Homo humanorum

É conhecida a controvérsia existente na Biologia sobre a origem dos seres humanos, notadamente pelas propostas evolucionista e criacionista, a primeira decorrente dos estudos consolidados por Charles Darwin e a segunda oriunda da doutrina teológica da criação.

O presente artigo desenvolve um pouco mais a ideia já exposta em “Macroevolução e microevolução” (https://holonomia.com/2017/11/22/macroevolucao-e-microevolucao/), segundo a qual não há incompatibilidade entre a Criação por Deus e uma ideia de evolução das espécies, de acordo com uma Evolução Teísta, porque Ciência e Teologia são um só e mesmo conhecimento.

É preciso, pois, superar o mecanicismo darwiniano e também a ideia criacionista da Terra jovem para se chegar a uma concepção científica e coerente sobre o desenvolvimento da vida em seu sentido teológico.

Como se pode extrair do artigo “Os Matemáticos da Evolução”, de Josiney A. Souza (http://revistas.pucsp.br/index.php/reveleteo/article/view/26612/20067), “os matemáticos descobriram que o mecanismo darwiniano seria viável matematicamente somente se poderosas hipóteses fossem agregadas, as quais a teoria de Darwin não fornece”. Fred Hoyle, conhecido astrônomo, é mencionado no artigo, por suas discordâncias em relação ao darwinismo, constando a seguinte citação de Hoyle: “como sugeriria o bom senso, a teoria darwinista está certa no nível micro, mas não no macro. Os coelhos derivam de outros coelhos ligeiramente diferentes, não de um caldo primordial ou de batatas. De onde eles provêm em primeiro lugar é um problema ainda não solucionado, como muitas outras coisas da escala cósmica”.

As linhas gerais do citado artigo, segundo as teses dos matemáticos, são no sentido de que a evolução não é plenamente explicada pela teoria de Darwin, não podendo ser entendida como um processo cego ou aleatório, e sem inteligência, pois não houve tempo cósmico bastante para tanto, não sendo o (neo)darwinismo suficiente para a compreensão da complexidade da vida, chegando Josiney A. Souza à seguinte conclusão:

A origem da vida e a evolução das espécies exigiram um planejamento racional por algum tipo de inteligência. Esta foi sem dúvida a crítica mais surpreendente dos matemáticos e revelou uma lacuna na teoria neodarwiniana da evolução que aparentemente não pode ser superada dentro da concepção atual da biologia”.

Portanto, há uma ordem oculta que não foi ainda compreendida pela evolução, e pela ciência em geral, que está relacionada aos grandes movimentos da vida, a uma inteligência que permitiu que enormes avanços ocorressem em direção à maior complexidade dos organismos, até chegar à humanidade.

A evolução materialista e darwinista, destarte, não explica a vida humana, devendo ser superada a hipótese de um mundo regido pelo acaso, ou por um processo cego e aleatório, para se aceitar que, de fato, existe cosmos, uma ordem sutil inteligente que regula os fenômenos da existência.

Por isso, mesmo que não se saiba exatamente como chegamos biologicamente até aqui, e pressupondo que a evolução ainda está em curso, é possível fazer uma leitura do Cristianismo como uma explicação da atual fase evolutiva da Vida na terra, em que a nova espécie, e mais evoluída, convive com a antiga, até que ocorra o evento que manifestará a ordem subjacente do mundo e promoverá aqueles indivíduos mais adaptados ao meio cósmico, que tiverem comportamento conforme ao sentido do movimento evolutivo, deixando para trás a forma de vida desconectada do movimento sutil da harmonia existencial.

Assim, pode-se dizer que Jesus Cristo é a evolução do Homo sapiens, ou homem que sabe, em direção ao homem humano, ou Homo humanorum, aquele ser consciente de sua pertença à espécie e de sua integração cósmica, que transcende o mero saber abstrato, porque realiza, por seu comportamento público e privado, a própria ideia de humanidade, encarnando o Logos, o Espírito santo, sendo o cosmos em vida humana. Vale ressaltar que mesmo havendo uma origem comum das palavras “homem” e “humano”, o segundo termo alcançou uma concepção ligada a um status especial, ou uma virtude, ligada ao comportamento elevado, à ação praticada com humanidade.

O próprio Jesus indica a existência de uma mudança de paradigma com sua vinda ao mundo, e a necessidade de obediência a uma ordem superior, que está além do mero nascimento carnal e da ação segundo instintos sensoriais: “Em verdade, em verdade, te digo: quem não nascer do alto não pode ver o Reino de Deus” (Jo 3, 3).

Essa evolução não é carnal, não é visível, porque é espiritual, ligada ao comportamento segundo o Espírito Santo, com humanidade, segundo a Razão de Vida, o Logos, em contraposição ao comportamento decorrente de vontades meramente carnais e egoístas de um membro isolado da comunidade. Tal entendimento também consta do artigo “Ética de Schrödinger” (https://holonomia.com/2018/06/25/etica-de-schrodinger/).

É preciso, pois, para evoluir para a humanidade, deixar os desejos bestiais para viver segundo a Vontade de Deus, segundo o Logos, a Razão ou Espírito Santo.

Vós, porém, não aprendestes assim a Cristo, se realmente o ouvistes e, como é a verdade em Jesus, nele fostes ensinados a remover o vosso modo de vida anterior — o homem velho, que se corrompe ao sabor das concupiscências enganosas — e a renovar-vos pela transformação espiritual da vossa mente, e revestir-vos do Homem Novo, criado segundo Deus, na justiça e santidade da verdade” (Ef 4, 20-24).

Nesse aspecto, Jesus Cristo é o primeiro ser verdadeiramente humano, que nasceu do Espírito, do alto, da coletividade, da humanidade, é o filho da espécie, é o Filho do homem, tendo passado voluntariamente pela cruz para que essa humanidade pudesse nos ser transmitida, pelo Espírito, em cumprimento ao que o Espírito, o Logos, havia profetizado.

Ele é a nossa paz: de ambos os povos fez um só, tendo derrubado o muro de separação e suprimido em sua carne a inimizade — a Lei dos mandamentos expressa em preceitos —, a fim de criar em si mesmo um só Homem Novo, estabelecendo a paz, e de reconciliar a ambos com Deus em um só Corpo, por meio da cruz, na qual ele matou a inimizade” (Ef 2, 14-16).

Antes de Jesus a humanidade não havia se manifestado plenamente em carne, apenas fora vislumbrada em espírito e em alguns comportamentos individuais dignos de posteriormente serem qualificados de humanos. Daí a anunciação da boa nova aos mortos, para que conhecessem a plena verdade da humanidade:

Pois para isso até os mortos a boa-nova foi anunciada, para que, por um lado, fossem julgados segundo padrões humanos em carne; mas para que, por outro, vivessem segundo Deus em espírito” (1Pe 4, 6).

Na plenitude dos tempos, quando o Homo sapiens se entendeu como Homo juridicus, manifestou-se aquele que cumpriu A Lei da Liberdade (https://holonomia.com/2018/10/24/a-lei-da-liberdade/), Jesus Cristo, que assim abriu o caminho evolutivo rumo ao Homo humanorum, a plenitude humana, que é a verdadeira imagem e semelhança de Deus, antecipando em si, por suas ações, o Reino de Deus, a ordem ou inteligência invisível que governa o mundo, e por isso teve a ousadia de dizer: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vem ao Pai a não ser por mim” e “quem me vê, vê o Pai” (Jo 14, 6; 9).

A Lei da Liberdade

Lei e liberdade são temas fundamentais da Ciência do Direito, porque é através de leis que os sistemas jurídicos impõem limites à ação humana, condicionando a liberdade individual para o bem comum.

Existem teorias que pressupõem a existência de várias espécies de leis, especificando as leis divinas, as leis naturais e as leis humanas, as primeiras tratadas pela Teologia, as segundas pela Física e as últimas pelo Direito, umas independentes ou sem ligação direta ou necessária com as outras.

Contudo, superando a referida divisão entre os ramos científicos citados, Teologia, Física e Direito, para a unificação da Ciência, e do conhecimento, é inafastável um conceito de Lei que se aplique, simultaneamente, às aludidas áreas do saber, e esse conceito está ligado à Lei da Liberdade, citada pelo apóstolo Tiago:

Mas quem olhou atentamente para a lei perfeita, que é a lei da liberdade, e continuou não sendo ouvinte de esquecimento, mas sim praticamente de obra – esse será abençoado na prática. Se alguém parece ser religioso, não refreando a língua, mas enganando o seu coração, fútil é a religião dessa pessoa. A religião pura e impoluta diante de Deus Pai é esta: visitar órfãos e viúvas no seu sofrimento; e guardar-se livre da corrupção do mundo” (Ti 1, 25-27).

A lei perfeita, pois, é a Lei da Liberdade, que une Teologia, Física e Direito, porque afeta à religião pura e impoluta diante de Deus, o comportamento conforme a ela altera beneficamente, especialmente em proveito dos necessitados, a realidade material e psíquica do mundo, e isso ocorre dentro de uma visão normativa da sociedade, que define o que constrói e o que corrompe a vida comunitária, o que promove ou contraria a Vida.

É importante frisar que a Lei da Liberdade decorre da Torá, a Lei de Israel, o povo que recebeu a Revelação do próprio Deus, o Deus Vivo que se manifesta na natureza, e no homem, e que instituiu uma nação segundo essa Lei. Todavia, o povo judeu não aceitou a interpretação viva dessa Lei em Jesus Cristo, o Messias, o Enviado de Deus para conduzir, como bom pastor, Seu povo conforme Sua Lei. O povo cristão, por sua vez, afastou-se da realidade temporal e política de Jesus Cristo como Rei dos Judeus, remetendo o Reino para o além. E o povo islâmico nega o que o próprio Alcorão deixa claro, que é apenas a confirmação da Torá e do Evangelho, que é a mesma mensagem transmitida pelos Profetas de Israel e pelo Evangelho de Cristo, mas em língua árabe. Enfim, a Lei da Liberdade é a Lei do Monoteísmo da Humanidade.

A Lei da Liberdade regula a conduta humana infinita, o movimento da vida eterna, o comportamento que transforma em ato visível o que é perpétuo e invisível. Como afirma Aristóteles, o infinito não existe em potência, porque o primeiro motor, que desencadeia o movimento, é sempre ato:

a conclusão é que todas as coisas imperecíveis existem em ato. Nem pode qualquer coisa que é, necessariamente, ser potencial. E, não obstante, estas coisas são primárias, porque se não existissem nada existiria” (Aristóteles. Metafísica. Trad. Edson Bini. 2 ed. São Paulo: EDIPRO, 2012, p. 242).

A Lei da Liberdade, assim, é a lei para agir até o infinito, e receber os efeitos infinitos das próprias ações, como consequência dessas ações perante o mundo; é encarnar o Logos, que estava no princípio, pelo qual tudo foi feito, convertendo em realidade presente o Espírito, Logos ou Razão, pela exteriorização do Reino de Deus que está em nós.

A verdadeira liberdade está associada, portanto, e contraditoriamente, à escravidão à Lei da Liberdade, ao Senhor, ao Logos, que está no Princípio de tudo, inclusive fisicamente, como a Física ao procurar a Lei por trás da criação, ou Big Bang, e que ainda rege o Cosmos. Porque, como demonstrado por Hegel, aquele que se pretende senhor de algo torna-se dependente da coisa ou do outro, que condiciona sua independência à dependência da coisa ou ao reconhecimento do outro, o que o faz escravo da coisa e do outro.

A verdade da consciência independente é por conseguinte a consciência escrava. Sem dúvida, esta aparece de início fora de si, e não como a verdade da consciência-de-si. Mas, como a dominação mostrava ser em sua essência o inverso do que pretendia ser, assim também a escravidão, ao realizar-se cabalmente, vai tornar-se, de fato, o contrário do que é imediatamente; entrará em si como consciência recalcada sobre si mesma e se converterá em verdadeira independência” (Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses. 8 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, pp. 148-149).

Liberdade existe, portanto, quando a autonomia e a heteronomia se fundem na holonomia, quando a lei que está fora é incorporada como a lei interna, e compreendida como a lei do todo, porque o todo é sempre maior do que as partes, e por isso só há liberdade na holonomia.

Até mesmo fisicamente é impossível dominar o mundo em suas partes, porque a tentativa de controlar a realidade nos torna dependente de um movimento eterno que sempre nos escapa, porque o infinito não pode ser contido pelo finito. Quando tentamos dominar o mundo quântico, por exemplo, medindo-o, perdemos a possibilidade quântica infinita, e ficamos limitados e dependentes de uma incerta realidade parcial, relacionada ao que se chama colapso da função de onda, realidade essa que é regida pelo princípio da incerteza. O controle material do mundo nos torna escravos de um descontrole da realidade. A Lei da Liberdade portanto, não é material e parcial, só pode ser espiritual e total.

Ser livre, assim, é servir a Lei da Liberdade, do Espírito, e a Lei da Liberdade é também a Lei da Responsabilidade, da responsabilidade pela unidade cósmica, pelo Logos, pela Razão, e da responsabilidade pelo outro, pelo que a Lei da Liberdade é também a Lei do Amor, e da Misericórdia.

Cumprir a Lei da Liberdade significa interromper os efeitos negativos da ação alheia, não reagindo segundo a carne, mas pelo Espírito, dando amor, dando a outra face, perdão e misericórdia, como nos mostrou aquele que perfeitamente cumpriu a Lei, Jesus Cristo.

Falai, pois, e agi como os que hão de ser julgados pela Lei da liberdade, porque o julgamento será sem misericórdia para aquele que não pratica a misericórdia. A misericórdia, porém desdenha o julgamento” (Ti 2, 12-13).

Para que o perdão e a misericórdia sejam efetivos, contudo, é mister que o beneficiado por eles reconheça o erro e mude de comportamento, é necessário que tenha havido o arrependimento, porque sem o arrependimento, sem a mudança de mentalidade ou metanoia, para viver segundo o Espírito, o perdão e a misericórdia logo perdem seus efeitos.

Deus é espírito (Jo 4, 24), e Deus é amor (1Jo 4, 8), e por isso amar é encarnar Deus, é cumprir a Lei, tornando-se a própria Lei, segundo o Espírito. “O amor não pratica o mal contra o próximo. Portanto, o amor é a plenitude da Lei” (Rm 13, 10).

Porque é amor que eu quero e não sacrifício, conhecimento de Deus mais do que holocaustos” (Os 6, 6).

Ainda assim, porque ainda não nos reconciliamos com Deus, somos corrigidos por Ele, para que nos arrependamos e, então, possamos praticar a Lei com perfeição, porque Deus corrige a quem ama, para que o amado possa ser perfeito, como Deus, tornando-se sua imagem e semelhança.

Meu filho, não desprezes a disciplina de Iahweh, nem te canses com a sua exortação; porque Iahweh repreende os que ele ama, como um pai ao filho preferido” (Pr 3, 11-12).

Vós esquecestes a exortação que vos foi dirigida como a filhos: Meu filho, não desprezes a educação do Senhor, não desanimes quando ele te corrige; pois o Senhor educa a quem ama, e castiga todo filho que acolhe” (Hb 12, 5-6).

Portanto, aceitar a realidade, com humildade, reconhecer a necessidade da educação e da repreensão, quando estamos em erro, pela autêntica “Autoridade” (https://holonomia.com/2018/10/16/autoridade/), para que haja o arrependimento, também é cumprir a Lei da Liberdade, porque “disciplina é liberdade” (Renato Russo).

Autoridade

A ideia de autoridade é fundamental no mundo do Direito. Segundo o Aurélio, a palavra deriva do latim auctoritate, significando: “1. Direito ou poder de se fazer obedecer, de dar ordens, de tomar decisões, de agir, etc. 2. Aquele que tem tal direito ou poder. 3. Os órgãos do poder público. 4. Aquele que tem por encargo fazer respeitar as leis; representante do poder público. 5. Poder atribuído a alguém; domínio” (Aurélio Buarque de Olanda Ferreira. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 4. ed. Curitiba: Ed. Positivo, 2009, p. 234).

Em seu Curso de Direito Romano, Eduardo Vera-Cruz Pinto coloca auctoritas e imperium dentre os binômios fundamentais do pensamento jurídico romano, dizendo que o ius, que aqui pode ser traduzido como direito, é criado pela auctoritas dos jurisprudentes, os quais eram conhecedores do ius com experiência em dar soluções justas para os casos jurídicos a eles apresentados, dizendo que os jurisprudentes “tinham auctoritas, isto é, um saber socialmente reconhecido fundado na experiência” (Eduardo Vera-Cruz Pinto. Curso de Direito Romano. Parede: Principia, 2012, p. 331). O imperium, de outro lado, significa “um poder de soberania e, nesse sentido, um poder absoluto a que os cidadãos não podem opor-se porque é exercido em nome e para o bem da comunidade” (Idem). O imperium se ligado ao poder político, e acabou prevalecendo sobre a auctoritas, levando à confusão indevida e ainda hoje não compreendida entre os conceitos de autoridade e poder.

Tecnicamente, destarte, não se pode falar de abuso de autoridade, mas de abuso do poder derivado da autoridade, porque o mérito ou virtude, ligado à ideia de autoridade, é sempre positivo, não há excesso de justiça.

Portanto, é cabível dizer que a autoridade se liga à origem ou fonte do direito, vincula-se à experiência das pessoas sobre a racionalidade do direito em sua experiência cotidiana a respeito da ideia de justiça. Com o decurso do tempo, a autoridade foi assumida pela forma legal, pela lex, de modo que se passou a entender que tinha autoridade aquele com poder de editar ou aplicar as leis.

No mundo contemporâneo, pela manutenção da confusão dos conceitos de autoridade e poder, a autoridade decorre do procedimento público de criação de leis, pelo parlamento, porque recebeu esse poder da população, poder ligado à autoridade democrática. Entretanto, como visto no artigo “A democracia contemporânea como falácia informal” (https://holonomia.com/2016/10/02/a-democracia-contemporanea-como-falacia-informal/), a democracia atual é meramente formal:

Formalmente, democracia é o governo em que autoridade reside no povo, mas materialmente, democracia autêntica é Reino de Deus, o governo Justo, em benefício do povo, e não apenas nominalmente em seu nome.

(…), resta concluir que a verdadeira democracia é não apenas formal, mas também material, é uma teocracia, em que prevalece o governo de Deus, do Logos, quando os governantes, escolhidos pelo mérito social (o que deve ser feito pelo voto popular, segundo a Constituição) e não por marketing ou abuso de poder, são verdadeiramente ministros (servos) da coletividade, agindo para construir uma sociedade livre, justa e solidária, como manda a nossa Lei Maior, para realizar o Reino de Deus, que está próximo, pois a Lei já vale nacional e internacionalmente, só resta ser executada…”

É permitido dizer que o poder se origina formalmente na vontade popular, em razão do princípio democrático, mas a autoridade decorre do exercício desse poder conforme a razão da comunidade, razão essa que é tanto maior e melhor quanto mais ampla a comunidade humana por ela abrangida. Nesse sentido, o conceito de direitos humanos se refere à comunidade humana, à humanidade.

No artigo “Fundamento e dependência do Direito” (https://holonomia.com/2018/03/20/fundamento-e-dependencia-do-direito/) foi demonstrado que o conceito “dignidade humana”, fundamento dos direitos humanos, decorre da filosofia de mundo Monoteísta, ligada à Bíblia.

Outrossim, os direitos humanos decorrem da autoridade de Cristo, do poder de sua Mensagem, Mensagem esta reconhecida pela Humanidade, porque incorporada como fundamento dos sistemas jurídicos ocidentais, por meio da dignidade humana e dos direitos humanos.

Sobre a autoridade de Cristo, vale dizer, há uma passagem fundamental das Escrituras, pouco explorada para fins de hermenêutica do Cristianismo:

Vindo ele ao Templo, estava a ensinar, quando os chefes dos sacerdotes e os anciãos do povo se aproximaram e perguntaram-lhe: Com que autoridade fazes estas coisas? E quem te concedeu essa autoridade?’ Jesus respondeu: ‘Também eu vou propor-vos uma só questão. Se me responderdes, também eu vos direi com que autoridade faço estas coisas: O batismo de João, de onde era? Do Céu ou dos homens?’ Eles arrazoavam entre si, dizendo: ‘Se respondermos ‘Do Céu’, ele nos dirá: ‘Por que então não crestes nele?’ Se respondermos ‘Dos homens’, temos medo da multidão, pois todos consideram João como profeta’. Diante disso, responderam a Jesus: ‘Não sabemos’. Ao que ele também respondeu: ‘Nem eu vos digo com que autoridade faço estas coisas’” (Mt 21, 23-27).

Tal passagem é reproduzida em Marcos 11, 27-33, e Lucas 20, 1-8, isto é, está em três dos quatro evangelhos canônicos, o que demonstra sua relevância escriturística e importância dentro da narrativa Cristã. Existem duas possibilidades para a relação entre a pergunta feita por Jesus e indagação dos chefes dos sacerdotes e dos anciãos, sobre a autoridade dele e o batismo de João: as respostas estão relacionadas, ou não há ligação entre elas.

Entendo que as respostas estão relacionadas, e dizem muito a respeito do Cristianismo, porque a resposta sobre o batismo de João provavelmente é em ambos os sentidos, que era do Céu e dos homens, porque João Batista anuncia a vinda do Messias, Jesus, que encarnou o Logos, ou seja, manifestou o Céu, o Reino, entre os homens. João Batista tinha autoridade entre os homens, nascido de mulher (Mt 11, 11), e foi reconhecido por Jesus como “mais do que um profeta” (Mt 11, 9). Portanto, o batismo de João era do Céu e dos homens, como o é a atividade de Jesus, do Céu e dos homens, Teândrica, de Deus, divina, e dos homens, terrena, simultaneamente.

Jesus afirmou que toda autoridade, o que aqui deve ser também lido como poder humano constituído, como poder político, decorre de Deus: “Jesus respondeu: ‘Você não teria nenhuma autoridade sobre mim, se ela não lhe fosse dada por Deus. Por isso, aquele que me entregou a você, tem pecado maior’” (Jo 19, 11).

Se a autoridade romana, eminentemente humana, de um povo pagão ou gentio, do ponto de vista judaico de Jesus, foi concedida por Deus, toda autoridade humana política tem função divina, e é, assim, do Céu e dos homens, podendo seu poder servir para bons ou maus ensinamentos, sendo vaso para uso nobre ou vulgar.

Numa grande casa não há somente vasos de ouro e de prata; há também de madeira e de barro; alguns para uso nobre, outros para uso vulgar. Aquele, pois, que se purificar destes erros será um vaso nobre, santificado, útil ao seu possuidor, preparado para toda boa obra” (2Tm 2, 20-22).

No novo culto, da nova aliança, no Cristianismo, outrossim, não há mais lugar para holocaustos e sacrifícios pelo pecado, na forma cruenta e carnal como ocorria no Templo e sua autoridade inconsciente, porque o culto do Reino de Deus é fazer a vontade de Deus, realizar Justiça, usando o poder político e sacerdotal de forma correta, segundo o Espírito, o Logos, para o bem comum, com autêntica autoridade, porque no Cristianismo todos somos autoridades, política e religiosa, todos somos reis e sacerdotes (Ap 1, 6).

Não quiseste sacrifício nem oferta, abriste o meu ouvido; não pediste holocausto nem expiação, e então eu disse: Eis que eu venho. No rolo do livro foi-me prescrito realizar tua vontade; meu Deus, eu quero ter a tua lei dentro das minhas entranhas. Anunciei a justiça de Iahweh na grande assembleia; eis que eu não fecho meus lábios, tu o sabes” (Sl 40, 7-10).

Eis, pois, a autêntica autoridade, fazer Justiça, realizar na Terra a vontade de Deus, encarnar o Logos, a Razão, porque essa é a autoridade eterna, que liga os homens, a humanidade, a Deus, o divino. Não é por acaso que na oração ensinada pelo Messias, devemos pedir “venha o Teu Reino” e “seja feita a Tua vontade, na terra como no Céu”. Assim, quando a autêntica autoridade for revestida de poder político, no plano mundial, estaremos no Reino de Deus, “pois o Reino de Deus não consiste em palavras, mas em poder” (1Cor 4, 20).

Portanto, quando os verdadeiros cristãos tiverem sua autoridade reconhecida socialmente e lhes for dado poder, poderão ligar a criatura ao Criador, fazendo a Vontade do Pai, na terra como no Céu, fazendo com que Cristo viva na Humanidade.

Em verdade vos digo: tudo quanto ligardes na terra será ligado no céu e tudo quanto desligardes na terra será desligado no céu. Em verdade ainda vos digo: se dois de vós estiverem de acordo na terra sobre qualquer coisa que queiram pedir, isso lhes será concedido por meu Pai que está nos céus. Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles” (Mt 18, 18-20).

Categorias jurídicas e filosóficas

No artigo “Da categoria filosófica à natureza jurídica” (https://holonomia.com/2018/04/25/da-categoria-filosofica-a-natureza-juridica/) já foi exposto que os conceitos fundamentais do pensamento científico e filosófico são as categorias, as quais são dependentes do sistema de ideias adotado. Foi sustentado, ainda, que a categoria gnosiológica fundamental é o Logos, que significa a unidade do conhecimento, simbólica e real. Do Logos permitiu-se chegar às categorias específicas do sistema jurídico.

Portanto, da categoria filosófica, o Logos, ou holonomia, que rege o holomovimento, chega-se à natureza jurídica das coisas e fenômenos, como lícitos ou ilícitos, legais ou ilegais, jurídicos ou antijurídicos, justos ou injustos, que são a categoria jurídica fundamental.

As categorias também se relacionam, mais concretamente, aos modos de se cortar a realidade, que definem os ramos do conhecimento científico, dentro de um sistema mais amplo de conhecimento, um sistema filosófico.

Segundo o positivismo, no aspecto jurídico, por exemplo, as categorias são o legal e o ilegal, e uma vez que válida a norma, segundo o procedimento normativo previsto para sua edição, posta pela autoridade competente de acordo com o mesmo sistema de normas, o legal será automaticamente justo.

Esse entendimento positivista pode ser considerado simplista e insuficiente, porque segundo essa linha de ideias o julgamento de Nuremberg, o tribunal que julgou os nazistas por crimes contra a humanidade, estaria fora do parâmetro de legalidade.

Necessário, assim, um critério mais amplo de juridicidade, além do que seja mera e formalmente legal, critério mais amplo ligado a conceitos de justo e injusto, com suas necessárias implicações filosóficas, ou seja, que esteja dentro de uma visão mais ampla da realidade.

Portanto, pode-se dizer que existem as categorias normativas mais restritas “legal” e “ilegal”, e as categorias jurídicas mais amplas “justo” e “injusto”, que também dizem respeito às anteriores, legal e ilegal. Há que se destacar, destarte, que o justo e o injusto possuem critérios normativos a eles inerentes de legalidade e ilegalidade, porque o justo e o injusto filosóficos decorrem de uma descrição lógica e racional da realidade como um todo, em seus variados aspectos, em que se colocam as questões da normatividade, porque a atividade filosófica autêntica abarca todos os parâmetros de mundo, do mais concreto ao mais abstrato.

Dessa forma, a filosofia positivista destaca como objeto da ciência do Direito o estudo da norma e da autoridade competente para editá-la e para aplicá-la, deixando de lado as questões morais e de justiça substantiva que possam ser levantadas, de modo que da forma legal, segundo essa postura filosófica, decorre o conteúdo de justiça, não se podendo buscar esse conteúdo fora da legalidade formal. Assim, para o positivismo, o legal é justo e o ilegal é injusto, não havendo situações que possam ser consideradas legais e injustas ou ilegais e justas.

De outro lado, há as concepções filosóficas segundo as quais a legalidade meramente formal não é o critério final de justiça, devendo a legalidade observar parâmetros materiais ou qualitativos de vida para que o legal seja também tido como justo, concepções como a ideia de direito natural e, atualmente, a chamada hermenêutica jurídica com seu relativismo ontológico.

Para o positivismo jurídico, a substância da ciência jurídica é a legalidade formal, de modo que o conteúdo da norma não está vinculado a uma concepção prévia de mundo, podendo ser considerado direito qualquer sistema normativo, com qualquer conteúdo, formalmente colocado pela autoridade competente.

Segundo a hermenêutica jurídica, por sua vez, o conteúdo do direito deve respeitar o sentido passado pela tradição jurídica, não havendo, contudo, uma realidade objetiva definitiva que determine o significado último do justo, do que decorre que o justo é o que o discurso tradicional atualizado formalmente estabelece como tal, segundo o sentido nominal do texto, pois não há essência de mundo associada à linguagem, mas a aparência, ou fenomenologia, de justiça e normatividade, em sua relatividade linguística.

Contudo, a autêntica Filosofia, a partir de uma concepção integral de mundo, pela experiência recebida dos antepassados e pelo conhecimento histórico integrado à vida comunitária, chega a uma determinada concepção jurídica de mundo, que deve estar presente na legislação. A noção moderna de democracia decorre, nesse sentido, de um longo processo de consolidação filosófica, dentro da tradição Cristã, o que também vale para o conceito de dignidade humana. Os direitos humanos, portanto, que serviram de base para o julgamento de Nuremberg, decorrem de uma posição filosófica específica de mundo, que transcende o mero formalismo normativo, fundada em valores absolutos, como a vida e dignidade humana.

As ciências, para análise de determinados fenômenos da natureza, como salientado, cortam aspectos da realidade, e desses aspectos fazem suas substâncias de estudo. Em análise linguística, esses aspectos são os substantivos estudados, os seres ou entes objetos de estudo, caso em que os demais aspectos ou qualidades, os adjetivos, são descartados, porque pertencentes a outros ramos abordagem científica.

Um animal, por exemplo, pode ser estudado por seu peso, segundo a física, por seus compostos moleculares, pela química, por seu tempo de desenvolvimento, na biologia etc. O que é substantivo em um ramo científico pode ser adjetivo para outro, e vice-versa, no sentido de que uma ciência pode ter por objeto de estudo aspectos de mundo que são questões acessórias ou secundárias para outra ciência.

Assim as qualidades secundárias ou adjetivas de uma ciência são substantivas para outra, sendo necessário que haja coerência científico-filosófica entre esses adjetivos ou qualidades acessórias de uma ciência e os substantivos ou conteúdos principais de outra, para que o conhecimento seja integral, consistente, e, desse modo, verdadeiramente científico.

Na vida cotidiana, os aspectos de mundo são considerados em sua totalidade, o que ocorre dentro do chamado senso comum, ao contrário do que se dá na ciência especializada, que abstrai de sua análise algumas questões do mundo. Contudo, algumas dessas questões abstraídas, ou deixadas de lado, são aspectos essenciais ou vitais das vidas das pessoas e que, na prática, quando não devidamente observados, podem levar à morte de seres humanos, ou levar a discursos inconsistentes, porque claramente dissociados da realidade da vida.

A vida surge da união de um casal, um homem e uma mulher, o que a ciência não pode negar. O furto, o roubo e o homicídio causam danos à população, especialmente a mais carente. Aquele que pratica esses atos não é visto pela população como uma vítima do sistema, ainda mais quando a vítima dos atos criminosos é vizinha do agressor, tão carente como este.

Com base em dados como esses, pode-se dizer que uma filosofia de mundo que não considera tais dados da realidade, e não constrói um sistema de pensamento que se adéqua à realidade da vida, torna-se ideologia, no sentido negativo do termo, como manipulação artificiosa do mundo, e, por isso, mais cedo ou mais tarde, não terá sustentação social.

E também com base nesses dados, e pelo que se consegue avaliar pelos conhecimentos científicos e históricos, é que se pode dizer que o Cristianismo é a filosofia de mundo mais perfeita já desenvolvida, porque dois mil anos depois de suas primeiras formulações, sem considerar a base anterior judaica de mil anos, continua apta a sustentar a sociedade.

Para o Cristianismo, tudo é ideia encarnada, porque há um só Corpo e um só Espírito, e integramos esse Corpo e esse Espírito, e tudo está conectado, tudo está dentro dos planos de Deus:

Não se vendem cinco pardais por dois asses? E, no entanto, nenhum deles é esquecido diante de Deus! Até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos contados. Não tenhais medo: pois valeis mais do que muitos pardais…” (Lc 12, 6-7).

Hoje também se pode dizer que tudo está conectado, tudo é relação, e daí a relatividade, pois estamos em campos gravitacionais que se influenciam, em campos eletromagnéticos e quânticos que se interferem reciprocamente, e a relação é tanto local como não local, conforme ensina a orgânica quântica, sendo a não localidade uma localidade onipresente, simultaneamente local e não local. Filosoficamente, portanto, tudo é duplo, local e não local, partícula e onda, ou ideia encarnada, manifestação do Espírito no Corpo, em totalidade indivisível.

Toda parte é integrante de um todo a que ela pertence, é parte de algo, e é apenas em função do conhecimento desse algo que a parte pode ser identificada e fazer sentido. Um braço está vinculado a um corpo, de um organismo, de uma espécie, da vida, do planeta Terra. Um artigo está em uma lei, de um sistema jurídico, de um povo, com específicos valores e concepções de mundo, que determinam a identidade daquele povo, a função do sistema jurídico, a validade da lei e o sentido de seus dispositivos.

Existe, portanto, um conhecimento de mundo que transcende em muito a mera legalidade, que se vincula à totalidade da existência, e por isso é possível dizer que o jurídico vem depois, é consequência de uma determinada visão de mundo, da qual também decorre o conceito de legalidade, e o problema do mundo atual é não entender o que vem antes do legal e antes do jurídico, por não se debater a hermenêutica teológica, que engloba todos os aspectos da realidade.