do que pensavam os gregos, a ideia de que o mundo teve um início está associado à religião do Deus único, e a revelação do Big Bang, no século XX, decorreu da proposta do sacerdote católico belga Georges Lemaître, fazendo com que Einstein depois mudasse um detalhe de sua concepção científica.

A opção moderna é o deus multiverso, anterior ao tempo e ao espaço, que teria criado o nosso mundo, o que é a crença de muitos cientistas da teologia materialista, do ateísmo, e é uma crença muito pior que a dos Cristãos, pois materialismo é baseado exclusivamente na fé, enquanto o Cristianismo tem, a seu favor, além da história da Ciência, o testemunho dos primeiros cristãos, e também de outros, que vivenciaram a encarnação do Logos.

Mesmo entre os gregos, Aristóteles, que foi um grande investigador científico, tendo pesquisado o mundo natural em vários aspectos, pressupunha um “motor imóvel” a movimentar todo universo.

“Visto que há uma ciência independente do ser como ser, é necessário que investiguemos se esta deve ser considerada idêntica à ciência natural ou, ao contrário, um ramo distinto de conhecimento. A física ocupa-se de coisas que encerram uma fonte de movimento em si mesmas; as matemáticas são especulativas, sendo ciências que se ocupam de coisas permanentes, mas não com coisas que são capazes de existir separadamente. Há, portanto, uma ciência distinta de ambas, a qual se ocupa daquilo que existe separadamente e é imóvel, isto é, se efetivamente houver uma substância deste tipo, quero dizer: que tenha existência independente e seja imóvel, como nos empenharemos em demonstrar que há. E se houver uma coisa desse jaez no mundo, aqui certamente deve estar o divino, e este tem que ser o princípio primeiro e o mais fundamental. Fica evidente, portanto, que há três tipos de ciência especulativa: a física, as matemáticas e a teologia. A melhor das classes de ciências é a especulativa, e, entre as próprias ciências especulativas, a melhor é a que nomeamos por último, porque ela trata do mais importante aspecto da realidade.” (Aristóteles. Metafísica. Trad. Edson Bini. 2 ed. São Paulo: EDIPRO, 2012, p. 282).

Em Aristóteles, portanto, havia um princípio primeiro, mais fundamental, associado à esfera divina, às coisas eternas e imóveis, sendo a melhor ciência aquela que trata desse assunto, o mais importante aspecto da realidade.

Aristóteles possuía uma ideia teológica de mundo, e não é por acaso que o mundo islâmico preservou suas obras, as quais depois reingressaram de modo importante no mundo ocidental através da obra de São Tomás de Aquino.

Ao falar sobre a era de ouro do Islamismo, Leandro Karnal, trata da preservação da obra de Aristóteles pelos muçulmanos, pelo avanço científico por eles proporcionado, destacando as universidades de Córdoba, Cairo, Bagdá e Damasco; “o que havia de mais brilhante, o que havia de mais estável, o que havia de maior no ocidente, pertencia ao Islamismo, ao mundo árabe, em particular” (https://www.youtube.com/watch?v=T90Dxs_uYcM).

“Hoje em dia, a maioria dos historiadores concorda que árabes e muçulmanos foram essenciais para a filosofia e toda a ciência moderna.

(…)

É consenso entre autores que o ponto culminante para o estabelecimento ciência moderna está na série de descobertas feitas durante o movimento histórico nomeado pelo próprio Koyré de Revolução Científica. O que muitos autores esquecem, porém, é que se não fossem as pesquisas e o desenvolvimento do Império árabe-islâmico na Idade Média, nada disso teria acontecido. Só para citar alguns exemplos, os árabes deixaram trabalhos de destaque em Matemática, Filosofia, Medicina, Física, Química, e Astronomia que influenciaram diretamente os autores europeus por trás da Revolução Científica” (https://www.15snhct.sbhc.org.br/resources/anais/12/1473991953_ARQUIVO_ArnaldoArtigo15SNHCTT.pdf).

É importante, e extremamente necessário, portanto, que a História como a conhecemos, e como é transmitida nas escolas, passe a ter mais verdade científica, correspondente aos fatos efetivamente ocorridos, e às condições de racionalidade que permitiram que hoje tivéssemos o que chamamos Ciência, atividade esta que, na realidade, é quase ignorada pelos cientistas, mais apegados aos seus pressupostos ideológicos, a maioria deles já rejeitados pela própria Ciência, do que à coerência do conhecimento, em si.

Como Aristóteles e os judeus já pensavam, é indispensável, para a existência de Ciência, que haja uma ordem anterior do mundo, à qual este esteja vinculado, porque pensar que tudo no mundo é formado a partir dos encontros aleatórios e fortuitos dos átomos, pois estes seriam as únicas coisas eternas, é simplesmente pressupor que todo conhecimento está sujeito à iminente alteração fortuita, prejudicando, por princípio, a investigação científica mais duradoura. Por isso, a teoria do multiverso faz parte, na realidade, não de atividade propriamente científica, mas de teologia, que não é das melhores.

Segundo penso, há uma dependência entre o conceito de Ciência e o Deus Único do Monoteísmo, dependência que de explícita nos primeiros autores da revolução científica foi sendo tornada cada vez mais implícita, até que, hoje, o conhecimento científico dominante, desenvolvido sobre essas bases teóricas, que para ele são indispensáveis, acabou se voltando contra a própria ideia de Deus, certamente porque o próprio Cristianismo foi se distanciando de suas origens, do seu gênesis e da filosofia judaica de mundo, com sua coerência e integralidade, incorporando um dualismo platônico em seus conceitos, que já era criticado por Aristóteles, chegando à sua completa deturpação epicurista, da modernidade aos tempos atuais.

É preciso, pois, retomar os fundamentos judaicos do Cristianismo, refundindo-o com o aristotelismo, mas com prevalência do primeiro, para compreendermos que o Ser que existe separadamente e é imóvel, que tem existência independente e é eterno, isto é, que o mundo divino, que é o princípio primeiro e o mais fundamental, uniu-se ao mundo humano e temporal a partir de Jesus Cristo, superando aquela separação entre os dois mundos, num processo que se consumará quando essa unidade se manifestar em toda criação, consumando a encarnação iniciada por Jesus cristo e continuada em seus autênticos seguidores, muitos deles cientistas, quando Deus for tudo em todos, quando a unidade da Ciência for onipresente, tanto na vida humana quanto no mundo natural, quando essa potência se transformar em ato.

Para isso, a unidade científica deve ser recuperada, pela submissão de todas as coisas, inclusive científicas e políticas, à Ética de Jesus Cristo, ao seu modo integral de viver no mundo, encarnando a própria Razão, sendo manifestação viva do Deus Único, que é o princípio primeiro de todas as coisas, da própria racionalidade, é o Logos.

Se a melhor das classes de ciências é a especulativa, e, entre as próprias ciências especulativas, a melhor é a teologia, porque ela trata do mais importante aspecto da realidade, urge que tal conhecimento retome sua preeminência ontológica, lógica e racional, é preciso que o conhecimento de Jesus seja restaurado, e que ele reine, derrotando a ignorância e irracionalidade que dominam o pensamento científico e a academia.

Pois é preciso que ele reine, até que tenha posto todos os seus inimigos debaixo dos seus pés. O último inimigo a ser destruído será a Morte, pois ele tudo colocou debaixo dos pés dele. Mas, quando ele disser: ‘Tudo está submetido’, evidentemente excluir-se-á aquele que tudo lhe submeteu. E, quando todas as coisas lhe tiverem sido submetidas, então o próprio Filho se submeterá àquele que tudo lhe submeteu, para que Deus seja tudo em todos” (1Cor, 15, 25-28).

A natureza da ressurreição

Há uma má compreensão da realidade bíblica no que diz respeito à ressurreição, porque os “modernos” pensam que tal evento poderia ser considerado algo natural, normal, na antiguidade, e que agora, com nosso conhecimento científico do mundo, tal fantasia já não mais pode ser aceita.

Contudo, nas próprias Escrituras, como em Atos e nos escritos de Paulo, a cruz e a ressurreição já eram tratadas, no primeiro século, como ideias absurdas, ridículas, que não faziam o menor sentido, mesmo naquele tempo, para a mentalidade antiga dominante.

“‘Por isso, não levando em conta os tempos da ignorância, Deus agora notifica aos homens que todos e em toda parte se arrependam, porque ele fixou um dia no qual julgará o mundo com justiça por meio do homem a quem designou, dando-lhe crédito diante de todos, ao ressuscitá-lo dentre os mortos’. Ao ouvirem falar da ressurreição dos mortos, alguns começaram a zombar, enquanto outros diziam: ‘A respeito disto vamos ouvir-te outra vez’” (At 17, 30-32).

Jesus, agora, é a medida da justiça do mundo, porque o mal não mais prevalece, e a Verdade de sua mensagem, simultaneamente conservadora e revolucionária, foi dada exatamente pela ressurreição, o meio pelo qual Deus deu crédito a seu Cristo diante de todos, mostrando que a medida de Jesus é a da justiça. A ressurreição, contudo, como se pode ver pelo texto, já era motivo de zombaria.

“‘É por causa disso que os judeus, tendo-se apoderado de mim no Templo, tentaram matar-me. Tendo alcançado, porém, o auxílio que vem de Deus, até o presente dia continuo a dar o meu testemunho diante de pequenos e de grandes, nada mais dizendo senão o que os Profetas e Moisés disseram que havia de acontecer: que o Cristo devia sofrer e que, sendo o primeiro a ressuscitar dentre os mortos, anunciaria a luz ao povo e aos gentios’. Dizendo ele estas coisas em sua defesa, Festo o interrompeu em alta voz: ‘Estás louco, Paulo: teu enorme saber te levou à loucura’” (At 26, 21-24).

Os judeus pedem sinais, e os gregos andam em busca de sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus é escândalo, para os gentios é loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus” (1Cor 1, 22-24).

A ideia de ressurreição já era considerada loucura e escândalo, tanto para gregos e romanos como para alguns judeus, mas é exatamente esse evento extraordinário um dos pontos mais nevrálgicos do Cristianismo, ainda hoje.

Atualmente, portanto, isso não é diferente, porque também os acadêmicos, que são os sucessores dos gregos, e romanos, na nova mentalidade epicurista, que hoje prevalece, em que nem mesmo as realidades platônicas são consideradas quanto à eternidade da alma, pois o platonismo moderno é representado apenas pela realidade matemática, igualmente pensam na ressurreição como algo associado a pensamentos insanos, ou arcaicos e medievais, de um tempo em que as pessoas criam em dragões e outras realidades fantasiosas.

Como a ressurreição, contudo, a própria Física, ou seja, a ciência da natureza, trouxe aos maiores cientistas do século XX os mesmos sentimentos de absurdidade e assombro diante dos fenômenos que observavam e das repercussões para o entendimento da realidade, na medida em que a segurança material foi posta em xeque, como a continuidade existencial das coisas, transmudando-se de átomos em campos e ondas, podendo não existir quando não houver alguém observando.

Para superar as dificuldades e paradoxos da física moderna, uma das soluções adotadas pelos cientistas foi inventar hipóteses para explicar o mundo natural, da constante cosmológica de Einstein, porque este, como os gregos, concebia um universo eterno, ao contrário do que já sustentavam os judeus, cristãos e muçulmanos, às várias dimensões da realidade, associadas à teoria das cordas, ou, com mais destaque após a estagnação teórica das cordas, a ideia do multiverso.

Ainda vale considerar que o multiverso é uma proposta para afastar a conotação especialíssima do nosso universo, o que também corrobora a visão de judeus, cristãos e muçulmanos de um mundo ordenado criado por Deus, porque a ideia dos vários universos, bilhões e incontáveis, seria o fundamento para explicar porque um, em especial, o nosso, tem as perfeitas características para que a vida se desenvolvesse, como se desenvolveu.

Mesmo a vida, pelo que as últimas décadas de investigação mostraram, é algo assombrosa e absurdamente diferente, o que se eleva a uma potência assustadoramente complexa quando o assunto é a mente humana e a inteligência, sobre como pensamos o que pensamos, e qual a relação do nosso cérebro com nossas ideias e nosso modo de vida.

Existem momentos únicos que mudam tudo no mundo, e que a Ciência não consegue explicar, pois precisa de repetição para fazer suas análises; de repente, um universo, então, a vida, depois, o homem.

É certo que o homem surgiu em um ambiente anterior, assim como a vida, o que também pode ser inferido para o universo, mas como havia uma natureza e uma vida animal anterior ao homem, como também condições especiais para início da vida, o que é pressuposto pelas teorias narrando composições químicas únicas, temperatura, densidade etc., fazer do nosso universo um acidente transcósmico, como o fazem os materialistas, é, literalmente, criar mundos do nada, simplesmente contrariando tudo que se conhece sobre a realidade, numa clara violação da navalha de Ockham. E nem mesmo a ideia de flutuações quânticas criando outros universos pode ser compreendida nestes termos, pois tais flutuações são projeções da ordem conhecida no nosso mundo visível e maravilhoso, pelo que não podem ser usadas para indicar a existência de um caos absoluto que teria dado origem aleatória ao nosso mundo.

Considerando toda essa situação, portanto, a ressurreição é tão absurda quanto nosso universo, também não fazendo sentido. Mas o universo faz sentido. Segundo uma frase atribuída a Einstein: “A coisa mais incompreensível sobre o mundo é que ele é compreensível”.

O universo faz sentido, quando examinado em seus mínimos detalhes, quando a racionalidade é adequadamente levada a seus limites.

A ressurreição também. Basta que seja examinada em seus mínimos detalhes, quando a racionalidade histórica é adequadamente levada a seus limites, na mentalidade em que gerada e desenvolvida, e que venceu o império, mas que depois foi por este, de certa forma, apropriada, e distorcida.

“Essa nova criação, mostrada contínua e descontinuamente com o que veio antes, está enraizada e modelada na ressurreição de Jesus. Esse é o paradigma de todo pensamento escatológico. Esse evento extraordinário faz o sentido que faz, incluindo a percepção perturbadora, dentro da antiga elite israelense e da cosmovisão dos primeiros judeus” (N. T. Wright. História e escatologia: Jesus e a promessa da teologia natural. Tradução Paulo Benício. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021, p. 373).

A ressurreição traz, também, inequivocamente, implicações políticas, pois mostra o verdadeiro poder, que vem de Deus, e não dos homens, inserindo-se em contexto tanto filosófico como teológico e natural.

“Outra distorção que deve ser desfeita é a ideia de que, no mundo antigo, as pessoas estariam prontas para crer em todos os tipos de coisas estranhas, inclusive a ressurreição corporal. A evidência é totalmente contrária: todos no mundo do primeiro século entendiam o que significava ‘ressurreição’, e todos, exceto os fariseus e outros judeus que pensavam da mesma forma, acreditavam firmemente que isso era impossível. De Ésquilo a Marco Aurélio, isso fica bem claro. Filosófica e politicamente, podemos ver a razão disso. O ressurgimento não se encaixa. Na grande previsão de Atos 26, Paulo se explica diante do governador romano Pórcio Festo e do então ‘rei dos judeus’, Herodes Agripa, destacando a ressurreição de Jesus como o evento que havia cumprido as promessas antigas das escrituras. No final do discurso, ao enfatizar o assunto, Festo grita com Paulo, chamando-o de insano. No entanto, Herodes sabe que Paulo não é louco, mas vê claramente quais seriam as consequências sociais e políticas se antiga esperança de Israel (conforme mostrada pelos fariseus) se tornasse realidade desse modo. Para começar, isso significaria que Jesus de Nazaré era o verdadeiro ‘rei dos judeus’ e que Herodes não era. Essa reação dupla persiste. O epicurismo iluminista nada mais é do que um projeto do imperialismo ocidental, que provocou reações como as de Festo às declarações judaicas e cristãs, talvez por razões semelhantes às de Agripa.

A imagem espelhada dessa distorção é a ideia de que, como muitos – talvez a maioria – judeus acreditavam na ressurreição, foi fácil para os seguidores de Jesus entender e imaginar que ela realmente havia acontecido. Essa concepção também pode ser tranquilamente destruída. Além de existirem muitos outros movimentos messiânicos e proféticos fracassados nos séculos antes e depois da ressurreição de Jesus, nenhum deles afirmou que o fundador morto havia ressuscitado” (Idem, pp. 297-298).

É contraintuitivo, assim, considerar a ressurreição uma invenção de determinada seita judaica, porque se assim o fosse não teria tomado a proporção que tomou. É obra de Deus, como consta dos Atos, nas palavras de Gamaliel:

Antes destes nossos dias surgiu Teudas, que pretendia ser alguém, e ao qual aderiram cerca de quatrocentos homens. Mas foi morto, e todos os que lhe deram crédito se dissolveram e foram reduzidos a nada. Depois dele veio Judas, o galileu, na época do recenseamento, atraindo o povo atrás de si. Pereceu ele também, e todos os que lhe obedeciam foram dispersos. Agora, portanto, digo-vos, deixai de ocupar-vos com estes homens. Soltai-os. Pois, se o seu intento ou sua obra provém dos homens, destruir-se-á por si mesma; se vem de Deus, porém, não podereis destruí-los. E não aconteça que vos encontreis movendo guerra a Deus” (At 5, 36-39).

Quase dois mil anos depois, as ideias daquela seita tomaram o mundo, ainda que tenham sido parcialmente corrompidas, mas a Verdade, a obra de Deus, não pode ser destruída. A advertência de Gamaliel, pois, continua viva, de modo que, apesar do atual imperialismo ocidental de base epicurista dominar o pensamento moderno, a obra de Deus, na nova criação, iniciada com Jesus Cristo, o primeiro a ressuscitar dentre os mortos, prevalecerá, e não poderá ser destruída.

A nova criação, iniciada com a ressurreição, dessarte, começou no interior da atual criação, o que se completará com a ressurreição geral, a partir das coisas existentes neste mundo, que serão renovadas, recicladas.

Vi então os mortos, grandes e pequenos, em pé diante do trono, e abriram-se livros. Também foi aberto outro livro, o da vida. Os mortos foram então julgados conforme sua conduta, a partir do que estava escrito nos livros. O mar devolveu os mortos que nele jaziam, a Morte e o Hades entregaram os mortos que neles estavam, e cada um foi julgado conforme sua conduta” (Ap. 20, 12-13).

A ressurreição, pois, também é um sinal de que nada escapará ao julgamento do Altíssimo, é sinal da Justiça de Deus, pequenos e grandes, todos, seremos julgados, cada um conforme sua conduta.

Sobreposição

A Física nos trouxe esse conceito, também chamado de superposição quântica, que pode ser aplicado para compreender a realidade, significando uma partícula em dois estados ou dois locais possíveis, ao mesmo tempo, até sua determinação; isto é, até o momento da medição quântica é impossível estabelecer qual a situação exata da partícula, de modo que é considerada simultaneamente em dois estados contraditórios. Tal fenômeno está ligado à ideia do gato de Schrödinger.

Não temos informações suficientes para entender exatamente o que ocorre no momento da medição, para explicar como a sobreposição se transforma numa situação específica, pois há uma limitação epistemológica envolvida nesse fenômeno, um limite à nossa atual racionalidade científica. O fato é que a observação transforma um estado duplo possível num único concreto, a potência aristotélica se convertendo em ato.

Nesse mesmo sentido, uma das conclusões da física moderna consiste no fato de que não é possível separar o observador da observação, pois esta ocorre quando o observado e o observador se tornam uma unidade inteligente. Todo aparato teórico do observador é dirigido para uma medição específica, delimitada pelo que está sendo buscado, como se verifica no paradoxal experimento da dupla fenda, segundo o qual o cientista observará onda ou partícula a depender do que estiver procurando. O olhar do sujeito determina o objeto, o observador é o observado, ou a observação.

Tal é a unidade do todo com a parte, manifestando um entendimento holístico do mundo, uma união permanente e intermitente ou pontual entre ideia e realidade, porque tanto a primeira quanto a segunda são inesgotáveis naquele momento, pois o transcendem, na medida em que a imanência é sempre um momento provisório da transcendência, que o eterniza. Todo imanente se esvai, enquanto o todo transcendente permanece, mantendo a continuidade da imanência, que reflete a unidade da transcendência.

Com grande satisfação, verifiquei o conceito de sobreposição sendo usado por Tom Wright na História, na perspectiva do Templo e de Cristo, e sobre a ressurreição de Jesus, algo que repugna nossa racionalidade comum, da mesma forma como ocorre para os físicos com os resultados da Física (Natureza) mais profunda, a qual dá início à nova criação, dizendo que é a renovação da criação ocorrendo no velho mundo criado. “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21, 5)

“A questão da cosmologia fundamentada no Templo, a sobreposição entre céu e terra, é que, afinal de contas, acontecem coisas na terra que são verdadeiros sinais da presença do céu e que, portanto, podem ser historicamente discutidas, e não só em uma esfera privada chamada ‘fé’. A questão da escatologia baseada no Sábado, a sobreposição de eras, é que as coisas acontecem no tempo presente e são amostras reais do futuro. Nesse universo de espaço e tempo duplos, estamos nos referindo ao mundo público, porém um mundo maior do que aquele imaginado pela indução cartesiana ou pela dedução kantiana. Então, conhecer esse mundo como portador da imagem significa abrir-se – em resposta ao amor – à revelação do amor extravagante e generoso do criador” (N. T. Wright. História e escatologia: Jesus e a promessa da teologia natural. Tradução Paulo Benício. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021, p. 313).

Um dos grandes valores da obra de Wright está no fato de que para se conhecer verdadeiramente Jesus e sua mensagem é indispensável compreender a mentalidade do seu tempo e, dentro do que seja possível, entrar na cabeça das pessoas daquela época, de Jesus e dos apóstolos, o que é alcançado com maestria pelo autor, com destaque para a importância do Templo, que representava a presença espacial de Deus na terra, e do Sábado, como uma antecipação do descanso, e do Reino.

Penso que o Cristianismo antecipou as profundezas da realidade e da natureza que começam a ser descobertas pela chamada física quântica, segundo a qual são inadequadas as propostas cartesiana e kantiana e as visões materialistas de mundo. A esfera pública da História e da Física é também o espaço da ação de Deus, de uma forma que supera a dualidade cartesiana de res extensa e res cogitans, tal como ocorre na unidade entre o observado e o observador, e na qual encontramos não apenas fenômenos, como imaginava Kant, mas aspectos da própria realidade última, cintilando à nossa vista, que exige categorias espirituais para ser compreendida.

No Cristianismo, a sobreposição entre céu e terra que ocorria no Templo e no Sábado, para o povo judeu, é transferida para o próprio Jesus, o Messias, o Rei dos judeus, e, então, a seus seguidores, que assumem a condição de messias delegados e filhos de Deus e passam a ser o sinal da presença do céu na terra, o que é um dos significados da expressão “o reino de Deus está dentro de vocês” (Lc 17, 21), e depois fica inequívoco nas palavras de Paulo:

Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que está em vós e que recebestes de Deus? … e que, portanto, não pertenceis a vós mesmos? Alguém pagou alto preço pelo vosso resgate; glorificai, portanto, a Deus em vosso corpo” (1Cor 6, 19-20).

A Ekklesia, a comunidade cristã, é o sinal da presença de Deus na terra, até que a renovação avance, quando receberá o governo do mundo, na construção e na vivência do Reino. O corpo, portanto, não é algo a ser descartado, para que possamos ir para o céu, mas a sede da habitação do Espírito, até a renovação corporal, na ressurreição ou na transformação, no último momento do velho mundo, que antes da transição final será governado por Cristo, neste mundo, nestes corpos.

“A ressurreição é a reafirmação, por meio da transformação redentora, do velho mundo. Tal mudança não deixa a criação original para trás, nem finge que seja algo irrelevante. Como no Êxodo, os escravos são libertos, não por esquecerem as promessas feitas a Abraão, mas por cumpri-las. O amor na criação e na salvação preenche a lacuna do lado de Deus e como o modo final de conhecimento humano aproxima-se como resposta. No próprio Jesus, ambos os pontos se concretizam: esse é o mistério da cristologia e a chave para sua integração correta. Na nova criação, o ‘mar’ não mais existe (Apocalipse 21:1), nem ‘fosso feio’. ‘Ressuscitando dos mortos, Cristo jamais voltará a morrer: a morte não tem mais poder sobre ele’. A divisão entre eterno e eventual, como também entre passado, presente e futuro, é superada pelo próprio portador da imagem, que gera o amor no mundo, e também por aqueles que, em reposta, são renovados no conhecimento amoroso conforme a imagem de Jesus. Ele pergunta: ‘Simão, filho de João, tu me amas?’ (João 21:15-19). Quando as falhas petrinas, morais e epistemológicas, são perdoadas, o amor acredita e vai à luta. E esse trabalho, como já vimos, inclui a tarefa de uma história revitalizada” (Idem, p. 320).

Há uma continuidade, portanto, entre o velho mundo e o novo mundo, sendo a ressurreição um sinal presente de uma realidade futura que já começou, a nova criação nascendo no meio da antiga.

O período de transição começa com a ressurreição de Jesus, tem continuidade com a proclamação do Evangelho, tempo em que a sobreposição já existe, porque o Reino já foi inaugurado quando Jesus ressuscitou.

“Esse conceito de reino já inaugurado por Deus aparece explicitamente em Romanos 5:12-21, a base para os capítulos 6, 7 e 8. O reinado do Messias e o de Deus por meio dele – e, com ele, de seu povo – são aqui realidades presentes com consequências futuras” (Idem, p. 223).

O Messias já reina, mas ainda não opera de forma plenamente visível, porque os principados e autoridades deste mundo continuam a agir. A sobreposição, contudo, em algum momento, será alterada, com o governo visível do Ungido de Deus.

Cristo ressuscitou dos mortos, primícias dos que adormeceram. Com efeito, visto que a morte veio por um homem, também por um homem vem a ressurreição dos mortos. Pois, assim como todos morrem em Adão, em Cristo todos receberão a vida. Cada um, porém, em sua ordem: como primícias, Cristo; depois, aqueles que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda. A seguir haverá o fim, quando ele entregar o reino a Deus Pai, depois de ter destruído todo Principado, toda Autoridade, todo Poder. Pois é preciso que ele reine, até que tenha posto todos os seus inimigos debaixo dos seus pés. O último inimigo a ser destruído será a Morte, pois ele tudo colocou debaixo dos pés dele. Mas, quando ele disser: ‘Tudo está submetido’, evidentemente excluir-se-á aquele que tudo lhe submeteu. E, quando todas as coisas lhe tiverem sido submetidas, então o próprio Filho se submeterá àquele que tudo lhe submeteu, para que Deus seja tudo em todos” (1Cor 15, 20-28).

Antes do “a seguir haverá o fim” acontecerá uma virada, de modo que a sobreposição continuará, mas com outra tendência, porque se hoje o mal é aparente e o bem é oculto, quando Cristo reinar visivelmente, o bem será aparente, e o mal estará aprisionado. É preciso que tudo seja submetido a Cristo, não falsa ou parcialmente como já ocorreu até aqui depois que a ideia de Cristo foi assumida pela autoridade pública para seus próprios fins, mas na plenitude do Reino, do governo messiânico milenar, a serviço pleno do Pai e do próximo.

Como consta na explicação deste sítio – Sobre (https://holonomia.com/sobre/):

“O tempo presente é de transição, de superação da fase metaestável do universo, conforme medições do bóson de Higgs e suas implicações cósmicas, pois a conclusão do valor encontrado para o bóson de Higgs é no sentido de que nosso universo é como um gelo em processo de derretimento, está em mudança de fase. O valor energético do bóson de Higgs surpreendeu os físicos, pois não favoreceu a tese da supersimetria, tampouco corroborou a teoria do multiverso, deixando em aberto a visão cosmológica compatível com a Ciência e mantendo válido o entendimento Cristão de um mundo instável, em processo de cura pela ação messiânica de Jesus e seus seguidores, uma vez que o problema da medição quântica correlaciona a ação humana à própria definição da realidade.”

Algo aconteceu de extraordinário na Palestina do século I, na ressurreição de Jesus, o início da transição para o equilíbrio cósmico, um evento do final dos tempos, pois a ressurreição será para todos, ocorrido no presente, antecipando a realidade vindoura, e mostrando o sentido da História. No processo de derretimento cósmico, Cristo foi o primeiro, e muito antes, a mudar de fase.

O observador humano Jesus uniu-se ao Observador último, Deus, tornando-se um com Ele, e mudando o mundo observado. As testemunhas desse evento, por sua vez, também tornaram-se observadoras dessa realidade una, dando continuidade ao processo histórico de renovação do mundo, o que, desde então, já está mudando a face da Terra, e continuará até que todos os observadores tenham concluído seu processo de observação do mundo, incluindo o necessário testemunho da vida Jesus e sua importância para a humanidade.

Nessa linha de raciocínio é possível considerar o conjunto observador/observado como outro observado, a partir de outro nível de observação. Contudo, nessa segunda experiência há um aspecto qualitativamente diferente, porque há uma sobreposição de observações, com dificuldade de mensurações individualizadas.

A realidade é definida pela observação, havendo uma dificuldade na sua definição porque todos somos observadores, que nos sobrepomos em nossas análises do mundo, existindo vários níveis de obervação, sucessivamente, até que todos os observadores sejam simultaneamente observados, quando, então, a subjetividade de cada observação será situada em um nível cada vez maior de objetividade, até atingir o último Observador, a última subjetividade, que é também a primeira, e objetiva, vinculada a Cristo.

É humanamente impossível realizar a observação simultânea de todos os eventos, de modo que se torna necessária, para a inteligibilidade e cognoscibilidade dos fenômenos, a organização sequencial ou espaço/temporal dos acontecimentos, uma história, uma narrativa mostra-se imperiosa para a razão humana compreender o que ocorre no mundo. Nessa história há um evento fundamental, que dá objetividade à humanidade, e somente quando devidamente observado faz com que a realidade seja alcançada.

Para tanto, é condição o conhecimento de Jesus, seu conhecimento bíblico, narrado por Paulo, quando uma unidade ocorre, uma sobreposição, formando o verdadeiro cristão: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20).