A Física nos trouxe esse conceito, também chamado de superposição quântica, que pode ser aplicado para compreender a realidade, significando uma partícula em dois estados ou dois locais possíveis, ao mesmo tempo, até sua determinação; isto é, até o momento da medição quântica é impossível estabelecer qual a situação exata da partícula, de modo que é considerada simultaneamente em dois estados contraditórios. Tal fenômeno está ligado à ideia do gato de Schrödinger.
Não temos informações suficientes para entender exatamente o que ocorre no momento da medição, para explicar como a sobreposição se transforma numa situação específica, pois há uma limitação epistemológica envolvida nesse fenômeno, um limite à nossa atual racionalidade científica. O fato é que a observação transforma um estado duplo possível num único concreto, a potência aristotélica se convertendo em ato.
Nesse mesmo sentido, uma das conclusões da física moderna consiste no fato de que não é possível separar o observador da observação, pois esta ocorre quando o observado e o observador se tornam uma unidade inteligente. Todo aparato teórico do observador é dirigido para uma medição específica, delimitada pelo que está sendo buscado, como se verifica no paradoxal experimento da dupla fenda, segundo o qual o cientista observará onda ou partícula a depender do que estiver procurando. O olhar do sujeito determina o objeto, o observador é o observado, ou a observação.
Tal é a unidade do todo com a parte, manifestando um entendimento holístico do mundo, uma união permanente e intermitente ou pontual entre ideia e realidade, porque tanto a primeira quanto a segunda são inesgotáveis naquele momento, pois o transcendem, na medida em que a imanência é sempre um momento provisório da transcendência, que o eterniza. Todo imanente se esvai, enquanto o todo transcendente permanece, mantendo a continuidade da imanência, que reflete a unidade da transcendência.
Com grande satisfação, verifiquei o conceito de sobreposição sendo usado por Tom Wright na História, na perspectiva do Templo e de Cristo, e sobre a ressurreição de Jesus, algo que repugna nossa racionalidade comum, da mesma forma como ocorre para os físicos com os resultados da Física (Natureza) mais profunda, a qual dá início à nova criação, dizendo que é a renovação da criação ocorrendo no velho mundo criado. “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21, 5)
“A questão da cosmologia fundamentada no Templo, a sobreposição entre céu e terra, é que, afinal de contas, acontecem coisas na terra que são verdadeiros sinais da presença do céu e que, portanto, podem ser historicamente discutidas, e não só em uma esfera privada chamada ‘fé’. A questão da escatologia baseada no Sábado, a sobreposição de eras, é que as coisas acontecem no tempo presente e são amostras reais do futuro. Nesse universo de espaço e tempo duplos, estamos nos referindo ao mundo público, porém um mundo maior do que aquele imaginado pela indução cartesiana ou pela dedução kantiana. Então, conhecer esse mundo como portador da imagem significa abrir-se – em resposta ao amor – à revelação do amor extravagante e generoso do criador” (N. T. Wright. História e escatologia: Jesus e a promessa da teologia natural. Tradução Paulo Benício. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021, p. 313).
Um dos grandes valores da obra de Wright está no fato de que para se conhecer verdadeiramente Jesus e sua mensagem é indispensável compreender a mentalidade do seu tempo e, dentro do que seja possível, entrar na cabeça das pessoas daquela época, de Jesus e dos apóstolos, o que é alcançado com maestria pelo autor, com destaque para a importância do Templo, que representava a presença espacial de Deus na terra, e do Sábado, como uma antecipação do descanso, e do Reino.
Penso que o Cristianismo antecipou as profundezas da realidade e da natureza que começam a ser descobertas pela chamada física quântica, segundo a qual são inadequadas as propostas cartesiana e kantiana e as visões materialistas de mundo. A esfera pública da História e da Física é também o espaço da ação de Deus, de uma forma que supera a dualidade cartesiana de res extensa e res cogitans, tal como ocorre na unidade entre o observado e o observador, e na qual encontramos não apenas fenômenos, como imaginava Kant, mas aspectos da própria realidade última, cintilando à nossa vista, que exige categorias espirituais para ser compreendida.
No Cristianismo, a sobreposição entre céu e terra que ocorria no Templo e no Sábado, para o povo judeu, é transferida para o próprio Jesus, o Messias, o Rei dos judeus, e, então, a seus seguidores, que assumem a condição de messias delegados e filhos de Deus e passam a ser o sinal da presença do céu na terra, o que é um dos significados da expressão “o reino de Deus está dentro de vocês” (Lc 17, 21), e depois fica inequívoco nas palavras de Paulo:
“Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que está em vós e que recebestes de Deus? … e que, portanto, não pertenceis a vós mesmos? Alguém pagou alto preço pelo vosso resgate; glorificai, portanto, a Deus em vosso corpo” (1Cor 6, 19-20).
A Ekklesia, a comunidade cristã, é o sinal da presença de Deus na terra, até que a renovação avance, quando receberá o governo do mundo, na construção e na vivência do Reino. O corpo, portanto, não é algo a ser descartado, para que possamos ir para o céu, mas a sede da habitação do Espírito, até a renovação corporal, na ressurreição ou na transformação, no último momento do velho mundo, que antes da transição final será governado por Cristo, neste mundo, nestes corpos.
“A ressurreição é a reafirmação, por meio da transformação redentora, do velho mundo. Tal mudança não deixa a criação original para trás, nem finge que seja algo irrelevante. Como no Êxodo, os escravos são libertos, não por esquecerem as promessas feitas a Abraão, mas por cumpri-las. O amor na criação e na salvação preenche a lacuna do lado de Deus e como o modo final de conhecimento humano aproxima-se como resposta. No próprio Jesus, ambos os pontos se concretizam: esse é o mistério da cristologia e a chave para sua integração correta. Na nova criação, o ‘mar’ não mais existe (Apocalipse 21:1), nem ‘fosso feio’. ‘Ressuscitando dos mortos, Cristo jamais voltará a morrer: a morte não tem mais poder sobre ele’. A divisão entre eterno e eventual, como também entre passado, presente e futuro, é superada pelo próprio portador da imagem, que gera o amor no mundo, e também por aqueles que, em reposta, são renovados no conhecimento amoroso conforme a imagem de Jesus. Ele pergunta: ‘Simão, filho de João, tu me amas?’ (João 21:15-19). Quando as falhas petrinas, morais e epistemológicas, são perdoadas, o amor acredita e vai à luta. E esse trabalho, como já vimos, inclui a tarefa de uma história revitalizada” (Idem, p. 320).
Há uma continuidade, portanto, entre o velho mundo e o novo mundo, sendo a ressurreição um sinal presente de uma realidade futura que já começou, a nova criação nascendo no meio da antiga.
O período de transição começa com a ressurreição de Jesus, tem continuidade com a proclamação do Evangelho, tempo em que a sobreposição já existe, porque o Reino já foi inaugurado quando Jesus ressuscitou.
“Esse conceito de reino já inaugurado por Deus aparece explicitamente em Romanos 5:12-21, a base para os capítulos 6, 7 e 8. O reinado do Messias e o de Deus por meio dele – e, com ele, de seu povo – são aqui realidades presentes com consequências futuras” (Idem, p. 223).
O Messias já reina, mas ainda não opera de forma plenamente visível, porque os principados e autoridades deste mundo continuam a agir. A sobreposição, contudo, em algum momento, será alterada, com o governo visível do Ungido de Deus.
“Cristo ressuscitou dos mortos, primícias dos que adormeceram. Com efeito, visto que a morte veio por um homem, também por um homem vem a ressurreição dos mortos. Pois, assim como todos morrem em Adão, em Cristo todos receberão a vida. Cada um, porém, em sua ordem: como primícias, Cristo; depois, aqueles que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda. A seguir haverá o fim, quando ele entregar o reino a Deus Pai, depois de ter destruído todo Principado, toda Autoridade, todo Poder. Pois é preciso que ele reine, até que tenha posto todos os seus inimigos debaixo dos seus pés. O último inimigo a ser destruído será a Morte, pois ele tudo colocou debaixo dos pés dele. Mas, quando ele disser: ‘Tudo está submetido’, evidentemente excluir-se-á aquele que tudo lhe submeteu. E, quando todas as coisas lhe tiverem sido submetidas, então o próprio Filho se submeterá àquele que tudo lhe submeteu, para que Deus seja tudo em todos” (1Cor 15, 20-28).
Antes do “a seguir haverá o fim” acontecerá uma virada, de modo que a sobreposição continuará, mas com outra tendência, porque se hoje o mal é aparente e o bem é oculto, quando Cristo reinar visivelmente, o bem será aparente, e o mal estará aprisionado. É preciso que tudo seja submetido a Cristo, não falsa ou parcialmente como já ocorreu até aqui depois que a ideia de Cristo foi assumida pela autoridade pública para seus próprios fins, mas na plenitude do Reino, do governo messiânico milenar, a serviço pleno do Pai e do próximo.
Como consta na explicação deste sítio – Sobre (https://holonomia.com/sobre/):
“O tempo presente é de transição, de superação da fase metaestável do universo, conforme medições do bóson de Higgs e suas implicações cósmicas, pois a conclusão do valor encontrado para o bóson de Higgs é no sentido de que nosso universo é como um gelo em processo de derretimento, está em mudança de fase. O valor energético do bóson de Higgs surpreendeu os físicos, pois não favoreceu a tese da supersimetria, tampouco corroborou a teoria do multiverso, deixando em aberto a visão cosmológica compatível com a Ciência e mantendo válido o entendimento Cristão de um mundo instável, em processo de cura pela ação messiânica de Jesus e seus seguidores, uma vez que o problema da medição quântica correlaciona a ação humana à própria definição da realidade.”
Algo aconteceu de extraordinário na Palestina do século I, na ressurreição de Jesus, o início da transição para o equilíbrio cósmico, um evento do final dos tempos, pois a ressurreição será para todos, ocorrido no presente, antecipando a realidade vindoura, e mostrando o sentido da História. No processo de derretimento cósmico, Cristo foi o primeiro, e muito antes, a mudar de fase.
O observador humano Jesus uniu-se ao Observador último, Deus, tornando-se um com Ele, e mudando o mundo observado. As testemunhas desse evento, por sua vez, também tornaram-se observadoras dessa realidade una, dando continuidade ao processo histórico de renovação do mundo, o que, desde então, já está mudando a face da Terra, e continuará até que todos os observadores tenham concluído seu processo de observação do mundo, incluindo o necessário testemunho da vida Jesus e sua importância para a humanidade.
Nessa linha de raciocínio é possível considerar o conjunto observador/observado como outro observado, a partir de outro nível de observação. Contudo, nessa segunda experiência há um aspecto qualitativamente diferente, porque há uma sobreposição de observações, com dificuldade de mensurações individualizadas.
A realidade é definida pela observação, havendo uma dificuldade na sua definição porque todos somos observadores, que nos sobrepomos em nossas análises do mundo, existindo vários níveis de obervação, sucessivamente, até que todos os observadores sejam simultaneamente observados, quando, então, a subjetividade de cada observação será situada em um nível cada vez maior de objetividade, até atingir o último Observador, a última subjetividade, que é também a primeira, e objetiva, vinculada a Cristo.
É humanamente impossível realizar a observação simultânea de todos os eventos, de modo que se torna necessária, para a inteligibilidade e cognoscibilidade dos fenômenos, a organização sequencial ou espaço/temporal dos acontecimentos, uma história, uma narrativa mostra-se imperiosa para a razão humana compreender o que ocorre no mundo. Nessa história há um evento fundamental, que dá objetividade à humanidade, e somente quando devidamente observado faz com que a realidade seja alcançada.
Para tanto, é condição o conhecimento de Jesus, seu conhecimento bíblico, narrado por Paulo, quando uma unidade ocorre, uma sobreposição, formando o verdadeiro cristão: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20).