Direito, Política e Ortodoxia

Três anos depois, com um novo julgamento sobre a questão, é válido voltar ao teor do artigo “Prisão, Páscoa e Tradição” (https://holonomia.com/2016/08/20/prisao-pascoa-e-tradicao/), do qual transcrevo a seguinte passagem, estritamente relativa ao tema do momento:

Destaco, desde já, que não li os acórdãos em questão, mas as notícias sobre eles, e minha conclusão superficial é no sentido de que não se trata de afastar o princípio de presunção de inocência ou de não culpabilidade, mas de dar efetividade à Constituição Federal que exige a realização de Justiça pelo Poder Judiciário. Ainda que a presunção de inocência ou de não culpabilidade tenha validade até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, a Lei Maior também permite a prisão preventiva, quando presentes os requisitos legais. Uma coisa é a dita presunção, outra é a possibilidade de prisão por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente. E a presunção em questão é iuris tantum, ou seja, não é absoluta e admite prova em sentido contrário. Fosse presunção iuris et de iure sequer seria possível a prisão em flagrante ou qualquer outra forma de prisão antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, pois violaria o tão aclamado princípio da presunção de inocência ou de não culpabilidade.

No caso da condenação criminal em segundo grau, ainda que para o sistema teórico a pessoa seja presumidamente inocente ou não culpável até o final do processo, o mesmo sistema dispõe sobre a competência constitucional para a declaração da ocorrência de um crime e imposição da pena, o que é feito pelo Judiciário em primeira e segunda instâncias, como regra. Assim, em caso de condenação em segundo grau, a autoridade judiciária competente não mais considera o réu inocente, mas culpado, pelo julgamento do fato em questão, seguindo o devido processo legal. Caso encerrado o processo, efetivamente será culpado o réu para todos os efeitos, e para que isso ocorra basta que não haja recurso, o que levará à inversão da presunção de inocência para a presunção de culpa. Desse modo, a presunção inicial de inocência, com as condenações no curso da ação penal, ou a confirmação de uma condenação pelos órgãos judiciários nos julgamentos ocorridos no processo, vai gradativamente se transformando em presunção de culpa, até que não haja mais possibilidade de recurso.

E ainda que ocorra o trânsito em julgado será possível a revisão criminal, ou seja, o sistema admite a possibilidade de erro, pelo que nem mesmo a presunção de culpa decorrente da sentença penal condenatória transitada em julgado é absoluta.

O mesmo sistema legal que prevê a presunção de inocência também dispõe que, teoricamente, os julgadores de segundo grau são mais experientes que os de primeiro grau, e que com eles é encerrada a análise dos fatos em julgamento, remetendo para os recursos extremos apenas questões jurídicas. Deve-se destacar novamente que é pressuposto constitucional que os juízes aplicarão corretamente a lei, especialmente os de segundo grau, e não o contrário. Daí porque o erro é tido, dentro do sistema de presunções, como excepcional.

Portanto, a prisão após a condenação por um tribunal significa uma prisão preventiva de ofício, permitida pelo art. 311 do CPP, qualificada pelo juízo de mérito da culpa pela autoridade competente, ainda que esse juízo seja passível de recurso, por natureza extraordinário.

Destarte, a prisão em decorrência da condenação em segundo grau de jurisdição é uma prisão preventiva, em que, pela gravidade do fato em apuração, e pelo juízo de mérito da culpa, ainda que revisível – apenas extraordinariamente, a garantia da ordem pública e a segurança da aplicação da lei penal são inerentes ao juízo condenatório qualificado, dispensando-se a fundamentação mais pormenorizada, uma vez que os motivos respectivos, as razões da custódia cautelar, são os mesmos que levaram à conclusão pela ocorrência do crime e imposição da pena, tendo o fumus commissi delicti se transformado em fogo condenatório, enquanto o periculum libertatis também decorre da gravidade do fato criminal reconhecido pelo tribunal, com pena de prisão. Somente nesse sentido, uma vez que não se trata de condenação transitada em julgado, é cabível falar em execução provisória de pena, como já ocorre quando o réu responde preso ao processo e interpõe o recurso ordinário – apelação. E vale dizer que a pena privativa de liberdade, no sistema penal pátrio, apenas é imposta em casos realmente mais graves, como regra em penas superiores a quatro anos, no caso de reincidência criminal ou crime praticado com violência à pessoa.

Outrossim, a ordem pública, após a condenação provisória em segundo grau, por crime de grave repercussão social, considerando a pena em concreto aplicada ao réu, pode ficar em risco caso o acusado continue solto, como regra, permitindo uma prisão preventiva qualificada. A noção de ordem pública é um tanto subjetiva, mas diante da condenação a uma pena de prisão, por tribunal, a prisão preventiva não pode ser considerada absurda. Desproporcional é a regra exigir o trânsito em julgado para que seja entendida como constitucional a prisão após uma condenação qualificada, em segundo grau, por pelo menos dois magistrados dentre o mais experientes do país.

Nesse ponto, a prisão preventiva em questão não afasta a aplicação ou a constitucionalidade do art. 283 do CPP, pois o acórdão, ainda que recorrível pelas vias extremas dos apelos especial e extraordinário, é uma decisão proferida pela autoridade competente, sendo obrigatoriamente escrito e fundamentado, proferido no curso do processo.”

Importante salientar, como constou no citado artigo, que qualquer prisão antes do trânsito em julgado é preventiva, exatamente porque não é, ainda, definitiva, na medida em que esta somente existe, tecnicamente, depois de encerradas todas as possibilidades de recurso, quando, então, é expedida a guia de execução de pena. E também por isso, dado o caráter preventivo da cautela processual, é permitido ao réu ajuizar habeas corpus para buscar suspender a referida ordem de prisão preventiva.

Portanto, a discussão técnica é no sentido de se estabelecer uma nova cultura jurídica para que a regra seja a decretação da prisão preventiva quando houver condenação ou confirmação da condenação pelo tribunal, pelo juízo da segunda instância, para o que é desnecessária mudança constitucional ou legal. O fundamento de tal prisão é resguardar a ordem pública, em sentido amplo, inclusive simbolicamente, para dar efetividade à natureza pedagógica do Direito Penal, porque o artigo 3.º do Código de Processo Penal prevê que a lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.

O artigo 5.º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, por sua vez, dita que na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Exigir que o réu somente possa ser preso após exauridas todas as possibilidades de recurso, num momento de desordem social como o que vivemos, certamente não é atender aos fins sociais e ao bem comum, mas aos interesses privados de alguns réus, com ligações por demais estreitas com…

Estivesse o Brasil em um patamar civilizatório mais evoluído, com comportamento social compatível com o rigor absoluto da presunção de inocência e com demais valores constitucionais, talvez se poderia entender como adequado o entendimento que se sagrou provisoriamente vencedor. Enquanto estivermos entre os países mais violentos do mundo, com as maiores taxas de homicídio, e dentre aqueles com maior corrupção, tal situação, por si só, é suficiente para justificar a prisão preventiva de todo e qualquer réu condenado em segunda instância, independentemente das outras circunstâncias processuais e das condições pessoais do condenado (provisoriamente), de modo que as exceções pudessem ser resguardas por habeas corpus, desde que efetivamente excepcionais, no que não está incluída a hipótese de beneficiar compadres, padrinhos políticos ou seus associados.

O ponto jurídico em questão é também de natureza política, sobre os limites do exercício do poder público, sobre os valores que a coletividade tem como objeto de proteção jurídica especial, e que por isso estão na Constituição. Por maior que seja o valor dos indivíduos, a sociedade como um todo possui um valor maior, essa é a base para a própria existência do Direito.

Finalmente, como o Supremo Tribunal Federal tem a competência de interpretar e guardar a Lei Maior, seu entendimento estabelece o que é a doutrina correta, ou ortodoxia, jurídica e política, pátria, na medida em que a Constituição é tanto a Lei Maior como a Carta Política de uma nação.

Existe uma ideia absurda, que chega a ser ridícula, de tentar separar Direito e Política, o que é fruto do mundo moderno cartesiano e iluminista que fragmenta a realidade e os conhecimentos em unidades pretensamente estanques. Isso como se os legisladores, que elaboram as leis, não fossem também, e sempre, políticos, como se as leis tivessem qualidade política apenas durante as discussões no Congresso Nacional, que é o ambiente político, e a partir do momento de sua promulgação passassem a ser exclusivamente jurídicas, sem relação com os valores e ideias que fundaram sua elaboração; como se não houvesse uma continuidade entre Política e Direito. Essa ortodoxia é tacanha, não é verdadeiramente ortodoxa; mas uma heresia.

O mesmo entendimento vale para a presunção se inocência, pois para os que defendem a impossibilidade de prisão após segunda instância, porque somente seria permitida depois do trânsito em julgado, a realidade é irreal, é como um conto de fadas, como Cinderela, pois até às 23:59 horas do último dia para entrar com o último recurso a pessoa seria absolutamente inocente, e um minuto depois, como num passe de mágica, viraria uma abóbora, ou melhor, um culpado, de um minuto para o outro a pessoa se transformaria de Irmã Dulce no Maníaco do Parque.

Prejudicada fica, novamente, a realização do princípio da igualdade, porque os menos favorecidos, patrocinados normalmente por defensores dativos ou pela Defensoria Pública, não terão, ao contrário dos réus com grande capacidade financeira, em seu favor a utilização de recursos e mais recursos procrastinatórios, procedimento adotado impunemente por aqueles com condições de suportar o pagamento dos custos desse reprovável expediente processual.

A questão política também ficou clara no dia seguinte à decisão do STF, quando foram soltos réus do colarinho branco, com elevado poder aquisitivo, demonstrando exatamente os beneficiários desse entendimento social e racionalmente heterodoxo, mas que por algum tempo ainda será a ortodoxia na prática social e jurídica brasileira, a má e velha tradição pátria de beneficiar os ricos e poderosos, os donos do poder.

O príncipe deste mundo, por algum tempo, continua a exercer seu domínio.

A corrente da vida

A existência ou ausência de sentido no mundo é uma questão fundamental, pois define se somos apenas um amontoado de partículas que se transformaram em moléculas, de complexidade crescente, gerando os pensamentos, dentro dos quais aqueles que criaram a aparência de uma realidade espiritual, transcendente a nós, ou se esses fenômenos espirituais indicam, de fato, que pertencemos a mundo efetivo maior do que nossos corpos individuais.

Se a evolução, segundo a hipótese de Darwin, pode explicar alguns eventos do fluxo da vida, não explica inicialmente a origem da vida, valendo dizer que não foi comprovada a chamada macroevolução, havendo obscuridades no conhecimento científico quanto à direção da história. O sentido da existência humana ainda está em aberto no sistema científico.

Quaisquer que sejam as respostas a essas perguntas, um fato não pode ser negado, que estamos aqui, representando o ápice da vida corporal, considerando que o cérebro humano é o órgão mais complexo até então descoberto pela Ciência em todo o universo conhecido. Além disso, carregamos em nós um histórico físico, biológico, psíquico e cultural que remete às origens do cosmos. Destarte, nós somos a humanidade, a vida em curso.

Até mesmo Nietzsche, um grande crítico do pensamento filosófico tradicional, entendia haver necessidade de compreender essa unidade presente em nós, em que pese a incompreensão do referido autor quanto à realidade mais profunda, em relação à ordem de mundo que ele mesmo buscava.

O egoísmo vale tanto quanto vale fisiologicamente aquele que o tem: pode valer muito, e pode carecer de valor e ser desprezível. Cada indivíduo pode ser examinado para ver se representa a linha ascendente ou a linha descendente da vida. Decidindo a respeito disso, temos também um cânon para o valor de seu egoísmo. Se ele representa a linha em ascensão, seu valor é efetivamente extraordinário — e, em função da totalidade da vida, que com ele dá um passo adiante, deve mesmo ser extremo o cuidado pela conservação, pela criação do seu optimum de condições. O ‘indivíduo’, tal como o povo e a filosofia até hoje o entenderam, é um erro, afinal: não é nada por si, não é um átomo, um ‘elo da corrente’, nada simplesmente herdado de antigamente — ele é toda a linha ‘ser humano’ até ele mesmo… Se representa o desenvolvimento para baixo, o declínio, a crônica degeneração e adoecimento (— as doenças já são, em termos gerais, consequências do declínio, não suas causas), ele tem pouco valor, e a mais simples equidade pede que ele subtraia o mínimo possível daqueles que vingaram. Ele é apenas seu parasita…” (Friedrich Wilhelm Nietzsche. O crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa com um martelo. Trad. Paulo César de Souza. Companhia das Letras. Versão eletrônica. Capítulo IX, parágrafo 33).

Ironicamente, a passagem acima explica em parte o entendimento de Jesus Cristo sobre ele mesmo, como ápice da vida humana, como filho da humanidade, ou filho do homem, expressão que ele usava para se referir a si mesmo.

De todo modo, mesmo Nietzsche entende haver uma linha ascendente e uma linha descendente, fazendo um juízo sobre o desenvolvimento da vida, o que é fundamental para definir um contexto para a existência humana e para dirigir nossos comportamentos cotidianos.

É possível entender razoavelmente que a linha ascendente tem seu ápice na vida humana, de modo que o filho da humanidade, o conceito cristão de humano, é “toda a linha ‘ser humano’ até ele mesmo”, o resultado da evolução até aquele momento, antecipando em si a continuidade da própria humanidade, como aquele que gera o ser humano melhorado do futuro, para continuidade da ascensão da vida.

Ainda que seja um fato que Nietzsche seja um crítico do Cristianismo, ele tinha um grande apreço pelas ideias sociais do Antigo Testamento, e na medida em que houve um indevido rompimento ideológico na interpretação do Evangelho com as ideias judaicas, pode-se dizer que isso explica e justifica, em parte, a crítica de Nietzsche ao pensamento da cristandade, nos pontos em que interpretam equivocadamente as Escrituras, e, principalmente, o significado de Jesus, o ser humano, ou filho da humanidade, com ideias meramente transcendentes.

Se a vida tem realmente um sentido, a direção é de unificação da humanidade, para que cada ser humano seja tratado como filho da humanidade, e criado como tal, desde a concepção até a morte, e após o corpo voltar à terra, de modo que a totalidade da vida seja experimentada em cada um de nós, tanto pela plenitude corporal como espiritual, com a memória dos que nos antecederam, e construíram esse momento, e sendo memória dos que nos sucederão, pelos bons resultados de nossas ações.

A corrente da vida não pode parar em nossos corpos, em meras sobrevivências, deve prosseguir, e realmente continua, para um plano maior, que inclui e supera esse plano menor em estamos, e aqueles com a sensibilidade necessária conseguem captar essa realidade, e por isso realizam e participam efetivamente da corrente da vida.

Se alguém tem sede, venha a mim e beba, aquele que crê em mim, conforme a palavra da Escritura: ‘De seu seio jorrarão rios de água viva’” (Jo 7, 37-38).