A Criação

Este artigo continua um tema já tratado em “O ser e o estar: o problema ontológico do nada” (https://holonomia.com/2019/05/01/o-ser-e-o-estar-o-problema-ontologico-do-nada/), cuja pretensão, deve-se reconhecer, bastante controversa, é restaurar a Teologia Cristã a suas origens, na mensagem do próprio Jesus e seus apóstolos, transmitidas por estes mesmos, ou seus seguidores mais próximos, incluídos seus significados filosóficos, escatológicos e históricos. Retomando o argumento:

Pela Teologia, o mundo foi criado pelo Deus único, e apesar de alguns entenderem que essa criação ocorreu a partir do nada, pela criação ex nihilo, existe uma contradição lógica nessa ideia, conforme expressão ex nihilo nihil fit, significando que nada surge do nada. Em nossa experiência ordinária as coisas não surgem do nada. Há na física o princípio da conservação da energia, além do brocardo segundo o qual na natureza nada se cria, tudo se transforma. Mesmo no texto sagrado não é dito que Deus criou tudo a partir do nada, pois a Bíblia informa que ‘no princípio criou Deus céus e terra’, sem que seja informado que a criação tenha sido feita do nada.

Uma boa interpretação teológica pode ser feita da carta aos Hebreus, para entender que o mundo visível surge de um mundo invisível, e não do nada: ‘Por isso é que o mundo visível não tem sua origem em coisas manifestas’ (Hb 11, 3). É possível que haja coisas que somente se tornam visíveis, manifestas ou sensíveis depois de determinados procedimentos ou da aquisição de qualidades especiais necessárias para a percepção dessa realidade mais sutil, até então invisível, mas já existente. (…)

Na Teologia, o argumento óbvio para refutar a ideia de uma criação a partir do nada está no fato pressuposto de que Deus estava presente antes da criação do mundo, porque dentre os atributos divinos está a onipresença, e uma vez que ‘oni’ é um prefixo latino que significa ‘todo’, pelo que onipresente é o que está em todos os lugares e tempos, em todas as partes, ubíquo, o conceito de nada é incompatível com o de Deus, sendo apenas uma palavra com significado meramente lógico, instrumental, com existência mental e não sensível, de modo que não se pode dizer logicamente que a criação ocorreu a partir do nada, e por isso a mente de Deus, e não o nada, é a substância da criação do mundo. Assim, há que se concordar com Aristóteles no sentido de pressupor uma causa primeira, que não é o nada, muito antes, pelo contrário, tudo, Deus, como origem cósmica.”

Se não vemos ou sentimos a presença de alguma coisa ou alguém isso não significa que tal coisa ou pessoa não exista, mas que simplesmente podem estar fora de nosso alcance experimental e/ou simbólico.

Muitas vezes é necessário conhecer uma simbologia para que se possa compreender e, às vezes, até mesmo perceber uma realidade. Segundo a famosa frase de Ludwig Wittgenstein: “As fronteiras da minha linguagem são as fronteiras do meu universo”.

A linguagem está inserida em uma cultura, que possui uma semântica própria, um entendimento de mundo representado em palavras, que devem ser tidas como símbolos que apontam para uma realidade, aquele mundo da vida que a linguagem pretende traduzir sonora e graficamente, mas com sentido existencial. Portanto, somente é possível entender o significado da criação em um mundo que considere um Deus específico como Criador, especificidade dada por seus atributos e qualidades, como onipresença, onisciência e onipresença, além de sabedoria e bondade.

Assim, Deus criou um espaço em Si mesmo para a criação se desenvolver, uma espécie de “nada”, ainda a ser preenchido, mas já prenhe da Sua presença. Usando a linguagem aristotélica, na criação, todo ato já existe como potência, sendo possível compreender esse ato ainda em potência na simbologia da própria criação, vivendo seu Espírito, porque conhecer, na linguagem bíblica, é ter intimidade, é viver uma unidade corporal e espiritual, não se trata de algo meramente intelectual.

Há um só Corpo e um só Espírito, assim como é uma só a esperança da vocação a que fostes chamados; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; há um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos, por meio de todos e em todos” (Ef 4, 4-6).

Pode ser usada a ilustração de uma esfera, como o espaço da criação, a potência do Corpo criado, tendo sido colocado em seu centro virtual a semente de tudo que ainda viria a existir como ato, sendo cabível uma analogia dessa semente com a singularidade inicial do Big Bang, de modo que cabe à criação se desenvolver até atingir a circunferência da esfera, como ato final da criação, limite entre Criador e criatura.

O destino de toda criação é, pois, reencontrar o Criador, quando o tempo e o espaço criacionais chegarem ao seu termo final, quando o Corpo concluir seu crescimento. Nesse momento, segundo as Escrituras, a criação será refeita, renovada, talvez com o estabelecimento de uma nova esfera, mais ampla, mas com um limite mais fluido entre essa nova criação e o Criador.

Vi então um céu novo e uma nova terra — pois o primeiro céu e a primeira terra se foram, e o mar já não existe. Vi também descer do céu, de junto de Deus, a Cidade santa, uma Jerusalém nova, pronta como uma esposa que se enfeitou para seu marido. Nisto ouvi uma voz forte que, do trono, dizia: ‘Eis a tenda de Deus com os homens. Ele habitará com eles; eles serão o seu povo, e ele, Deus-com-eles, será o seu Deus. Ele enxugará toda lágrima dos seus olhos, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem clamor, e nem dor haverá mais. Sim! As coisas antigas se foram!’ O que está sentado no trono declarou então: ‘Eis que eu faço novas todas as coisas’. E continuou: ‘Escreve, porque estas palavras são fiéis e verdadeiras.” (Ap 21, 1-5)

Tal profecia já constava de Isaías: “Com efeito, vou criar novos céus e nova terra; as coisas de outrora não serão lembradas, nem tornarão a vir ao coração” (Is 65, 17; 66, 22).

Nós somos membros desse Corpo, e podemos nos desenvolver individualmente segundo Suas Leis, integrados às corretas forma e matéria corporais, ao Corpo e ao Espírito, ou tentando uma autonomia, com normas próprias, como um câncer, que passa a agir desvinculado do organismo em que se situa, uma doença. Assim, em nossa morte, ou no momento em que o Corpo atingir sua maturidade, nos depararemos com os limites da criação, com o Criador, quando poderemos estar de frente para Ele, porque já caminhando em Sua direção, pelo que não haverá surpresa nesse encontro, de lado e até mesmo de costas para o Criador, caso em que o susto não poderá ser evitado. Nesse momento haverá o julgamento, a prestação de contas, quando a própria criação testemunhará sobre aqueles que contribuíram para seu desenvolvimento e os que se voltaram contra ele, e contra Ele.

Pois a criação, submissa a ti, seu Criador, inflama-se para castigar os injustos e abranda-se para beneficiar os que confiam em ti” (Sb 16, 24).

Pois a criação inteira, obedecendo às tuas ordens, em sua natureza tomava novas formas para guardar incólumes os teus filhos” (Sb 19, 6).

Quando, no princípio, o Senhor criou as suas obras, assim que foram feitas, atribuiu um lugar a cada uma. Ordenou para sempre a sua atividade e suas tarefas pelas suas gerações” (Eclo 16, 26-27).

Por suas palavras o Senhor fez suas obras e a criação obedece à sua vontade” (Eclo 42, 15).

Existe, dessarte, uma Lei da Natureza, uma Lei da Vida, o Logos, que podemos seguir, para vivermos em saúde, de forma íntegra, santa. E o melhor exemplo, insuperável, que nunca poderá ser ultrapassado, é o de Jesus, que viveu plenamente esse Logos, obedecendo à Sua vontade, de modo que mostrou em si, em sua vida, o sentido do crescimento do Corpo criado, em favor do qual renunciou ao seu corpo individual, na cruz.

Tal foi a correção de seu caminhar que encontrou Deus frente a frente, sem falhas, naquele momento da maturidade do Corpo criado, e assim voltou ao Corpo no momento em que o deixou, no terceiro dia de sua morte, ressuscitado, em novo corpo individual, servindo de Luz para os que ficaram, como testemunho da Verdade, mostrando que o Caminho por ele seguido é o único que leva à Vida da criação, ainda que ele, pessoalmente, tenha morrido.

Essa morte não era necessária para Jesus, mas indispensável para corrigir a direção do crescimento do Corpo, tendo sido ele a cura do câncer que crescia e se desenvolvia na criação, desde o pecado, a desobediência, desde que o a liberdade foi usada contra o Corpo e o Espírito, contra a Lei, contra o Logos, o que Jesus veio reparar: “Desse modo, o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mt 20,28).

Outrossim, a simbologia cósmica somente pode ser adequadamente compreendida reconhecendo que “não há, debaixo do céu, outro nome dado aos homens pelo qual devamos ser salvos” (At 4, 12), e esse nome é Jesus, o Cristo, o Rei, o maior líder da humanidade, porque sacrificou-se para redirecionar a criatura para seu Criador. Sua morte foi a semente da nova criação, que começa aqui.

Por isso Deus o sobreexaltou grandemente e o agraciou com o Nome que é sobre todo o nome, para que, ao nome de Jesus, se dobre todo joelho dos seres celestes, dos terrestres e dos que vivem sob a terra, e, para glória de Deus, o Pai, toda língua confesse: Jesus é o Senhor” (Fl 2, 9-11).

A criação, portanto, tem um destino, um ponto final de crescimento, quando passará, e será renovada, momento que alguns profetas já testemunharam em Espírito, porque viviam segundo a ordem dada por Deus, e ainda que ninguém saiba exatamente quando será, a magnificência do Altíssimo nos fez revelar alguns sinais, para nos encorajar, dando-nos esperança para a realidade vindoura. “Passarão o céu e a terra. Minhas palavras, porém, não passarão. Daquele dia e da hora, ninguém sabe, nem os anjos dos céus, nem o Filho, mas só o Pai” (Mt 24, 35-36).

Esse testemunho é para fortalecer nossa esperança, dar-nos força para continuar durante as provações, quando a doença da criatura tenta sufocar a boa semente.

Penso, com efeito, que os sofrimentos do tempo presente não têm proporção com a glória que deverá revelar-se em nós. Pois a criação em expectativa anseia pela revelação dos filhos de Deus. De fato, a criação foi submetida à vaidade — não por seu querer, mas por vontade daquele que a submeteu — na esperança de ela também ser libertada da escravidão da corrupção para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus. Pois sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores de parto até o presente. E não somente ela. Mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos interiormente, suspirando pela redenção do nosso corpo” (Rm 8, 18-23).

Existe uma realidade transcendente que, ao mesmo, tempo, já está presente na imanência criada, ainda que não a vejamos, porque o Espírito já nos revelou, ainda que parcialmente, a plenitude que, enfim, será alcançada pela criação e, então, sua renovação, quando a criatura poderá desfrutar da convivência do Criador.

2 comentários sobre “A Criação

  1. Suas ideias expressam um mundo espiritual puro porque falam da alma criada por um Deus supremo e perfeitíssimo e que raramente faz jus ao Criador Faz bem ler suas ponderações mesmo sem conseguir entender completamente todo seu conteúdo Cyntia

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  2. Prezado Holonomia

    Bonito texto, poético mesmo. Perceber o “invisível” realmente depende do conhecimento tanto intelectual quanto empírico, ou ambos. Eu costumo chamar esse fenômeno de “níveis de consciência”. A Ciência nos demonstra que o nosso espectro de visão é reduzido, limitado, pois não vemos partículas em infravermelho ou ultravioleta. No entanto, podemos “sentir” a existência dessas partículas e fabricar instrumentos capazes de nos mostrar essas partículas em toda a sua existência e dinâmica. Podemos também, olhar em volta e concluir que muito do que foi dito no seu belo texto corresponde à verdade. Por exemplo, a lagarta, que vive uma existência condicionada por seus atributos de criatura e, depois, transforma-se numa borboleta e vivencia outras experiências conforme essa nova forma de criatura. Está aí, bem diante de nossos olhos, para quem quiser enxergar. Cada um tem seu próprio tempo e consciência, não adianta apressar as coisas.

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