Em Comunhão com Deus

“Em Comunhão com Deus” é um livro de Huberto Rohden, brasileiro que viveu entre 1893 e 1981, estudioso da espiritualidade, cuja obra infelizmente é muito pouco divulgada no Brasil.

No prólogo à edição brasileira de “Bíblia e psique: simbolismo da Individuação no Antigo Testamento” (Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo: Edições Paulinas, 1990, pp. 11-17), livro de Edward F. Edinger, este que foi um dos principais discípulos de Carl Jung, Huberto Rohden é colocado ao lado de Teilhard de Chardin e Carl Jung como um dos grandes pensadores na busca da “redescoberta de nossa fundamental unidade e irrepetível originalidade”, o que representa o reconhecimento da grandeza de sua obra.

Huberto Rohden foi ordenado padre católico em 1920, deixando a ordem eclesiástica em 1945, depois de ter seus livros condenados por Carta Circular dos Bispos de São Paulo (https://pebesen.wordpress.com/padres-da-igreja-catolica-em-santa-catarina/padre-huberto-rohden-um-longo-caminho/). Depois de Giordano Bruno e Galileu Galilei, todo aquele que teve sua obra condenada pela Igreja deveria ter alguma atenção dos interessados na verdade científica.

Pela editora Martins Claret, Rohden foi responsável pela tradução do “Tao Te Ching”, do “Bhagavad Gita” e do “Evangelho de Tomé” e pelas respectivas notas e comentários, sendo autor profundamente comprometido com a busca espiritual, tendo estudado na Áustria, na Holanda, na Itália, formando-se em Ciências, Filosofia e Teologia, sem contar as inúmeras viagens de estudo pelo mundo, incluindo Estados Unidos, Palestina, Egito, Índia e Nepal.

Em homenagem ao trabalho de Rohden, assim, o presente artigo consistirá em algumas citações do livro “Em comunhão com Deus”, de Huberto Rohden, da Editora Martins Claret, São Paulo, edição de 2008, com alguns comentários meus pertinentes às passagens colacionadas.

A espontânea e permanente comunhão do homem com Deus é o termo final da nossa jornada evolutiva, a mais alta perfeição do ser humano considerado em sua plenitude. Representa a mais profunda felicidade da nossa vida, uma beatitude firme, silenciosa, anônima, de que não fazem ideia os que não a experimentaram pessoalmente. Os únicos homens realmente felizes, através de todos os séculos e milênios, foram os que tinham realizado esse supremo destino de sua vida” (p. 17).

Ainda que Rohden tenha deixado o apostolado católico, a influência Cristã permaneceu em sua vida, tendo ele mantido a posição de destaque de Jesus, o Cristo, em seus escritos, sendo a passagem acima uma clara indicação da força do Cristianismo original em sua obra, indicando a necessidade da busca da comunhão ou unidade com Deus, a exemplo de Jesus, o Cristo.

Depois de dizer que nossa evolução histórica passa pelo mundo dos “sentidos”, mediado pelo reino da “inteligência” em direção ao universo do “espírito”, e sustentar que este último é o mundo da autêntica realidade, na medida em que é o espírito que causa a matéria, afirma que:

a causa – e, neste caso, a Causa Primária, Eterna, Absoluta, que as religiões chamam Deus – é infinitamente mais real do que qualquer um de seus efeitos, ou mesmo a soma total dos efeitos por ela produzidos.

Objetivamente’ considerado, isto é, em si mesmo, é o mundo do espírito incomparavelmente mais real do que o da matéria – embora ‘subjetivamente’, isto é, segundo o nosso modo de conhecer, parece o mundo material muito mais real do que o mundo do espírito. A verdadeira evolução do homem consiste em tornar o mundo do espírito subjetivamente tão real como ele é real objetivamente” (p. 18).

Desta passagem podem ser constatadas influências de Aristóteles e seu primeiro motor e a substância eterna e independente das coisas sensíveis, por um lado, e de Hegel, de outro lado, ao sustentar que apenas o que é racional é real, de modo que apesar da simplicidade e aparente ingenuidade do texto, nele está presente uma profundidade metafísica e filosófica que escapa ao leitor menos atento.

Rodhen destaca que o principiante da jornada rumo à realidade espiritual, o semi-espiritualizado, pode chegar a ter antipatia por tudo o que é material, tendo ímpetos de maldizer o mundo material alegando que este foi criado por um satanás ou anti-Deus e pensando que não deve se ocupar com as coisas materiais. Contudo, no desenvolvimento da caminhada espiritual, deve adquirir uma visão mais adequada e completa da realidade.

A sua filosofia estreita e unilateral culmina numa visão vasta, panorâmica, onilateral, redimindo-o de todas as ignorâncias e erros. Chega a descobrir aos poucos que, como não existe um mundo sem Deus, assim também não existe um Deus sem o mundo – mas que o Deus do mundo está no mundo de Deus, e que cada átomo e astro deste mundo é uma revelação do Deus do mundo. Faz então a jubilosa descoberta de que cada coisa material, quando devidamente compreendida, pode servir de canal e veículo para conduzir o homem a Deus, do artefato ao Artífice, da obra ao Obreiro, do raio luminoso ao Foco da luz, das pequeninas ondas do rio ao Oceano imenso, donde essas águas vieram e para onde voltarão” (p. 19).

Rohden deve ser considerado um integrante da Teologia panenteísta, segundo a qual Deus está no mundo, é imanente ao mundo, mas não se confunde com o mundo, porque também o transcende. Sobre esse tema, o interessante vídeo “Christianity and Panentheism” (https://www.youtube.com/watch?v=_xki03G_TO4) sustenta a compatibilidade de um panenteísmo fraco com o Cristianismo.

Esse assunto é de importância fundamental, segundo penso, porque o Cristianismo ocidental assumiu um pensamento dualista, de dois mundos ou duas realidades, em razão de uma determinada leitura das Escrituras, que se afasta da ideia bíblica original e permite a vida esquizofrênica que temos, porque valores opostos e contraditórios são sustentados no mundo da vida, sem que as pessoas percebam a incongruência e insustentabilidade filosófica e racional dessa situação, notadamente no plano político. Isso é a principal causa do atual conflito entre esquerda e direita, em países de influência predominantemente Cristã, porque alguns dão ênfase à liberdade individual e outros à igualdade material, sem que cheguem a um denominador comum, seja por vaidade, ignorância ou egoísmo.

Daí a importância da caminhada espiritual, porque o homem plenamente espiritual:

esse homem aboliu definitivamente o egoísmo, em todas as suas formas, e por isso já não tem necessidade de olhar, vacilante e incerto, para trás e para todos os lados, com receio de que o bem que tenciona fazer à humanidade possa, talvez, redundar em detrimento de seus interesses pessoais. O egoísta não pode lançar-se corajosamente, de corpo e alma, ao oceano imenso do reino de Deus, às ondas bravias de uma causa comum, porque tem de calcular meticulosamente e especular sagazmente, a ver se este ou aquele serviço que vai prestar a seus semelhantes não venha a ser um desserviço para seus interesses individuais ou à política estreita de sua família ou grupo social. O homem espiritual, porém, está livre desses percalços paralisantes, uma vez que renunciou definitivamente a todo e qualquer interesse individual e se consagrou integralmente à grande causa da humanidade.

Do homem que algo espera do mundo nada pode o mundo esperar – mas do homem que nada espera do mundo tudo pode o mundo esperar” (p. 20).

Observando o universo político nacional e internacional, quão difícil é encontrar pessoas que realmente se lançam em favor de uma causa comum da humanidade, sem se preocupar com os interesses particulares e exclusivos de determinados grupos, interesses esses muitas vezes incompatíveis com a salubridade e com o equilíbrio social.

Daí o destaque para a atividade messiânica de Jesus, o Cristo, que exerceu exatamente essa função, dando o exemplo, sendo o Caminho para a melhor e mais perfeita realização da causa comum humana. Por isso o Reino de Deus é dependente dos Cristãos, daqueles que seguem o exemplo de Cristo, o pleno homem espiritual, porque “é só do homem realmente espiritual que o mundo pode esperar melhores dias” (p. 21), e qualquer um que pense com um pouco de honestidade intelectual não hesitará em concordar plenamente com isso.

O Reino de Deus, contudo, não é algo que seja de fácil conquista, não basta a recitação formal da Lei, é preciso esforço para seu cumprimento integral na atividade diária, para alcançar a gloriosa liberdade dos filhos de Deus: “A Lei e os Profetas até João! Daí em diante, é anunciada a Boa Nova do Reino de Deus, e todos se esforçam para entrar nele, com violência” (Lc 16, 16).

Como disse Huberto Rohden:

Essa gloriosa liberdade, porém, não é um presente de berço que o homem receba gratuitamente, mas é uma esplêndida conquista, o triunfo máximo de uma vida consagrada à verdade redentora.

Conhecereis a verdade – e a verdade vos libertará’ (Jesus, o Cristo).

Ora, sendo Deus a verdade eterna e a suprema liberdade, é só pela íntima união com ele que o homem consegue essa verdade libertadora, que é a quintessência da vida espiritual e dinâmica” (p. 21).

E isso é só o Prefácio, que se inicia com a primeira citação acima, de página 17, e se encerra com as últimas palavras transcritas.

Homem: um ente simbólico

Aristóteles define o homem como um animal político, zoon politikon.

Contudo, antes de ser político, o homem é um ente simbólico, é um ser espiritual, pois vive no mundo qualificado por ideias e sentidos.

A humanidade, destarte, está inserida em um ambiente de significados, que podem ser carnais e/ou espirituais, sendo o materialismo a filosofia que descarta a existência de significação espiritual ou transcendente, e para a qual os únicos sentidos válidos são os 05 (cinco) sensoriais.

O idealismo, por sua vez, entende que o espírito ou ideia dá significado às coisas, até mesmo aos sentidos ou sensações carnais, condicionando a ação na carne, segundo uma racionalidade pela qual os fenômenos do mundo são organizados simbolicamente, racionalidade que não é exclusivamente carnal, transcendendo os cinco sentidos.

A diferença entre o materialismo e o idealismo está no fato de que o primeiro coloca no centro da experiência simbólica, que condiciona o entendimento do mundo, as sensações carnais: tato, olfato, paladar, visão e audição; enquanto para o idealismo existe uma unidade inteligente espiritual além desses sentidos, da qual se origina a experiência simbólica, moldando o significado dos fenômenos existenciais. O materialismo tem um simbolismo de baixo para cima, da parte para o todo, que, quando existe, é acidental e aleatório; já o idealismo estabelece seus sentidos de cima para baixo, possuindo um todo significativo, o simbolismo de uma totalidade necessária, da qual são derivados os sentidos das partes.

A política, nesse sentido, já é o desenvolvimento de símbolos sociais, porque também as sociedades animais têm organização política, ainda que instintiva e rudimentar, podendo serem citados como exemplos as abelhas, as formigas, os leões e mesmo os primatas.

O que diferencia o homem dos animais é a possibilidade de escolha simbólica/espiritual sobre como serão organizados os símbolos com base nos quais a sociedade terá seu funcionamento, enquanto a sociedade animal tem um funcionamento principalmente biológico, enquanto instintivamente condicionado.

Por isso, a biologia animal determina o líder do grupo valendo-se de sinais, como símbolos físicos, seja por meio da condição genética, pela força ou por exibição de determinado comportamento, para determinar o vencedor dentro da sociedade animal, até que em novo ciclo um membro mais jovem ocupe o lugar de liderança. O poder social, seja entre os animais ou entre os humanos, é exercido a partir de sinais ou símbolos que dão significados e valores a determinados membros do grupo e seus comportamentos, colocando-os em posição e função diferenciada na comunidade, de comando ou de obediência.

Desta feita, a organização social é simbólica mesmo entre os animais, pelo que, antes de ser político, o homem é um ente simbólico.

Os sinais se manifestam, são guiados, inicialmente, pelos sentidos corporais, como o som, através dos quais os membros do grupo se comunicam; o olfato e o paladar dos alimentos, que podem ser benéficos ou nocivos; a imagem das coisas, no que se inclui a quantidade de luz, que define o dia ou a noite; o contato corporal em relações afetivas, inclusive para reprodução. Todos são sinais, ou informações, processados pelos organismos, dando sentido aos comportamentos, em uma direção específica ou outra, de uma lógica mais simples até uma mais complexa.

Entender a lógica desses sinais é fundamental para a compreensão da vida, pesquisa desenvolvida pela ciência, com destaque para a psicologia. No curso da vida, assim, foram sendo desenvolvidas formas de organizações mentais dos sinais, passadas de geração em geração, o que Jung denominou arquétipos do inconsciente coletivo, que são espécies de instintos transindividuais, possivelmente adquiridos no curso da evolução, que se unem aos sinais corporais para regular o comportamento dos indivíduos. Ressalte-se que o conhecimento contemporâneo sobre o funcionamento do inconsciente coletivo, e da sua simbologia mais profunda, é ainda incipiente, porque predomina na psicologia a proposta materialista e individualista de Freud.

Os homens têm, ainda, a capacidade de produzir sinais, os quais tornaram gradativamente mais complexa a simbologia humana, abrangendo relações sutis que vão além da capacidade animal de compreensão, criando uma teia intrincada de relações de sentidos que dificultam o entendimento dos fenômenos até mesmo pelos indivíduos humanos, o que vale também para o ambiente político, que está inserido em um contexto mais amplo de símbolos. Cristo representa, nesse sentido, um símbolo de totalidade, como destacado na obra de Jung “Aion: Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo”.

Na teoria política, segundo o marxismo, explicando o funcionamento da vida humana, os valores econômicos estão na base dos símbolos sociais, sendo as relações de produção a infraestrutura sobre a qual são construídas as relações sociais, da superestrutura, onde está situada a política. No materialismo, assim, a simbologia econômica é fundamental e determinante para o significado geral do mundo.

Ainda que a produção de bens seja de grande relevância, os símbolos econômicos que permitem as trocas e estabelecem os preços das mercadorias são dependentes da ligação psíquica ou espiritual dos indivíduos frente aos significados mais essenciais da vida, escolhidos ou eleitos pelos membros do grupo social, que podem dar prioridade aos bens materiais ou aos espirituais.

Desta feita, contrariamente ao marxismo, o Cristianismo é a filosofia ou religião segundo a qual o valor máximo é o Espírito, o Logos, a Inteligência:

Não busqueis o que comer ou beber; e não vos inquieteis! Pois são os gentios deste mundo que estão à procura de tudo isso: vosso Pai sabe que tendes necessidade disso. Pelo contrário, buscai o seu Reino, e essas coisas vos serão acrescentadas. Não tenhais medo, pequenino rebanho, pois foi do agrado do vosso Pai dar-vos o Reino!” (Lc 12, 29-32).

Assim, na simbologia Cristã os bens materiais são necessários para o desenvolvimento humano, mas a preferência é pela conquista do Reino, uma realidade que está além da mera satisfação corporal e do consumo imediato.

No Cristianismo, a unidade simbólica do mundo, ligada à construção arquetípica da psique humana, está presente na mente coletiva, uma mente que transcende as individuais, não está presente nos genes ou no cérebro, e age no espírito dos indivíduos por meio da espécie que integram. Existe, outrossim, uma alma coletiva à qual os indivíduos pertencem e têm acesso, não estando dentro de seus corpos individuais, mas à qual se conectam espiritual e simbolicamente, por uma rede de significados que permanece no ambiente social a despeito da morte dos membros do grupo, o que filosoficamente é conhecido como Tradição.

A Religião, desta feita, é uma forma de manutenção do significado da Tradição, que no mundo ocidental é presentada pelo Monoteísmo, especialmente pelo Livro transmitido por milênios, de geração em geração, para preservação daquela unidade simbólica do mundo que, de outro lado, é igualmente buscada pela Filosofia e pela Ciência.

A Escritura significa um processo histórico de desenvolvimento e realização da Ideia, da Lei Perfeita, do Logos, na humanidade, sempre com um significado político subjacente, do Reino prometido inicialmente a Abraão, renovando-se a promessa com Moisés, depois com Davi, indicando a paz entre as nações submetidas ao Deus Altíssimo.

Destarte, o Cristianismo é culminação dessa Ideia, porque o Messias, ou Cristo, está associado ao nome de Davi, como Rei de Israel, mesmo que sua concretização histórica ainda esteja em curso, pelo desenvolvimento teórico, filosófico e científico da simbologia da totalidade existencial realizada por Jesus no Monoteísmo.

O Livro é, ao mesmo tempo, a Palavra de Deus, a História sagrada, que tem seu ápice em Jesus, o qual inaugura uma nova e definitiva simbologia religiosa, e científica, tão complexa e sutil que passados cerca de dois mil anos ainda não teve seu sentido compreendido plenamente, notadamente quanto ao significado do Reino, a despeito de a maior parte da filosofia ocidental ter sido desenvolvida tendo como pano de fundo e fundamento a cosmovisão Cristã e seus princípios racionais.

O Reino é a mensagem principal, é o centro do Evangelho, Boa Nova da aproximação e realização da obra de Deus na humanidade, em sua plenitude, a partir de Jesus Cristo, em quem o cumprimento das promessas, da Ideia, se consuma e tem início, obra na qual a comunidade política tem valores verdadeiramente humanos e racionais, lógicos, o Logos, no qual o significado de humanidade, o símbolo da perfeição existencial, alcança um outro nível categorial, em salto qualitativo sem igual, ao transformar os governantes em servos dos governados, o que ainda não se conseguiu colocar em prática nas políticas nacionais e internacional.

Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam, e os seus grandes as tiranizam. Entre vós não será assim: ao contrário, aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o vosso servidor, e aquele que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o servo de todos. Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10, 41-45).

Importante salientar o contexto simbólico dessa passagem, relativo ao Reino de Deus, ao governo do Messias, o maior governante ou líder político que o mundo jamais viu ou verá, e sobre quem estaria com ele no comando, à sua direita e à sua esquerda, o que demonstra o quão avançada e revolucionária, além de racional, é a proposta Cristã, de encarnação do Logos.

Deus era a Palavra, o Verbo, a unidade perfeita em ação, que estava no princípio. Depois unidade em Ideia, em Palavra, que se apresentou à humanidade, na mente, nas palavras e na vida dos profetas, nas Escrituras, que se realizaram em Jesus, dando este plenitude à Lei, à Palavra, em sua vida. Assim, a Palavra, o Verbo, a Escritura se cumpriu completamente em Jesus, fez-se carne e habitou na humanidade, individualmente, como modelo a ser seguido pela coletividade.

A simbologia Cristã é do cumprimento da Lei, da realização da Justiça, porque Jesus, o Messias, é justo integralmente, como Rei e Sacerdote, o que possui significado político e religioso. Cumprir a Lei significa encarnar o Logos, a Palavra, a Unidade simbólica e real, de modo que encarnar o Verbo é agir com Justiça, como Deus é Justo e Completo.

Unidade e matemática

Ainda sobre a dúvida quanto à origem da matemática e seu fundamento, tal problema, como sustentando anteriormente, é decorrente da perda da percepção da unidade existencial primordial, da qual é originado o conhecimento intelectual, inclusive o matemático, a partir de procedimentos de divisão psíquica, sensorial e racional, como momentos de abstração da unicidade do Ser.

Já o conhecimento sensorial decorre da divisão neurológica entre partes do corpo, como mão, boca e pé, por exemplo, entre o corpo e o ambiente e do próprio mundo sensível em si, por meio dos entes exteriores, sendo exemplo as faixas do espectro luminoso, divisão que é representada pela significação própria das partes separadamente e dos todos a que pertencem, por imagens mentais e símbolos, devendo ser reconhecido que o conhecimento intelectual é produzido a partir de símbolos, que se transformaram em palavras, e em linguagens analíticas, do que é exemplo a matemática, esta uma forma de linguagem objetiva, isto é, cujos símbolos têm um significado unívoco dentro do sistema a que pertencem, ao contrário das palavras usadas no mundo da vida, que podem receber sentidos divergentes, como o metafórico e o alegórico.

Os números e expressões matemáticas são, assim, sinais utilizados para representar uma unidade que os transcende, da qual foram extraídos por abstração mental. Ainda que esses símbolos em seu conjunto apenas apontem para uma realidade existencial, com a qual não se confundem, isso não significa que não tenhamos acesso cognitivo à unidade do mundo, ao númeno, contrariamente ao que sustenta o positivismo baseado na proposta filosófica de Kant.

Nesse ponto, depois do último artigo, aceitei uma sugestão do algorítimo do YouTube, assistindo a uma exposição de Ray Monk sobre a Filosofia da Matemática (Intro to the Philosophy of Mathematics – https://www.youtube.com/watch?v=bqGXdh6zb2k). No vídeo são abordados, em resumo essencial, dois mil e quinhentos anos da história da matemática, dos gregos antigos até Bertrand Russell e Wittgenstein, passando por Kant, transitando entre matemática e filosofia, a partir do conceito pressuposto de logos, de uma lógica.

O que fica claro nessas abordagens é o silêncio eloquente quanto à ideia semítica do Logos, a partir do Evangelho atribuído a João, segundo o qual o Logos estava no princípio e se encarnou em Jesus Cristo, isso cerca de quatrocentos anos após o auge grego, sintetizando o Evangelho conceitos do mundo greco-romano com a filosofia monoteísta, na medida em que a mundividência da palestina estava impregnada da cosmovisão grega, após a helenização proporcionada por Alexandre Magno. Desta feita, a ideia grega de logos estava pressuposta na elaboração do Evangelho, tendo recebido um novo significado, na Teologia monoteísta.

Em que pese a precedência da Teologia sobre os demais ramos do conhecimento, tal síntese joanina logo foi mal interpretada, na construção de uma ideia politeísta com pretensão monoteísta, a trindade, a que se somou o dualismo platônico presente em Agostinho, Descartes e Kant, todos com uma visão de mundo subjacente declarada e essencialmente Cristã, a qual, de outro lado, é monoteísta e monista. Desta feita, em razão da falha teológica inerente à trindade e ao dualismo que dominou a filosofia ocidental após Agostinho de Hipona, com uma teologia pseudomonoteísta, porque, de fato, dualista, o mundo ainda não experimentou a plenitude da vida Cristã, ligada à unidade cósmica, à sua experimentação pela humanidade e ao conhecimento respectivo, no autêntico monismo e Monoteísmo de Cristo, que elevou à perfeição o de Moisés.

A unidade filosófica e científica, outrossim, foi rompida, para muitos nunca alcançada, e segundo Kant é impossível recuperá-la ou atingi-la, tendo sido o conhecimento humano transformado em ciência de meros limites do saber, em probabilidades matemáticas, como se não houvesse uma unidade infinita e real por trás desses limites ilusórios, criados por nossas mentes.

Mesmo que nosso conhecimento sensorial da realidade última seja sempre incompleto, a existência dessa realidade não deve ser esquecida na produção científica. É importante destacar que a filosofia de Kant tinha como escopo deixar no conhecimento científico um espaço intelectual reservado para Deus, o mundo numinoso, mas o desenvolvimento do positivismo levou à exclusão de Deus do âmbito científico, tornando o saber humano fragmentário e sem fundamento.

Nesse sentido, o formalismo da parte, o reducionismo, positivista e materialista, mostrou-se insuficiente para a compreensão dos fenômenos do mundo, urgindo seja substituído pelo formalismo do todo, da unidade, presente direta e indiretamente em todas as coisas.

É conhecimento bíblico antigo que Deus pode ser conhecido através da criação, das coisas criadas.

Os céus contam a glória de Deus, e o firmamento proclama a obra de suas mãos” (Sl 19, 2).

Porque o que se pode conhecer de Deus é manifesto entre eles, pois Deus lho revelou. Sua realidade invisível — seu eterno poder e sua divindade — tornou-se inteligível, desde a criação do mundo, através das criaturas, de sorte que não têm desculpa” (Rm 1, 19-20).

O acesso ao númeno, contudo, não é apenas formal, mas utiliza integradamente todas as formas de elaboração cognitiva que possuímos, relativas às quatro funções psicológicas fundamentais descritas por Jung, pensamento, sentimento, sensação e intuição.

Outrossim, nós temos algum conhecimento da coisa em si, do mundo numinoso, ainda que em parte, por nossa limitação psíquica e espiritual que tem reflexos nas funções cognitivas e sensoriais, pelo que o conhecimento completo, face a face, por ora, é relegado para outro momento existencial, dependente de uma evolução da espécie ao nível de Cristo. De todo modo, é fato que nós integramos a unidade cósmica, participamos da natureza divina.

Pois nele vivemos, nos movemos e existimos, como alguns dos vossos, aliás, já disseram: ‘Porque somos também de sua raça’” (At 17, 28)

A filosofia dualista, portanto, como a de Kant, contraria a essência filosófica do monoteísmo e sua unidade existencial e impede que Sujeito e objeto se unam, não permite que Deus, a partir de sua criatura, possa dizer “Eu e o Pai somos um”, quando ocorre uma unidade ontológica entre corpo e Espírito, entre o sujeito e o objeto do conhecimento, a coisa em si, ainda que limitada quanto a determinados aspectos desta.

A unidade a priori do mundo é rompida com a divisão, efeito que também ocorre na matemática, e por isso todo sistema matemático é necessariamente incompleto, como demonstrado por Gödel. O teorema da incompletude de Gödel significa que todo corte matemático separa parte da realidade, deixando de lado a unidade infinita existencial a que pertencemos, que é una e incalculável. O corte, porque parcial, exige outra divisão para sua complementação e fundamentação, que demanda outra, sucessiva e infinitamente, em direção à unidade do Ser, pressuposta e intuída. A parte, por definição, não pode apreender o Todo do qual foi abstraída, e deve a ele remeter.

Como não se pode alcançar precisão matemática com números infinitos, a limitação se faz necessária, para permitir uma análise dos fenômenos, por meio da construção de categorias fundamentais que possibilitam o conhecimento, mas essas categorias devem ser entendidas como instrumentais que apontam para um objeto de estudo, que é a realidade una, da qual emergem simbolicamente, por meio de abstração mental, a matemática e a física, incluindo o reino o quântico e o espaço-tempo. Saliente-se que a unidade do espaço-tempo, em termos históricos, foi recentemente descoberta, representando a junção de categorias que antes se pensava serem fundamentais e distintas. O entrelaçamento quântico, de outro lado, indica uma unidade física ainda mais profunda que a do espaço-tempo, porque independente do espaço e do tempo.

Portanto, a realidade não tem natureza probabilística, como determinada interpretação da física sugere, sendo a incerteza mero efeito da limitação de nossa linguagem, existindo uma unidade real e infinita que transcende as frações e percentuais possíveis encontrados pela física matemática, que é apenas um instrumento de aproximação simbólica daquela realidade mais ampla, a qual não pode ser esquecida ou desprezada pela atividade científica.

Com a concepção da natureza instrumental e a posteriori das categorias científicas, o que também engloba a matemática, é possível retornar simbolicamente ao ponto do corte, que é o momento inicial de divisão da realidade e de estabelecimento das categorias com as quais serão compreendidos aspectos da unidade numênica, ponto que remete à unidade da realidade e determina metodologicamente a veracidade dos juízos sintéticos, tanto em sua relação lógica interna quanto em seu contato com a coisa em si.

O conhecimento científico, como desenvolvimento de uma concepção filosófica de mundo, portanto, e conforme conceito proposto por Olavo de Carvalho, está atrelado à “busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa” (http://www.olavodecarvalho.org/textos/quee.htm), o que significa formular juízos sintéticos a priori em que a linguagem, não somente a matemática, seja instrumento de realização da unidade existencial na realidade da vida, em termos psíquicos, sensoriais e intelectuais, na prática individual e social, efetivando a unicidade do Ser na Humanidade, segundo o Caminho, ou Método, Cristo, “a fim de que todos sejam um. Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, que eles estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17, 21), o que, todavia, mesmo os filósofos ditos Cristãos muito dificilmente conseguem realizar.

Filosofia e matemática

Em dois dos últimos livros por mim lidos, sobre Filosofia, o encerramento tratou da relação entre Filosofia e matemática, uma vez que Carlos Augusto Casanova encerra a obra “Física e Realidade: reflexões metafísicas sobre a ciência natural” com dois apêndices: “Sobre a realidade das matemáticas” e “Notas matemáticas acerca de Hilbert e seus estudos sobre as geometrias não-euclidianas e não arquimédicas”. Vittorio Hösle, por sua vez, em “Interpretar Platão”, igualmente, aborda a matemática nos dois últimos capítulos: “Sobre a filosofia platônica dos números e seu significado matemático e filosófico” e “Fundamentação platônica da euclidicidade da geometria”.

Hösle parte do princípio adotado por Casanova, dizendo este que a matemática não pode ser considerada a primeira das ciências, como exposto no artigo “Hierarquia das Ciências” (https://holonomia.com/2019/02/06/hierarquia-das-ciencias/):

Casanova, todavia, acertadamente, rejeita a ideia segundo a qual a matemática seria a primeira das ciências, aludindo à Metafísica de Aristóteles para aduzir que a matemática supõe axiomas primeiros, que não são por ela estudados, declarando que a física é subordinada à matemática que, por sua vez, é subordinada à metafísica, porque é esta última que tem como objeto o princípio de não-contradição, pressuposto tanto pela física como pela matemática, das quais não é alvo de estudo.

Ora, uma disciplina que supõe o axioma fundamental, que não o considera, não pode ser tida como a primeira de todas. Mas é óbvio que a disciplina que em sua etapa ‘demonstrativa’ (não somente ‘inventiva’) considera o princípio de não-contradição é a metafísica. Somente ela, portanto, possui o título para reclamar a primazia entre as ciências’ (Idem, p. 53 – negrito meu).”

Vittorio Hösle destaca Platão como o primeiro a reconhecer que a matemática não pode ser fundamentada a partir de si mesma “na medida em que o critério de consistência formal permite a formação de sistemas opostos”, do que decorre “a deficiência, por princípio, de qualquer forma de filosofia que tome por modelo o método matemático”, exigindo-se um método mais consistente que a matemática para que se possa chegar à verdade possível, o que depende de um fundamento iniludível que é, segundo Platão, “o pensamento do pensamento, que se fundamenta reflexivamente, em última instância, pois se fundamenta a si mesmo, no pensamento dos princípios e da mais altas Ideias” (Vittorio Hösle. Interpretar Platão. Trad. Antonio Celiomar Pinto de Lima. São Paulo, SP: Edições Loyola, 2008, p. 163).

Hösle esclarece a divergência filosófica entre Platão e Aristóteles no estabelecimento de uma ordem para as ciências, porque o primeiro entendia que a hierarquia tinha a metafísica no topo das ciências, seguida pela matemática e depois pela física; enquanto o segundo ordenava o conhecimento partindo da metafísica, sucedida pela física, estando a matemática em terceiro lugar na importância científica. Salienta, por fim, que “com essa subordinação da matemática à física está dada, obviamente, uma opção pela geometria; afinal, são corpos e grandezas, não números, que, enquanto movidos, são objeto da física” (Idem, p. 173).

É possível entender que os dois grandes nomes da filosofia grega tinham abordagens distintas da natureza, pois Platão desenvolveu a doutrina das ideias, tentando explicar o Ser em sua concepção permanente, que transcende as aparências corporais, enquanto o foco de Aristóteles estava no movimento de transformação do Ser, tendo estudado as causas que levam o Ser de um estado a outro.

Vale salientar que o platonismo é uma filosofia dualista, dizendo Hösle que Platão chegou a essa dualidade, na matemática, depois que “um Uno totalmente transcendente se revelou impossível” (Idem, p. 175), ressaltando que a hierarquia platônica do Ser, de modo simplificado, “se constitui de princípios, Ideias, entidades matemáticas e mundo natural” (Idem, p. 179).

Aristóteles, contudo, não aceitou a existência independente de substâncias matemáticas, dizendo que, “em geral, resultam conclusões que são contrárias tanto à verdade quanto às opiniões habitualmente aceitas se postularmos assim os objetos das matemáticas como coisas que existem separadamente” (Aristóteles. Metafísica. Trad. Edson Bini. 2 ed. São Paulo: EDIPRO, 2012, p. 324). E conclui no sentido de que “(1) os objetos das matemáticas não são mais substanciais do que os objetos corpóreos, que (2) não são anteriores, do ponto de vista do ser, às coisas sensíveis, mas apenas do ponto de vista da fórmula, e que (3) não podem, de modo algum, ter existência independente” (Idem, p. 325).

É notável, pois, a divergência metafísica, quiçá teológica, entre Platão e Aristóteles, decorrendo daí uma concepção diferente quanto à natureza e à função da matemática. Entendo que essas posições antagônicas têm origem na forma pela qual dois dividem ou cortam a realidade, a partir de um primeiro princípio.

Platão via o mundo filosoficamente de forma dual, o mundo das ideias e o mundo da natureza, e dessa visão decorria o seu entendimento sobre todas as coisas. Em sentido oposto ao defendido por Platão, podemos compreender a realidade como uma unidade integral, que não pode ser conhecida racionalmente sem uma análise ou divisão de sua manifestação, o que dissolve provisoriamente aquela unidade original.

Pode-se, portanto, concordar com Aristóteles no sentido de que a matemática não tem existência independente, resultando de uma ação humana sobre a realidade, a ação de separar ou dividir o mundo em fenômenos, sendo que talvez exista, de fato, aquele Uno totalmente transcendente que fora descartado por Platão.

Assim, ao invés de adotar uma metafísica dualista, como a de Platão, podemos pressupor uma metafísica monista, entendendo o universo como uma totalidade da qual separamos coisas e fenômenos para fins de conhecimento do movimento cósmico, que tem origem no primeiro motor, que tudo move sem se mover. Como destacado por Aristóteles, “há uma substância que é eterna, imóvel e independente das coisas sensíveis, tendo sido também mostrado que essa substância não pode apresentar qualquer magnitude, mas que é sem partes e indivisível, pois produz movimento num tempo infinito, e nada finito possui uma potência infinita” (Metafísica, obra citada, p. 309).

Parte-se, portanto, de uma realidade única e infinita, ideia resgatada por David Bohm, dizendo que o objeto da Física é uma totalidade indivisível, o holomovimento do qual são abstraídos determinados aspectos para fins de estudos, e “qualquer parte, elemento ou aspecto que possamos abstrair no pensamento, isso continua a envolver o todo e está, portanto, intrinsecamente relacionado com a totalidade da qual foi abstraído. Consequentemente, a totalidade permeia tudo o que está sendo discutido desde o início” (David Bohm. Totalidade e a ordem implicada. Tradução Teodoro Lorente. São Paulo: Madras, 2008, p. 179).

Tal conclusão vale também para a matemática que é, assim, o resultado da atividade criativa humana de dividir a realidade, pelo que a operação matemática fundamental pode ser considerada a divisão, qualitativa ou quantitativa, distinguindo entre o “eu” e o “outro” e o “eu” e as “coisas”, entre coisas e fenômenos semelhantes e distintos, e entre unidades espirituais e corpóreas, abstraídas da totalidade do Ser.

Vittorio Hösle afirma que as mais importantes posições da filosofia da matemática do século XX são o intuicionismo, o logicismo e o formalismo. O formalismo busca uma completa autonomia para a matemática, entendendo que a consistência é suficiente como um critério de verdade da ciência matemática. O logicismo, por sua vez, fundamenta a matemática na lógica, com a qual se confunde. Dentro da linha intuicionista, Hösle destaca Brouwer, que rejeita a “ontologização de entidades matemáticas”, para quem estas “são produzidas através de um ato psíquico de consciência com o qual tendencialmente são até mesmo identificadas”, vendo Brouwer a matemática como um fenômeno histórico a serviço da vida (Obra citada, pp. 208-209).

Ocorre, destarte, na produção do conhecimento intelectual, uma separação psíquica e/ou uma separação material nos fenômenos do mundo, como abstrações da realidade única, sendo que a matemática é, pois, resultado da divisão dessa unicidade fundamental do mundo. A unidade é a realidade básica, e todo conhecimento, matemático ou não, decorre da operação mental primordial que é a divisão, a divisão criativa que parte o mundo espiritual e material em unidades iguais, ou não, que, por sua vez, podem ser também divididas, em proporções variadas.

O corte da realidade pode ser feito com ou sem perda de substância. Há perda de substância quando o resultado da divisão é propriamente uma divisão, em que as partes são dependentes do todo para que pertençam a uma unidade, como ocorre na divisão material e corporal das coisas, desdobrando seus acidentes. Também é possível a manutenção da unidade primordial após a operação, que significará, de fato, uma multiplicação, quando não há perda de substância durante a divisão, o que se dá, por exemplo, quando Deus divide conosco seu Espírito, fazendo de nós integrantes do primeiro motor, em nossa essência imóvel, talvez sendo esse o fundamento da geração dos números, a partir da dualidade, em Platão, ou da multiplicação bíblica dos pães, ou da criação de espaço por meio da energia escura.

Além disso, a partição pode ser em retas ou curvas, pode ser euclidiana ou não, no que se inclui a quebra fractal, havendo inúmeros sistemas matemáticos decorrentes de princípios ou cortes distintos pelos quais parte da realidade una pode ser abstraída ou destacada do todo o qual integra e de cuja existência é dependente, porque a totalidade permeia tudo o que está sendo discutido desde o início. Nesse ponto, como já salientado, todo sistema matemático é condicionado pela Metafísica, que determina como se dá aquele corte, sendo que o sistema matemático em si será sempre circular, incapaz de fundamentar-se a si mesmo, como ressaltado.

A unidade primária é inconsciente e imemorial, como visto no artigo anterior, já surgindo a consciência como um estado de separação inicial, o que permitiu a formação das ciências arcaicas, que se desenvolveram em conhecimentos mais recentes, incluindo os dos filósofos gregos, que já pressupunham, por sua vez, uma divisão mental realizada pelos pioneiros da atividade científica a partir da criação dos mitos, e disso decorre a dificuldade em se entender que a unidade é o estado básico da realidade e que nosso conhecimento já se desenvolveu a partir de uma divisão que está implícita na forma pela qual estudamos os fenômenos.

Essa ideia da unidade básica do mundo é compatível com a cosmovisão da religião monoteísta, segundo a qual apenas Deus é real, em sua unidade completa, eterna, total, sem magnitude, sem partes e indivisível. A divisão dessa realidade pela humanidade, o rompimento com Deus, sem o retorno àquela unidade essencial, é conhecida na literatura Cristã como pecado original, que foi superado por Jesus.

Qualquer corte da realidade una, portanto, é arbitrário e provisório, é uma abstração que deve ser reconhecida como tal, e não pode permanecer, sendo função da Filosofia e da Religião, assim, o que também vale para a Matemática, a manutenção ou recuperação da Unidade do Ser em sua totalidade, rompida por uma divisão, que, por sua vez, decorre de uma escolha Teológica ou Metafísica, para que, então, prevaleça a racionalidade daquele Ser Uno, de modo que a humanidade em sua unidade pensante possa compreender, na existência, intelectual e sensível, superando todas as divisões e abstrações artificiais criadas pela mente humana, o significado autêntico da expressão “eu e o Pai somos um” (Jo 10, 30).