Há uma má compreensão da realidade bíblica no que diz respeito à ressurreição, porque os “modernos” pensam que tal evento poderia ser considerado algo natural, normal, na antiguidade, e que agora, com nosso conhecimento científico do mundo, tal fantasia já não mais pode ser aceita.
Contudo, nas próprias Escrituras, como em Atos e nos escritos de Paulo, a cruz e a ressurreição já eram tratadas, no primeiro século, como ideias absurdas, ridículas, que não faziam o menor sentido, mesmo naquele tempo, para a mentalidade antiga dominante.
“‘Por isso, não levando em conta os tempos da ignorância, Deus agora notifica aos homens que todos e em toda parte se arrependam, porque ele fixou um dia no qual julgará o mundo com justiça por meio do homem a quem designou, dando-lhe crédito diante de todos, ao ressuscitá-lo dentre os mortos’. Ao ouvirem falar da ressurreição dos mortos, alguns começaram a zombar, enquanto outros diziam: ‘A respeito disto vamos ouvir-te outra vez’” (At 17, 30-32).
Jesus, agora, é a medida da justiça do mundo, porque o mal não mais prevalece, e a Verdade de sua mensagem, simultaneamente conservadora e revolucionária, foi dada exatamente pela ressurreição, o meio pelo qual Deus deu crédito a seu Cristo diante de todos, mostrando que a medida de Jesus é a da justiça. A ressurreição, contudo, como se pode ver pelo texto, já era motivo de zombaria.
“‘É por causa disso que os judeus, tendo-se apoderado de mim no Templo, tentaram matar-me. Tendo alcançado, porém, o auxílio que vem de Deus, até o presente dia continuo a dar o meu testemunho diante de pequenos e de grandes, nada mais dizendo senão o que os Profetas e Moisés disseram que havia de acontecer: que o Cristo devia sofrer e que, sendo o primeiro a ressuscitar dentre os mortos, anunciaria a luz ao povo e aos gentios’. Dizendo ele estas coisas em sua defesa, Festo o interrompeu em alta voz: ‘Estás louco, Paulo: teu enorme saber te levou à loucura’” (At 26, 21-24).
“Os judeus pedem sinais, e os gregos andam em busca de sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus é escândalo, para os gentios é loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus” (1Cor 1, 22-24).
A ideia de ressurreição já era considerada loucura e escândalo, tanto para gregos e romanos como para alguns judeus, mas é exatamente esse evento extraordinário um dos pontos mais nevrálgicos do Cristianismo, ainda hoje.
Atualmente, portanto, isso não é diferente, porque também os acadêmicos, que são os sucessores dos gregos, e romanos, na nova mentalidade epicurista, que hoje prevalece, em que nem mesmo as realidades platônicas são consideradas quanto à eternidade da alma, pois o platonismo moderno é representado apenas pela realidade matemática, igualmente pensam na ressurreição como algo associado a pensamentos insanos, ou arcaicos e medievais, de um tempo em que as pessoas criam em dragões e outras realidades fantasiosas.
Como a ressurreição, contudo, a própria Física, ou seja, a ciência da natureza, trouxe aos maiores cientistas do século XX os mesmos sentimentos de absurdidade e assombro diante dos fenômenos que observavam e das repercussões para o entendimento da realidade, na medida em que a segurança material foi posta em xeque, como a continuidade existencial das coisas, transmudando-se de átomos em campos e ondas, podendo não existir quando não houver alguém observando.
Para superar as dificuldades e paradoxos da física moderna, uma das soluções adotadas pelos cientistas foi inventar hipóteses para explicar o mundo natural, da constante cosmológica de Einstein, porque este, como os gregos, concebia um universo eterno, ao contrário do que já sustentavam os judeus, cristãos e muçulmanos, às várias dimensões da realidade, associadas à teoria das cordas, ou, com mais destaque após a estagnação teórica das cordas, a ideia do multiverso.
Ainda vale considerar que o multiverso é uma proposta para afastar a conotação especialíssima do nosso universo, o que também corrobora a visão de judeus, cristãos e muçulmanos de um mundo ordenado criado por Deus, porque a ideia dos vários universos, bilhões e incontáveis, seria o fundamento para explicar porque um, em especial, o nosso, tem as perfeitas características para que a vida se desenvolvesse, como se desenvolveu.
Mesmo a vida, pelo que as últimas décadas de investigação mostraram, é algo assombrosa e absurdamente diferente, o que se eleva a uma potência assustadoramente complexa quando o assunto é a mente humana e a inteligência, sobre como pensamos o que pensamos, e qual a relação do nosso cérebro com nossas ideias e nosso modo de vida.
Existem momentos únicos que mudam tudo no mundo, e que a Ciência não consegue explicar, pois precisa de repetição para fazer suas análises; de repente, um universo, então, a vida, depois, o homem.
É certo que o homem surgiu em um ambiente anterior, assim como a vida, o que também pode ser inferido para o universo, mas como havia uma natureza e uma vida animal anterior ao homem, como também condições especiais para início da vida, o que é pressuposto pelas teorias narrando composições químicas únicas, temperatura, densidade etc., fazer do nosso universo um acidente transcósmico, como o fazem os materialistas, é, literalmente, criar mundos do nada, simplesmente contrariando tudo que se conhece sobre a realidade, numa clara violação da navalha de Ockham. E nem mesmo a ideia de flutuações quânticas criando outros universos pode ser compreendida nestes termos, pois tais flutuações são projeções da ordem conhecida no nosso mundo visível e maravilhoso, pelo que não podem ser usadas para indicar a existência de um caos absoluto que teria dado origem aleatória ao nosso mundo.
Considerando toda essa situação, portanto, a ressurreição é tão absurda quanto nosso universo, também não fazendo sentido. Mas o universo faz sentido. Segundo uma frase atribuída a Einstein: “A coisa mais incompreensível sobre o mundo é que ele é compreensível”.
O universo faz sentido, quando examinado em seus mínimos detalhes, quando a racionalidade é adequadamente levada a seus limites.
A ressurreição também. Basta que seja examinada em seus mínimos detalhes, quando a racionalidade histórica é adequadamente levada a seus limites, na mentalidade em que gerada e desenvolvida, e que venceu o império, mas que depois foi por este, de certa forma, apropriada, e distorcida.
“Essa nova criação, mostrada contínua e descontinuamente com o que veio antes, está enraizada e modelada na ressurreição de Jesus. Esse é o paradigma de todo pensamento escatológico. Esse evento extraordinário faz o sentido que faz, incluindo a percepção perturbadora, dentro da antiga elite israelense e da cosmovisão dos primeiros judeus” (N. T. Wright. História e escatologia: Jesus e a promessa da teologia natural. Tradução Paulo Benício. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021, p. 373).
A ressurreição traz, também, inequivocamente, implicações políticas, pois mostra o verdadeiro poder, que vem de Deus, e não dos homens, inserindo-se em contexto tanto filosófico como teológico e natural.
“Outra distorção que deve ser desfeita é a ideia de que, no mundo antigo, as pessoas estariam prontas para crer em todos os tipos de coisas estranhas, inclusive a ressurreição corporal. A evidência é totalmente contrária: todos no mundo do primeiro século entendiam o que significava ‘ressurreição’, e todos, exceto os fariseus e outros judeus que pensavam da mesma forma, acreditavam firmemente que isso era impossível. De Ésquilo a Marco Aurélio, isso fica bem claro. Filosófica e politicamente, podemos ver a razão disso. O ressurgimento não se encaixa. Na grande previsão de Atos 26, Paulo se explica diante do governador romano Pórcio Festo e do então ‘rei dos judeus’, Herodes Agripa, destacando a ressurreição de Jesus como o evento que havia cumprido as promessas antigas das escrituras. No final do discurso, ao enfatizar o assunto, Festo grita com Paulo, chamando-o de insano. No entanto, Herodes sabe que Paulo não é louco, mas vê claramente quais seriam as consequências sociais e políticas se antiga esperança de Israel (conforme mostrada pelos fariseus) se tornasse realidade desse modo. Para começar, isso significaria que Jesus de Nazaré era o verdadeiro ‘rei dos judeus’ e que Herodes não era. Essa reação dupla persiste. O epicurismo iluminista nada mais é do que um projeto do imperialismo ocidental, que provocou reações como as de Festo às declarações judaicas e cristãs, talvez por razões semelhantes às de Agripa.
A imagem espelhada dessa distorção é a ideia de que, como muitos – talvez a maioria – judeus acreditavam na ressurreição, foi fácil para os seguidores de Jesus entender e imaginar que ela realmente havia acontecido. Essa concepção também pode ser tranquilamente destruída. Além de existirem muitos outros movimentos messiânicos e proféticos fracassados nos séculos antes e depois da ressurreição de Jesus, nenhum deles afirmou que o fundador morto havia ressuscitado” (Idem, pp. 297-298).
É contraintuitivo, assim, considerar a ressurreição uma invenção de determinada seita judaica, porque se assim o fosse não teria tomado a proporção que tomou. É obra de Deus, como consta dos Atos, nas palavras de Gamaliel:
“Antes destes nossos dias surgiu Teudas, que pretendia ser alguém, e ao qual aderiram cerca de quatrocentos homens. Mas foi morto, e todos os que lhe deram crédito se dissolveram e foram reduzidos a nada. Depois dele veio Judas, o galileu, na época do recenseamento, atraindo o povo atrás de si. Pereceu ele também, e todos os que lhe obedeciam foram dispersos. Agora, portanto, digo-vos, deixai de ocupar-vos com estes homens. Soltai-os. Pois, se o seu intento ou sua obra provém dos homens, destruir-se-á por si mesma; se vem de Deus, porém, não podereis destruí-los. E não aconteça que vos encontreis movendo guerra a Deus” (At 5, 36-39).
Quase dois mil anos depois, as ideias daquela seita tomaram o mundo, ainda que tenham sido parcialmente corrompidas, mas a Verdade, a obra de Deus, não pode ser destruída. A advertência de Gamaliel, pois, continua viva, de modo que, apesar do atual imperialismo ocidental de base epicurista dominar o pensamento moderno, a obra de Deus, na nova criação, iniciada com Jesus Cristo, o primeiro a ressuscitar dentre os mortos, prevalecerá, e não poderá ser destruída.
A nova criação, iniciada com a ressurreição, dessarte, começou no interior da atual criação, o que se completará com a ressurreição geral, a partir das coisas existentes neste mundo, que serão renovadas, recicladas.
“Vi então os mortos, grandes e pequenos, em pé diante do trono, e abriram-se livros. Também foi aberto outro livro, o da vida. Os mortos foram então julgados conforme sua conduta, a partir do que estava escrito nos livros. O mar devolveu os mortos que nele jaziam, a Morte e o Hades entregaram os mortos que neles estavam, e cada um foi julgado conforme sua conduta” (Ap. 20, 12-13).
A ressurreição, pois, também é um sinal de que nada escapará ao julgamento do Altíssimo, é sinal da Justiça de Deus, pequenos e grandes, todos, seremos julgados, cada um conforme sua conduta.