O nascimento do tempo

O tempo é um elemento ou uma categoria fundamental para o conhecimento. É a própria Vida, se corretamente compreendido.

No pensamento de Kant o tempo é o elemento comum que permite a conexão entre as categorias a priori do conhecimento e as relações sensíveis do mundo exterior, porque organizamos nossos processos mentais sequencialmente, tanto no tempo como condição categorial de apreensão fenomênica quanto na arrumação cognitiva dos sentidos percebidos em nossa interação com o mundo.

A questão do tempo já foi abordada no artigo “A velocidade do tempo” (https://holonomia.com/2017/05/01/a-velocidade-do-tempo/comment-page-1/), em que se sustentou que a relatividade é uma teoria incompleta, “pois se fosse a palavra final em termos físicos Einstein não teria passado as últimas décadas de sua vida tentando compatibilizá-la com a física quântica, no que não logrou êxito”.

Certamente a relatividade é insuficiente porque é a teoria limite do assim chamado materialismo, refere-se ao mundo dos sentidos locais ao mundo do toque e da causalidade material, nela não estando incluído o Espírito, ou Inteligência, que é pressuposto e condição de existência da própria teoria.

Ilya Prigogine também não se satisfez com o tempo ilusão da física, tendo apresentado uma nova proposta de análise da natureza a partir dos fenômenos irreversíveis:

Aristóteles diz que o tempo é o estudo do movimento, mas – acrescenta – na perspectiva do antes e do depois. Mas a partir de que é dada esta perspectiva do antes e do depois? Aristóteles não dá uma resposta: afirma que talvez seja a alma que efectua a operação do contar.

Einstein retoma a mesma pergunta: onde está o tempo? Talvez da física? E responde que não. Numa conversa com Carnap diz textualmente: “O tempo não está na física”.

Se escolho o ponto de vista da física, o tempo, enquanto irreversibilidade, é ilusão e portanto não pode ser objecto de ciência. Sob este ponto, curiosamente, Einstein vai ao encontro quer de Bergson quer de Heidegger: Bergson defende que o tempo não pode ser objecto de ciência, porque é demasiado complexo para a ciência.

Então, porque penso, inversamente, que estamos a entrar num período de reorganização conceptual da física? Porque hoje vemos fenómenos irreversíveis na natureza e compreendemos o papel construtivo destes fenômenos irreversíveis. Vemos formarem-se estruturas, vemos como algumas regiões do espaço estão organizadas pela irreversibilidade” (Ilya Prigogine. O nascimento do tempo. Tradução Marcelina Amaral. Lisboa: Edições 70, 2018, p. 18).

Já Agostinho, antecipando Einstein, entendia que o tempo surgiu com o espaço na criação, concebendo um mundo criado com o tempo, sendo o próprio tempo uma criatura de Deus, ao contrário da visão grega aristotélica, que entendia que o universo fosse eterno.

De todo modo, é válida a concepção de Aristóteles segundo a qual o tempo é o número do movimento segundo o antes e o depois, de modo que o tempo é sempre relativo a algum movimento, alguma coisa, ou fenômeno, determinado transcendentalmente a essa coisa, além de seus limites, que, portanto, são definidos a partir de fora desse movimento, coisa ou fenômeno.

O tempo de vida de uma pessoa é determinado entre o momento de seu nascimento, que marca a temporalidade anterior, e de sua morte, que encerra aquele movimento corporal da pessoa.

Se o indivíduo humano fosse apenas matéria, sua preocupação estaria limitada ao seu tempo de vida corporal, e aí assistiria razão a Heidegger ao sustentar que o homem é um ente voltado para a morte. Essa é uma possibilidade especulativa, mas não a única.

Para os que entendem que somos mais do que nossos corpos perecíveis, há outro tempo existencial, outra espécie de movimento à qual estamos vinculados por pertencermos também, e principalmente, ao Espírito.

Nessa perspectiva, podemos entender que possuímos o tempo da própria criação, ainda que não nos apercebamos disso, porque esquecemos a Verdade. Vale dizer que a palavra “verdade” tem origem no termo grego “alethéia”.

A palavra grega que designa verdade é alethéia, que é um termo privativo, negativo. Ele é uma palavra composta: a significando ‘sem’, e lethe, referindo-se às águas do esquecimento que há no mundo ínfero. Letes é um rio de cujas águas a alma do falecido bebe enquanto deixa a existência terrena e adentra o Hades. Enquanto a alma bebe das águas do Letes, ela esquece a vida anterior.

Isso também transpira no outro extremo do ciclo do nascimento e da morte, do modo como o demonstrou Platão no ‘Mito de Er’ no final da Repúbica. As almas que estão prestes a nascer são requisitadas para beber das águas do Letes a fim de esquecer sua antiga existência celeste, quando entram neste mundo e numa nova encarnação. Essa é uma doutrina órfica que foi adotada por Platão” (Edward F. Edinger. A Psique na Antiguidade: livro um: Filosofia Grega Antiga: de Tales a Plotino. Org. Deborah A. Wesley. Tradução Alípio Correia de Franca Neto e Sandra Maria Franca. São Paulo: Cultrix, 2000, p. 57).

Não precisamos adotar a perspectiva reencarnacionista para compreendermos que possuímos uma existência que transcende nosso corpo físico, porque somos o próprio cosmos manifestando uma consciência, o que permite utilizar a noção grega de verdade, alethéia, como ausência de esquecimento, sem que seja necessário postular que a alma reencarne.

David Bohm desenvolve a ideia de consciência em termos de ordem implicada (A Ordem Implicada – https://holonomia.com/2017/05/22/a-ordem-implicada/), devendo aquela ser compreendida com a realidade como um todo, em uma proposta filosófica que supera o dualismo cartesiano, o qual afirmava haver no mundo a substância pensante distinta da substância extensa, postulando Bohm:

uma nova noção de totalidade indivisível, na qual a consciência deixaria de ser fundamentalmente separada da matéria.

Vamos agora considerar qual a justificativa que existe para a noção de que a matéria e a consciência apresentam a ordem implicada em comum. Primeiro, notamos que a matéria, no geral, é, à primeira vista, o objeto da nossa consciência. Entretanto, como já vimos neste capítulo, várias energias, tais como a luz, o som, etc., estão continuamente envolvendo informações que a princípio se relacionam com todo o Universo da matéria em cada região do espaço. Por meio dese processo, tais informações acabam entrando nos nossos órgãos do sentido, passando pelo sistema nervoso e chegando até nosso cérebro. De modo mais profundo, toda a matéria inclusa em nossos corpos, desde o início, envolve o Universo de algum modo. Será essa estrutura envolvida, de informação e matéria (no cérebro e no sistema nervoso), aquela que primeiramente penetra a consciência?” (David Bohm. Totalidade e a ordem implicada. Tradução Teodoro Lorente. São Paulo: Madras, 2008, p. 203).

A pergunta que encerra a citação tem natureza especulativa, pois não possuímos capacidade tecnológica, por ora, de respondê-la, mas a proposta é sustentada segundo as mais avançadas conclusões da Física do século XX.

De todo modo, a questão da verdade como totalidade esquecida pode ser compreendida, pois à medida que investigamos o mundo material, formando nossa individualidade e nos relacionando com as coisas do mundo externo, à qual ficamos apegados, não conseguimos nos recordar da unidade existencial a que pertencemos, o que é corroborado pela psicologia infantil, ao sustentar que a formação do complexo do ego, pelo qual o indivíduo se relaciona psicologicamente com o mundo, é iniciada nos primeiros meses de vida da criança, porque nos primeiros momentos de vida vivemos uma espécie de unidade inconsciente com o mundo, tal como sugerido por Bohm.

Da perspectiva teológica, de outro lado, caso consideremos pertencer ao Espírito, que está fora do tempo, devemos rever a posição Cristã que somente compreende nossa continuidade existencial para o futuro, para depois da morte, quando a lógica teológica permite nos posicionar existencialmente já na mente de Deus, em seu Espírito, ainda que como potência, antes da criação do mundo. Deve ser ressaltado, entretanto, que na perspectiva aristotélica o infinito não existe em potência, apenas em ato, e que, no tempo, o ato pode ser anterior à potência, pelo que é cabível afirmar nossa existência em ato antes da formação do mundo.

Deus é sempre ato, e é Espírito, e como fomos criados recebendo parte do Espírito de Deus, essa parte é ato desde a formação do tempo, do mundo, pelo que temos um nascimento anterior ao de nossos corpos. Tendo consciência dessa realidade, Jesus pôde dizer, “antes de Abraão ter existido, eu sou” (Jo 8, 58).

Em outra passagem, Jesus nos coloca no princípio, com ele: “Também vós testemunhareis, porque desde o princípio estais comigo” (Jo 15, 27). Vale citar a nota de Frederico Lourenço ao citado versículo:

15, 27 ‘desde o princípio estais comigo’: para João, princípio (arkhê) designa habitualmente o início primordial da Criação. O presente ‘estais’ (esté) corresponde ao verbo ‘ser’ em grego, pelo que uma tradução mesmo literal daria ‘desde o princípio sois comigo’” (Novo Testamento: os quatro Evangelhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 391).

Portanto, da perspectiva Cristã, nosso tempo nasce com criação, e depois, em outro nível, quando encarnamos, quando tomamos forma em um corpo material; e continuamos a existir após a morte, espiritualmente em ato, e materialmente em potência, até que essa uma nova existência material se transforme em um novo corpo, em uma nova criação. “Com efeito, vou criar novos céus e nova terra” (Is 65, 17). “Vi, então, um novo céu e uma nova terra” (Ap 21, 1).

Volto então, ao título do artigo, inspirado no livro com os textos de Ilya Prigogine, relacionando com essa nova criação. Nossa ciência não tem meios de prevê-la, sendo matéria especulativa, mas dentro da visão de Prigogine vivemos em um universo dinâmico, um sistema de não-equilíbrio, regido pela termodinâmica, com fenômenos irreversíveis, sendo possível uma nova criação temporal:

Aqui, ao contrário, um novo nascimento se torna possível, se as condições que permitiram a primeira instabilidade (Big Bang) puderem reproduzir-se. Qual é a densidade de matéria compatível com esta instabilidade? É um cálculo que os meus colaboradores e eu estamos a tentar efectuar: trata-se, provavelmente, de um tempo muito longo, 100 mil milhões de anos. Também podemos imaginar a história do universo como a de uma reacção química explosiva cujos produtos de eliminação impeçam a sua continuação, até ao momento em que forem eliminados e, por isso, uma nova explosão se torna possível.

Reparem que a instabilidade, as flutuações e a irreversibilidade desempenham um papel a todos os níveis da natureza, química, ecológica, climatológica, biológica com a formação de biomoléculas, e finalmente cosmológica” (Ilya Prigogine. O nascimento do tempo. Tradução Marcelina Amaral. Lisboa: Edições 70, 2018, pp. 54-55).

Aplicadas essas ideias ao contexto escatológico Cristão, vale lembrar que o Apocalipse descreve o tempo de mudanças por que passamos, inicialmente em termos de crise social, ecológica e política, até seja estabelecida a era messiânica; vivemos o tempo de tribulação, de instabilidade, que antecede um novo nível de equilíbrio, superior, quando haverá a reorganização conceptual da física, defendida por Prigogine, que inclui uma nova noção de temporalidade, inclusive humana, questões de tamanha complexidade que não podem ser antecipados na posição material humana, somente são conhecidas pelo próprio Deus, o Pai, o criador do tempo.

Naqueles dias, porém, depois daquela tribulação, o sol escurecerá, a lua não dará a sua claridade, as estrelas estarão caindo do céu, e os poderes que estão nos céus serão abalados. E verão o Filho do Homem vindo entre nuvens com grande poder e glória. Então Ele enviará os anjos e reunirá seus eleitos, dos quatro ventos, da extremidade da terra à extremidade do céu.

Aprendei, pois, a parábola da figueira. Quando o seu ramo se torna tenro e as folhas começam a brotar, sabeis que o verão está próximo. Da mesma forma, também vós, quando virdes essas coisas acontecendo, sabeis que Ele está próximo, às portas. Em verdade vos digo que esta geração não passará até que tudo isso aconteça. Passarão o céu e a terra. Minhas palavras, porém não passarão. Daquele dia e da hora, ninguém sabe, nem os anjos no céu, nem o Filho, somente o Pai” (Mc 13, 24-37).

Um comentário sobre “O nascimento do tempo

  1. O TEMPO É IDEIA, O TEMPO É SÍMBOLO, O TEMPO É SIGNIFICADO

    Prezado Holonomia, esse seu artigo “O Nascimento do Tempo” e o outro “A Velocidade do Tempo” são excelentes. Estudo “o tempo” há quase quarenta anos. Até outro dia, tinha as mesmas dúvidas que você, conforme expôs nos artigos citados.
    Entretanto, fontes ligadas à Ufologia alegam ter recebido informação de extraterrestres de que O TEMPO É ENERGIA.
    Desse modo, num breve comentário, essa noção explicaria muitas das dúvidas levantadas, talvez todas. Por exemplo, consideremos atletas correndo numa pista para disputar uma medalha de quem completa mais rápido o percurso de três mil metros numa pista circular.
    Tudo bem, o importante é competir.

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