(Re)Encarnação

Já expus em artigo anterior, “Ciência: linguagem, física e metafísica” (https://holonomia.com/2016/10/22/ciencia-linguagem-fisica-e-metafisica/) uma ideia do que entendo do fenômeno da chamada reencarnação:

A causalidade jurídica é uma causalidade diferida, e não imediata, mas é causalidade, como nos indica o conceito de karma, em que pese a interpretação equivocada sobre a chamada reencarnação, pois não existe a volta da alma à carne, mas uma reverberação psíquica arquetípica com compartilhamento de memória, a que se atribui erroneamente o nome de reencarnação, quando uma pessoa, no eterno agora (o tempo não existe além da psique humana), sente algo semelhante ao que é vivido por outra pessoa agora, pela similitude vibracional, como numa sintonização, em situação emocional típica, no futuro ou no passado, compartilhando essa memória.”

A teoria da reencarnação pressupõe a preexistência da alma, o que é uma questão controversa nos círculos cristãos. Ainda assim, é possível reconhecer uma preexistência da alma ou mente individual, anterior à encarnação, sem que para tanto seja necessário concluir pela ocorrência da reencarnação, da volta da alma ao corpo após a morte para aprendizado e evolução.

Nesse sentido, pode-se concordar com Orígenes, na obra Tratado sobre os Princípios, apesar da controvérsia sobre o referido livro, cujos originais se perderam, e da menção expressa no texto a uma ideia de trindade, ainda que “mais monoteísta”, e diversa daquela que se consagrou na ortodoxia, trindade com a qual não concordo.

Orígenes trabalha expressamente com a proposta de preexistência da alma:

antes de perecer, quando era outra coisa, não perdida (que nem sei o que era), e que existirá seguramente quando já não estiver perdida, assim também a alma, da qual se diz que se perdeu, pode ser que, antes de se perder, fosse outra coisa, e é por isso que se vai dizer que a alma, quando for libertada da perdição, poderá ser de novo o que era antes de perecer, e era chamada alma. (…) a alma recebeu esse nome porque ela se tornou fria, perdendo o fervor dos justos e a participação no fogo divino, sem perder, contudo, a possibilidade de se restabelecer nesse estado de fervor em que estava no princípio. O profeta parece indicar um sentido semelhante quando diz: ‘Volta, minha alma, para o teu repouso’ (Sl 116, 7). Isso parece mostrar a todos que a mente, afastando-se do seu estado e da sua dignidade, tornou-se alma e assim é chamada; se ela se recuperar e se corrigir volta a ser mente.

Se assim for, parece-me que não se deve pensar que esse rebaixamento e queda da mente sejam iguais para todos, mas que há mais e menos nessa mudança em alma, e que algumas mentes conservam alguma coisa de seu vigor inicial, e outras nada, ou muito pouco” (In Tratado sobre os princípios. Trad. João Eduardo Pinto Basto Lupi. São Paulo: Paulus, 2012, pp. 175-178).

No parágrafo anterior ao citado, Orígenes havia associado o Espírito mais à mente do que à alma, relacionando também espírito com inteligência. De modo semelhante, podemos dizer que o Espírito (ou Mente) se refere a uma realidade atemporal, enquanto a alma, quando unida ao corpo, se liga ao movimento, ao tempo. A alma é compreendida, assim, como a conexão entre espírito e a carne, e daí que durante a vida corporal a alma é espírito encarnado, o homem é alma vivente.

Para justificar as injustiças do mundo terreno, o que é uma questão jurídica, ligada ao Direito, a teoria da reencarnação sustenta que a alma volta ao corpo por escolha própria (ou não), em várias vidas, pela lei do karma ou dever espiritual (Direito), para continuar o seu aprendizado em direção à perfeição, ou iluminação, para sair do ciclo ou roda de Samsara, ou passar para um plano superior. Assim, os sofrimentos presentes decorrem de atos ou escolhas de vidas passadas, e servem para nossa evolução.

Orígenes dá outra resposta ao problema das injustiças do mundo:

Já mostramos antes, e muitas vezes, pelas afirmações que fomos buscar às divinas Escrituras, que o Deus criador do universo é bom, justo e todo-poderoso. Quando ele criou o que quis criar, isto é, as criaturas racionais, não o fez por nenhuma outra causa a não ser ele mesmo, isto é, pela sua bondade. Como não havia nele – a causa do que ia ser criado – nem variedade, nem mudança, nem incapacidade, ele os fez todos iguais e idênticos, pois não havia nele nenhuma causa de variação e de diversidade. Como, porém, as próprias criaturas racionais receberam a faculdade do livre-arbítrio, a liberdade da sua vontade convidou cada uma a progredir pela imitação de Deus, ou a arrastou na regressão por causa da sua negligência; essa questão já a demonstramos muitas vezes e voltaremos a demonstrar no seu lugar. E isso foi, como já o dissemos antes, causa da diversidade entre as criaturas racionais, sem que isso venha da vontade ou da decisão do Criador, mas das escolhas da liberdade própria. Deus, porém, que já considerava justo governar as suas criaturas de acordo com os méritos delas, dispôs as diversidades das inteligências na consonância de um só mundo, como se fosse uma casa em que houvesse não só recipientes de outro e prata, mas também de madeira e de argila, uns para uso mais nobre, outros para uso de coisas desprezíveis; e ele decorou a casa utilizando os diversos vasos que são as almas ou mentes. Creio eu que é daí que vêm as causas da diversidade deste mundo, porque a divina Providência governa cada um segundo a variedade das suas ações e das intenções dos seus propósitos” (Idem, pp. 185-186, grifos meus).

Deus é justo e trata cada um segundo seus méritos. Essa é a explicação de Orígenes para o tratamento diverso entre Esaú e Jacó, mesmo que ainda não tivessem pecado, citando palavras do apóstolo Paulo: “Também Rebeca, que concebera de um só, de Isaac nosso pai, quando ainda não haviam nascido, e nada tinham feito de bem ou de mal, — a fim de que ficasse firme a liberdade da escolha de Deus, dependendo não das obras, mas daquele que chama — foi-lhe dito: O maior servirá ao menor, conforme está escrito: Amei a Jacó e aborreci a Esaú. Que diremos então? Que há injustiça por parte de Deus? De modo algum.” (Rm 9, 11-14).

Orígenes concluiu: “Parece-me que as mesmas perguntas que se põem a respeito de Esaú e de Jacó podem se estender a todos os seres celestiais e às criaturas terrenas e às infernais: ‘Quando ainda não tinham nascido nem tiveram ainda feito nem o bem nem o mal’, o que se pode dizer de modo semelhante de todos os outros seres. (…) O Criador prepara para cada um uma função e um serviço diferentes conforme a dignidade do seu mérito: isso decorre certamente do fato de que cada um, porque foi criado por Deus como inteligência ou como espírito racional, adquiriu para si mais ou menos méritos em razão das ações da inteligência e dos sentimentos espirituais, e assim se tornou amável ou odiável para Deus” (Idem, pp. 187-188, grifos meus).

Assim, existe um tempo antes ou fora do tempo, o kayros, um tempo em que tudo foi criado, no Princípio, quando as almas foram criadas, na Mente de Deus, antes da encarnação, pelo que o movimento espiritual da alma na Mente de Deus, antes do tempo, sem tempo, o maior ou menor amor a Deus, porque Deus é amor e transcende o nosso tempo, o movimento da alma na Mente de Deus é a causa da diversidade da “fortuna” das pessoas nesse mundo. Quanto mais apegados a nossos corpos, às questões provisórias e passageiras, mais afastados de Deus, O Eterno, e mais difícil nossa compreensão dessa realidade.

Segundo uma proposta teológica, o primeiro espírito ou alma criada foi o Logos, o primeiro mensageiro ou anjo de Deus, o arcanjo (anjo mais antigo) Miguel, que é como Deus, no primeiro “dia” (arquetípico) da criação, o Espírito de Unidade pelo qual todas as coisas foram feitas, e que encarnou como Jesus Cristo. Provavelmente todas as almas foram criadas juntas no primeiro momento da criação, no Espírito de Deus. Diz-se que, no segundo dia, Lúcifer, como espírito arquetípico de divisão, apegando-se a essa diferença, amou-se a si mais que a Deus, tornando-se o Diabo ou Satanás, e apenas do segundo “dia” (arquetípico), em que foi criado o firmamento “que separou as águas que estão sob o firmamento das águas que estão acima do firmamento” (Gn 1, 7), não consta no texto bíblico que “Deus viu que era bom”.

Psicologicamente a separação indica a formação do ego, a aquisição da individualidade e da liberdade pela humanidade, o que é necessário para a maturidade humana, mas que podem ser mal usadas pelo pecado, pelo apego à separação, pelo amor a si mesmo.

Em uma leitura teológica, é possível interpretar que o conceito de firmamento ou céu, que separa as águas de cima das de baixo do firmamento, que separa terra e céu, apesar de necessário para a compreensão humana, por sua limitação (criação do finito) que permite o conhecimento, não é bom, porque Deus quer viver com os homens na eternidade; e por isso a Queda, a separação possível que se concretizou, causada pelo Diabo, encarnado no comportamento de Eva e de Adão, no mergulho na finitude, exigindo a posterior encarnação do Logos, em Jesus Cristo, para eliminar essa separação, pelo Espírito Santo, ao iniciar a Redenção da criação, restaurando a Unidade com Deus, na infinitude.

De outro lado, em virtude da liberdade humana, Deus, por sua onisciência, viu o sofrimento de seus filhos, decorrente da separação voluntária, do apego à finitude, e Deus viu que isso não era bom. Se Richard Feynman consegue conceber uma física segundo a qual, no mundo quântico, a partícula percorre todos os caminhos possíveis, simultaneamente, até chegar a seu destino, muito maior é o conhecimento de Deus, que viu todos os caminhos percorridos pela humanidade, por seus filhos, até o fim dos tempos, inclusive a maldade, que não é boa, decorrente da separação de seu Espírito.

Portanto Satanás é um espírito de separação, e da separação espiritual, pelo apego à própria alma, decorre o pecado, sendo o próprio pecado, que deve ser eliminado. “Quem ama sua vida a perde e quem odeia a sua vida neste mundo guarda-la-á para a vida eterna” (Jo 12, 25).

Daí porque é possível dizer que a criação espiritual antecedeu a criação material, porque o Espírito está fora do tempo. “No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um vento de Deus pairava sobre as águas” (Gn 1, 1-2). Depois que tudo foi criado na mente de Deus, em seu Logos, a matéria ganhou substância e forma conforme a criação de Deus e os méritos dos espíritos no Espírito. Portanto, não apenas Jesus estava em Deus antes do tempo, como também nós estávamos com Ele, no Princípio, como exposto no artigo “Somos Filhos de Deus” (https://holonomia.com/2017/07/06/somos-filhos-de-deus/): “Porque os que de antemão ele conheceu, esses também predestinou a serem conformes à imagem do seu Filho, a fim de ser ele o primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8, 29).

E vós também dareis testemunho, porque estais comigo desde o princípio” (Jo 15, 27). Nota respectiva, Frederico Lourenço destaca: “15,27 ‘desde o princípio estais comigo’: para João, princípio (arkhê) designa habitualmente o início primordial da Criação. O presente de ‘estais’ (esté) corresponde ao verbo ‘ser’ em grego, pelo que uma tradução mesmo literal daria ‘desde o princípio sois comigo‘” (In Novo Testamento: os quatro Evangelhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 391 – grifo meu).

Como as almas se tocam fora do tempo, na Mente, Espírito ou Logos de Deus, antes da criação, e fora do tempo, quando encarnadas algumas almas se recordam, pela Unidade do Espírito, de fenômenos ocorridos com outras almas no tempo, passado ou futuro, por meio de memórias compartilhadas relativas a eventos arquetípicos, ligadas a situações da vida que se repetem em formas, locais e tempos distintos, em uma reverberação psíquica, decorrente de similitude vibracional, ou sintonização emocional, que pode parecer como sendo da mesma pessoa de outra vida, mas que é outra alma na mesma eternidade, no mesmo Espírito, porque “Há um só Corpo e um só Espírito, assim como é uma só a esperança da vocação a que fostes chamados; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; há um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos, por meio de todos e em todos” (Ef 4, 4-6).

Do mesmo modo, na ressurreição, no Dia do Julgamento, em outro tempo, no Espírito, também haverá o compartilhamento de memórias, quando as almas voltarem a se encontrar, então sentiremos os efeitos das influências boas ou más que causamos neste mundo nas outras almas, no Espírito de Deus. A memória, como a orgânica quântica, possui natureza não local, está ligada à Ideia, ao Espírito. Mesmo no cérebro, a memória possui armazenamento holográfico, espalhando-se por todas as regiões cerebrais.

Quando o tempo fora do tempo se encontrar com o tempo dentro do tempo, quando ocorrer o salto quântico coletivo para a Unidade, no Dia do Senhor, cada um receberá as recompensas e punições pelo que fez no Corpo a favor ou contra o Espírito.

Enquanto orava, o aspecto de seu rosto se alterou, suas vestes tornaram-se de fulgurante brancura. E eis que dois homens conversavam com ele: eram Moisés e Elias que, aparecendo envoltos em glória, falavam de sua partida que iria se consumar em Jerusalém” (Lc 9, 29-31).

Esta passagem, numa determinada análise, poderia indicar a comunicação entre Jesus, Moisés e Elias, ao mesmo tempo, em três momentos da história, ainda que narrado o evento apenas no Evangelho: no tempo de Moisés, mais de mil anos antes de Jesus, no tempo de Elias, centenas de anos depois de Moisés, e no tempo de Jesus, quando os três viviam na Terra. De outro lado, se não estavam na Terra, Moisés, que não tinha reencarnado, e Elias, que sequer morreu, pelo que não poderia ter reencarnado como João Batista, tratavam, no Espírito, da volta de Jesus para o Espírito, sua partida desta carne, sem haver aí indicação de reencarnação.

Pela Palavra de Deus, e da Justiça, que nos foi dada para a Salvação, podemos nos antecipar e nos unir ao Espírito de Deus, cumprindo seus mandamentos, a Lei, encarnando seu Logos, para que, na ressurreição não soframos por más ações que podemos evitar, porque a Unidade do Espírito e da consciência será restaurada depois da morte, na nova vida.

Como diz Orígenes, a inteligência ou consciência, pelo poder divino, na ressurreição, lembrar-se-á de “tudo o que ela fez de mal e de vergonhoso, e, ainda, tudo o que ela cometeu de ímpio, verá, assim, de algum modo, exposta diante dos seus olhos a história de cada um de seus crimes; então a consciência fica agitada e como que espicaçada pelos seus próprios ferrões e torna-se para si mesma a acusadora e testemunha. (…) Daqui se pode entender que, no que diz respeito à própria substância da alma, os maus sentimentos dos pecadores geram eles mesmos certos tormentos” (Idem, p. 194).

Assim, os misericordiosos alcançarão misericórdia por parte de Jesus Cristo, o Enviado de Deus, que viveu segundo o Espírito, o Logos, na Unidade da consciência e da memória, por meio de quem podemos alcançar o perdão, desde que renunciemos ao pecado, unindo-nos a Ele no ministério público, cada um carregando sua cruz, mergulhando na Vida do Espírito ao fazer a Vontade do Pai, sacrifício que será por Ele lembrado, no Dia do Julgamento. O amor é a Unidade no Espírito, e por isso “o amor cobre uma multidão de pecados” (1Pe 4, 8).

Portanto, a encarnação é a realização da Mente ou Espírito de Deus no seu Corpo, no nosso corpo que é templo de Seu Espírito, “para a edificação do Corpo de Cristo, até que alcancemos todos nós a unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, o estado de Homem Perfeito, a medida da estatura da plenitude de Cristo. Assim, não seremos mais crianças, joguetes das ondas, agitados por todo vento de doutrina, presos pela artimanha dos homens e da sua astúcia que nos induz ao erro. Mas, seguindo a verdade em amor, cresceremos em tudo em direção àquele que é a Cabeça, Cristo, cujo Corpo, em sua inteireza, bem ajustado e unido por meio de toda junta e ligadura, com a operação harmoniosa de cada uma das suas partes, realiza o seu crescimento para a sua própria edificação no amor” (Ef 4, 12-16).

Comunicação

Segundo o novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, comunicação significa: “1. Ato ou efeito de comunicar(-se). 2. Ato ou efeito de emitir, transmitir e receber mensagens por meio de métodos e/ou processos convencionados, quer através da linguagem falada ou escrita, quer de outros sinais, signos ou símbolos, quer de aparelhamento técnico especializado, sonoro e/ou visual. (…) 6. A capacidade de trocar ou discutir ideias, de dialogar, de conversar com vista ao bom entendimento entre pessoas”; enquanto comunicar, por sua vez, tem o sentido de: “1. Fazer saber; tornar comum; participar (…) 2. Pôr em contato ou relação; estabelecer comunicação entre; ligar, unir”.

Pelos termos citados, a comunicação exige uma delimitação significativa dentro da qual ocorre a transmissão da mensagem, pelo que pode-se dizer que toda comunicação é interna, no sentido de que somente é possível quando já estabelecida uma mínima unidade simbólica entre aqueles que se comunicam, ou entre a pessoa e o meio do qual receberá a mensagem que será compreendida, e apenas dentro dessa unidade simbólica pode ocorrer comunicação.

Para entender um texto o leitor deve se colocar dentro do mundo do texto; e para que duas pessoas conversem, para que se comuniquem, é necessário que estejam inseridas em uma comunidade significativa, que sejam membros ou integrem um mesmo grupo linguístico, sendo a humanidade o grupo linguístico mais amplo, a unidade simbólica mínima, que abrange todas as línguas humanas.

Até mesmo a compreensão individual dos fenômenos do mundo exige comunicação interna, em que o sujeito cria mentalmente um mundo (ou nasce espiritualmente de um mundo), dentro do qual ele está localizado e no qual ele se distingue do meio exterior, em que ele é uma unidade sensível e intelectual capaz de receber estímulos externos a essa unidade, mantida uma unidade superior que une o sujeito ao meio, unidade essa que permite a correlação das imagens mentais internas do sujeito aos fenômenos do meio por ele integrado, possibilita a tradução entre sentidos e conceitos. Portanto, o entendimento pessoal e solitário do mundo também é feito por meio de uma comunicação interna, em que é criada uma unidade global de referência, dentro da qual se colocam o sujeito e um meio, separados, mas que voltam a se unir em unidade significativa na compreensão dos fenômenos interpretados, mesmo que essa unidade significativa nem sempre seja clara ou consciente para a pessoa, unidade que é indispensável para permitir a comunicação, a ligação simbólica inteligível entre sensações e imagens em um todo coerente, o entendimento ou união racional.

A unidade global de referência é fundamental para que ocorra comunicação. É necessário um referencial, um padrão para o desenvolvimento da comunicação. E essa referência deve ser fixa, pois sua mobilidade impede a unidade inteligível, porque com a mudança do referencial somente se obtém unidade racional se mantida uma ligação inteligível com o modelo primário, o que é a função da chamada tradição.

No caso da visão, por exemplo, o referencial primário são as invariantes do ambiente, como estudado por James J. Gibson, em estudo citado por Wolfgang Smith:

O sistema perceptual é projetado para a captação de informações dadas na luz ambiente e, especialmente, para a apreensão de invariantes, isto é, de elementos estruturais do arranjo ótico ambiente que subsistem no tempo e permanecem inalterados por mudanças na perspectiva visual. Mas isso implica que o tempo, ou melhor, que o movimento entra em cena de modo essencial; com efeito, nada pode ser percebido ‘em um instante’” (Wolffgang Smith. Ciência e mito: com uma resposta a O Grande Projeto de Stephen Hawking. 1 ed. Trad. Pedro Cava. Campinas: Vide Editorial, 2014, p. 113).

Em seguida ele transcreve palavras do próprio Gibson: “O sistema visual busca a compreensão e a clareza e não para até que as invariantes sejam extraídas” (Idem, p. 113). Passando a uma análise filosófica mais profunda, que exige uma unidade na comunicação, como salientado acima, Smith destaca:

O fato é que, para conceber a percepção autêntica, a noção de morphe ou eidos é necessária: somente uma forma está apta para unir um sujeito a um objeto, de modo que, em ‘alguma medida’, os dois se tornem ‘uma só coisa’, como declara Aristóteles. (…)

Ora, são essas invariantes – essas formas! – que possibilitam a percepção. De acordo com a teoria de Gibson, elas é que são ‘registradas’ ou extraídas a partir do arranjo ótico ambiente no ato de percepção e são também o que objetivamente se percebe. Em uma palavra, o que faz a ponte entre a ‘mente’ e o ambiente é nada mais, nada menos que essas invariantes: em verdade, elas são as formas que fornecem acesso ao mundo externo” (Idem, p. 127 – grifo nosso).

No âmbito científico, o que permite a comunicação e o entendimento das teorias é a adoção do referencial matemático, que é uma espécie limitada de forma, baseada em quantidades mensuráveis, em medidas fixas traduzidas em outras medidas. A linguagem científica atual é, dessarte, a matemática, ou seja, é criado o mundo matemático das coisas, dentro do que se desenvolveu a ciência, como teoria de mundo usada para medir os fenômenos do mundo, por comparação formal.

Com a relatividade as medidas de tempo e espaço foram unificadas, mas essa unidade global de referência da relatividade não é suficiente para a compreensão do universo, pois não inclui as características do mundo quântico, não tendo sido ainda encontrada pela ciência aquela unidade maior que inclua as interações quânticas, não se chegou ao ponto comum entre eles, à forma ou ideia maior em que ambas, a relatividade e a orgânica quântica, estejam incluídas e possam se comunicar. Existe, ainda, uma diferença sobre a qualidade das interações entre a relatividade e a realidade quântica, na medida em que aquela se baseia em interações locais com a velocidade da luz como limite máximo de comunicação, enquanto para a orgânica quântica existe uma conexão não local entre os fenômenos, com possibilidade de ação a distância instantânea, ou seja, sem o limite da velocidade da luz. Portanto, a unidade global de referência, que permite a comunicação no nível físico, está além dos limites da relatividade que, ressalte-se, é uma visão materialista de mundo.

Tal dificuldade de comunicação também pode ser verificada nos fenômenos humanos, porque uma parte da humanidade não considera que a unidade global de referência seja imaterial, esteja além das sensações corporais, ligada às formas ou ideias, ao Espírito. Esses apegam-se aos limites, insuficientes, da relatividade de Einstein.

No campo do Direito, por exemplo, um caso limite é o da defesa do aborto por aqueles que entendem que tal conduta estaria inserida na “dignidade” da mulher que não quer ter o filho, entendimento esse que não é compartilhado pelos que sustentam que a dignidade é mais do que a individualidade corporal, ligando-se ao sentido geral mais amplo da existência humana. A unidade global de referência é diversa em um ou outro caso, e essa diferença impede a comunicação, atrapalhando inclusive o diálogo jurídico.

Desse modo, da mesma forma que é mister seja a relatividade superada para a correta compreensão da natureza, o melhor entendimento do Direito passa pela adequação do conceito de dignidade humana, que não pode ser ligado aos meros sentimentos corporais individuais, sendo necessária uma concepção de humanidade mais ampla, que transcenda os corpos dos indivíduos, suas sensações, no sentido de um movimento coletivo da espécie em direção à Vida, resgatando a gênese da dignidade humana, Jesus Cristo e sua cosmovisão, sua unidade global de referência.

Portanto, a unidade global de referência em relação à vida humana não pode ser o indivíduo isoladamente, porque os comportamentos individuais devem ser considerados para o crescimento e desenvolvimento das pessoas de modo compatível com o crescimento da comunidade, das demais pessoas. A ordem que rege o comportamento humano não pode ser considerada apenas sob o referencial individual, mas deve se ligar ao referencial coletivo, à inteligência da unidade superior, à unidade da espécie humana, com sua racionalidade própria, que é o Logos.

No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, e Deus era o verbo. Este no princípio estava como Deus. Todas as coisas existiram por ação dele e sem ele existiu nem uma só coisa que existiu. Nele estava a vida, e vida era a luz dos homens” (Jo 1, 1-4).

A passagem acima é retirada da tradução do grego por Frederico Lourenço (Novo Testamento: os quatro Evangelhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017), e aponta exatamente para o Logos, o Verbo, como unidade global de referência, que estava no princípio e continua presente na criação, em todas as coisas, pois além de todas as coisas, além dos corpos humanos, e que habitou na humanidade.

E o verbo fez-se carne e habitou entre nós; e contemplamos a sua glória – glória enquanto [filho] unigênito do Pai, pleno de graça e de verdade” (Jo 1, 14).

O Evangelho de João nos mostra como ocorreu a plena comunicação de Deus para a humanidade, fazendo de um homem sua unidade global de referência, Jesus Cristo, que encarnou o Verbo, o Logos de Deus na humanidade. Nas notas sobre o versículo 14 acima transcrito, é curioso notar que a tradução tradicional pode ocultar uma realidade teológica, porque o Frederico Lourenço afirma que “no v. 14 de João, a expressão ‘entre nós’ é literalmente ‘em nós’ (em hêmîn)” (Idem, p. 324 – grifo nosso). E mesmo sobre a tradução de “unigênito”, há dúvida sobre o significado original, dizendo o tradutor que São Jerônimo usou esse termo, havendo a suspeita de que não seja o mais correto, para combater o arianismo, quando o significado seria ligado a monogenês, referente à unicidade de Jesus, como único de seu gênero, sua espécie. Único porque nenhum outro homem teve, como ele, a plenitude da graça e da verdade de Deus. Mas Ele recebeu o Espírito de Deus e o comunicou a nós, nos transmitiu a mensagem que une, que liga, a humanidade a Deus.

Portanto, a unidade global de referência da humanidade é Jesus Cristo porque teve uma vida pautada pela vida coletiva, pelo Logos, mostrando o conceito de humanidade na prática social, auxiliando os humildes, curando os doentes e servindo à coletividade, como Messias, como Líder político, como governante, segundo a Lei de Deus, até a morte, e morte de cruz.

Essa é sua mensagem, a comunicação plena, pois mostrou que a vida não se encerra com a morte do corpo, e que a vida é mais do que o corpo, comunicou que a unidade global de referência é o Espírito, o Logos de Deus que habita em nós, e comunicar essa Verdade é obrigação do Cristão, proclamando o Evangelho e dando testemunho vivo de Jesus Cristo, seguindo seu exemplo. Essa é a melhor forma de comunicação!

Pecado original

A doutrina do pecado original orienta o Cristianismo desde santo Agostinho, narrando que a Queda humana provocada por Adão contaminou a natureza do homem, o qual, desde então, sofre a influência do mal, e que somente por meio de Jesus Cristo o pecado foi remido.

Segundo o catecismo da Igreja Católica:

1707. «Seduzido pelo Maligno desde o começo da história, o homem abusou da sua liberdade». Sucumbiu à tentação e cometeu o mal. Conserva o desejo do bem, mas a sua natureza está ferida pelo pecado original. O homem ficou com a inclinação para o mal e sujeito ao erro:

O homem encontra-se, pois, dividido em si mesmo. E assim, toda a vida humana, quer singular quer colectiva, apresenta-se como uma luta, e quão dramática, entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas».

1708. Pela sua paixão, Cristo livrou-nos de Satanás e do pecado e mereceu-nos a vida nova no Espírito Santo. A sua graça restaura o que o pecado tinha deteriorado em nós.”

1714. O homem, ferido na sua natureza pelo pecado original, está sujeito ao erro e inclinado para o mal no exercício da sua liberdade.” (http://www.vatican.va/archive/cathechism_po/index_new/p3s1cap1_1699-1876_po.html)

Apesar de haver uma grande parcela de verdade no conceito de pecado original, talvez a interpretação de que a natureza humana foi contaminada pelo pecado mereça um aprimoramento.

A análise do pecado original está ligada à hermenêutica do primeiro livro da Bíblia, o Gênesis, que narra o pecado cometido por Eva e por Adão, a consciente desobediência ao mandamento divino, estimulada pela vaidade humana, pecado que foi transmitido à humanidade.

Nesse ponto, há que se considerar que o Gênesis traz uma descrição um tanto resumida e simbólica de um passado da humanidade, podendo ser considerada alguma forma de evolução da vida até que surgissem os primeiros grupos humanos. E essa hipótese encontra respaldo até mesmo pelo que é dito no Gênesis, pois a oferta de Caim e Abel já significava uma cerimônia religiosa, não explicada no texto da Escritura, possivelmente dentro de uma comunidade, quando ocorreu a preferência de Iahweh pela oferenda de Abel. E logo após o fratricídio, quando havia sido noticiada somente a existência de Adão, Eva, Caim e Abel no texto sagrado, constou que “Caim se uniu à sua mulher, que concebeu e deu à luz Henoc” (Gn 4, 17).

Portanto, a melhor interpretação dos textos sagrados, conjugada com os conhecimentos científicos modernos, pois a existência da mulher de Caim faz presumir a de outras pessoas no planeta no tempo de Adão, leva à aceitação de um grupo humano primitivo, podendo ser entendido que Adão era o líder dessa coletividade, um líder político e religioso, um rei sacerdote que violou seu compromisso com a comunidade, contrariando os interesses da coletividade para um benefício individual, de sua família, quando o egoísmo superou o dever.

A humanidade possui algo como uma mente coletiva, um cérebro coletivo composto pelos cérebros individuais, na linha da psique coletiva de Jung, o que permite o aprendizado coletivo, podendo as razões ou pensamentos ocultos dessa coletividade se manifestarem em um ou mais cérebros individuais, chegar à consciência coletiva a partir de indivíduos especiais, seja como boa ou como má ideia. E tal realização psíquica marca não apenas a consciência da pessoa que manifesta tal ideia, como a consciência coletiva daqueles que tomam conhecimento de tal manifestação, além de marcar o inconsciente de toda humanidade.

Como o homem é um ser político, como afirma Aristóteles, o pecado original contaminou a natureza política do homem, da humanidade como ser coletivo, o mundo social, o mundo político, que jaz no poder do Maligno (1Jo 5, 19).

Isso também pode ser considerado a partir do fato de que, em que pese a falha hermenêutica do Cristianismo nesse ponto, as religiões Monoteístas são religiões políticas e jurídicas, em que o comportamento das pessoas está vinculado à comunidade, para a realização de justiça social, o cumprimento da Lei, dos mandamentos.

O vínculo que uniu os judeus durante milhares de anos e que os une hoje é, acima de tudo, o ideal democrático de justiça social, ligado ao ideal de mútuo auxílio e tolerância entre todos os homens. Até as mais antigas escrituras dos judeus estão impregnadas dessas ideias sociais, que afetaram profundamente o cristianismo e o islamismo e tiveram uma influência benéfica na estrutura social de grande parte da humanidade” (Albert Einstein. Escritos da maturidade: artigos sobre ciência, educação, religião, relações sociais, racismo, ciências sociais e religião. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, p. 263).

Como a justiça social depende de organização social, instituições sociais e políticas, notadamente uma jurisdição para decidir os conflitos humanos de forma justa, segundo a Lei, e porque tais exigências não vinham sendo cumpridas pelo povo judeu, povo que havia recebido a revelação divina por meio dos profetas, Jesus Cristo, o Messias judeu, o Rei dos judeus, o líder político da era messiânica, não foi acolhido pelo seu próprio povo, e mesmo assim Jesus não violou seu dever, ao contrário de Adão, Ele observou plenamente os mandamentos de Deus, em detrimento de seus interesses individuais, pois evidentemente não queria ser torturado e morto (afasta de mim este cálice), cumprindo o que estava profetizado sobre o sofrimento do Messias, previsto, por exemplo, pelo capítulo 53 do livro do profeta Isaías.

Destarte, justiça social exige Lei justa, governo justo e julgamento justo. Esse ponto é de grande relevância, pois demonstra a superioridade religiosa do Monoteísmo, e do Cristianismo, como religião de salvação individual e coletiva, de natureza espiritual e racional, pelo que não pode haver comparação entre o Cristianismo e outras formas de religiosidade, seja com aquelas de cunho individual, seja com as que trabalham com sangue ou com deuses em forma animal.

Como o povo judeu não aceitou as ideias de Jesus Cristo, de justiça social incluindo os outros povos além da nação judaica, para o cuidado dos excluídos, os judeus perderam a posição privilegiada de povo portador da Verdade, na medida em que a Verdade vinculou-se definitivamente à pessoa de Jesus Cristo, por seu exemplo de vida como líder judeu, como Rei e Sacerdote não apenas dos judeus, mas de toda a humanidade.

É tanto um fato que o pecado original contaminava principalmente o homem como humanidade, o mundo, sem prejuízo de a Graça incidir sobre alguns homens individualmente, mesmo antes de Jesus Cristo, que consta nas Escrituras que “Henoc andou com Deus, depois desapareceu, pois Deus o arrebatou” (Gn 5, 23), “E aconteceu que, enquanto andavam e conversavam, eis que um carro de fogo e cavalos de fogo os separaram um do outro, e Elias subiu ao céu no turbilhão” (2Rs 2, 11).

Como o céu é o “local” de habitação do Deus Santíssimo, em que não pode entrar o pecado, evidentemente Henoc, que não é o filho de Caim, e Elias não estavam tão contaminados pelo pecado original, que, portanto, não é tão original assim, mas adquirido. Por isso, ou Henoc e Elias não adquiriram o pecado original ou dele se limparam antes da vinda de Jesus Cristo.

E tal era a santidade de Elias que transferiu seu Espírito para Eliseu (2Rs 2), tendo tal santidade permanecido até os ossos de Eliseu, cuja força ressuscitou um homem (2Rs 13, 21). Nesse ponto, muito maior é a santidade de Jesus Cristo, cujo Espírito foi transferido, por seu sacrifício, não para um homem, mas para todo aquele que crê que Ele é o enviado de Deus e que segue Seus mandamentos. E o Espírito de Jesus é o próprio Espírito Santo de Deus, que confere àquele que o possui a condição de Filho de Deus, sendo imagem e semelhança de Deus, que deixou de ser ligada a uma nação específica, abrindo-se a toda humanidade.

Outrossim, talvez o homem seja efetivamente bom naturalmente, não como indivíduo desvinculado de uma sociedade, e sim como membro de uma coletividade racional, mas como cresce numa coletividade contaminada pelo pecado original, enquanto coletividade governada de forma injusta, injustiça que se espalha pelo tecido social, pelas famílias e pelas mentes das pessoas, adquire esse pecado pelos maus exemplos por ele presenciados. Existe um documentário no Netflix, “The Altruism Revolution”, que aponta para esse sentido, de uma bondade natural do homem. Por isso, o homem pode ser naturalmente bom, mas no curso da vida, pela má educação, torna-se, sem a Graça, sem o Espírito Santo, lobo do próprio homem.

Daí decorre a importância do exemplo, da (boa) educação, da vida santa, e da necessidade de que os governantes sejam santos.

E boa educação é a formação Cristã, que incute nas pessoas o respeito aos dois grandes mandamentos, o amor a Deus e ao próximo. O amor a Deus, com todo o entendimento, inclui compreender a Ordem natural das coisas e do mundo físico, do Cosmos, o conhecimento de Deus como causa da ordem invisível que governa a realidade, visível e invisível, a ciência dos fundamentos e da essência do Monoteísmo. O amor ao próximo é efeito do autêntico amor a Deus, pois o conhecimento do mundo acarreta o entendimento de que a humanidade é Una, apesar da aparente distinção e separação das pessoas e das nações, e por isso o Cristão ama ao próximo como a si mesmo porque ambos são membros do mesmo corpo humano coletivo. Destarte, a educação Cristã inclui as chamadas ciências da natureza e as ciências humanas, ou ciências do espírito.

Se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem, melhor seria que lhe prendessem ao pescoço a mó que os jumentos movem e o atirassem ao mar” (Mc 9, 42).

Portanto, Adão é o exemplo, o tipo, o arquétipo pecador da psique coletiva, daquele que segue o egoísmo em detrimento da razão, enquanto Jesus Cristo é o modelo de santidade, Método para realização da Justiça, pelo exemplo de líder político, de Rei e Sacerdote que segue o Logos, segundo a consciência coletiva (consciente).

Eis porque, como por meio de um só homem o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte, e assim a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram”.

Entretanto, não acontece com o dom o mesmo que com a falta. Se pela falta de um só todos morreram, com quanto maior profusão a graça de Deus e o dom gratuito de um só homem, Jesus Cristo, se derramaram sobre todos”.

Se, com efeito, pela falta de um só a morte imperou através deste único homem, muito mais os que recebem a abundância da graça e do dom da justiça reinarão na vida por meio de um só, Jesus Cristo. Por conseguinte, assim como pela falta de um só resultou a condenação de todos os homens, do mesmo modo, da obra de justiça de um só, resultou para todos os homens justificação que traz a vida. De modo que, como pela desobediência de um só homem, todos se tornaram pecadores, assim, pela obediência de um só, todos se tornarão justos” (Rm 5, 12; 15; 17-19).

Pois, assim como todos morrem em Adão, em Cristo todos receberão a vida” (1Cor 15, 22).

Eis que eu nasci na iniquidade, minha mãe concebeu-me no pecado” (Sl 51, 8).

A interpretação desses textos, por isso, talvez deva ser feita considerando “todos os homens” como coletividade humana, no sentido de que apenas seguindo e exemplo de Jesus Cristo poderá haver salvação coletiva, de toda comunidade, da humanidade, porque somente quando os governantes forem Reis e Sacerdotes, servindo o povo conforme o Logos de Deus, afastando o pecado, a irracionalidade, da vida coletiva, o próprio Deus habitará entre os homens (Ez 43, 9; Ap 21, 3).

Qual a mensagem?

Diz-se que vivemos na sociedade da informação. A palavra informação está ligada ao tema da comunicação, em que há troca e aumento de conhecimento compartilhado.

Informação é palavra de origem latina, e significa “dar forma”. E forma também tem origem latina, ligando-se a “imagem, figura, aspecto, aparência, molde”.

Podemos associar informação, portanto, a modelo, a ideia, a contexto e a paradigma.

Informação se refere a sentido, a mensagem, a transmissão de dados, com forma, com contexto. A interpretação dos dados torna a informação propriamente informação, um sinal com sentido, inserindo um conteúdo significativo dentro de uma imagem significativa.

Segundo a física moderna, o mundo é feito de informação, sendo que as unidades básicas da realidade, os campos, trocam informações por meio de fótons, de luz. Luz é informação, energia, conteúdo, forma, pois a luz tem natureza dual, corpuscular e ondulatória, é radiação eletromagnética com comprimentos de ondas e frequências variadas, formas variadas.

Os corpos podem ser considerados como feitos de luz congelada, como afirma David Bohm. Os corpos são a parte congelada da luz, mas também estão em movimento constante, emitindo informações. Deus, como Logos, é a Luz da luz, controla a ordem implicada que conduz a ordem manifesta, a Luz que permite o congelamento da luz, formando os corpos, como luzes dentro da Luz.

O Logos se liga à ordem implicada, à ordem interna do mundo, sua Unidade, que dá origem à ordem explicada, a ordem externa.

Clearly the manifest world of common sense experience refined where necessary with the aid of the concepts and laws of classical physics is basically in an explicate order. But the motion of particles at the quantum level is evidently also in an explicate order. However, as we have sugested in chapter 8, this latter order is not always at the manifest level because it is profoundly affected by the active information represented by the quantum potential. This latter operates in a subtle way and accordin to what has been said in this chapter, this operation is in an implicate order. Therefore the particle movement is not understood fully as self-determined in the explicate order in wich it is described. Rather, this explicate order reveals the deeper implicate order underlying its behavior” ((David Bohm and Basil J. Hiley. The undivided universe: An ontological interpretation of quantum theory. New York: Routledge, 2005 p. 362)

Claramente, o mundo manifesto da experiência do senso comum, refinado, quando necessário com a ajuda dos conceitos e leis da física clássica, está basicamente em uma ordem explicada. Mas o movimento de partículas no nível quântico evidentemente também está em uma ordem explicada. No entanto, como sugerimos no capítulo 8, esta última ordem nem sempre está no nível manifesto porque é profundamente afetada pela informação ativa representada pelo potencial quântico. Este último funciona de forma sutil, e de acordo com o que foi dito neste capítulo, esta operação está em uma ordem implicada. Portanto, o movimento das partículas não é totalmente compreendido como autodeterminado na ordem explicada na qual ele é descrito. Em vez disso, essa ordem explicada revela a ordem implicada mais profunda conduzindo seu comportamento”.

Desse modo, todos os movimentos significam trocas de informações, no nível mais básico das coisas, ligadas a um nível dobrado para dentro do Universo, em sua Unidade subjacente a tudo, na ordem implicada.

Também nós, enquanto seres em movimento, trocamos informações permanentemente, enviamos e recebemos informações a todo tempo.

Nossa vida é, outrossim, uma constante mensagem, da concepção à morte. Estamos sempre enviando mensagens para o cosmos, e recebendo mensagens cósmicas.

Cada ramo científico processa os dados, os sinais cósmicos, de uma perspectiva específica e parte de uma determinada referência paradigmática, dando forma a essas mensagens. A biologia foca na autorreprodução de informação em organismos. A química trabalha com a forma de organização da informação nos níveis mais básicos da realidade, assim como a física ao estudar o movimento da informação mais fundamental. A história também tem seu foco no desenvolvimento da informação no tempo. O direito estuda a informação na perspectiva do movimento humano e seus efeitos sobre as pessoas e o mundo.

Contudo, a abordagem reducionista da informação é evidentemente insatisfatória, sendo necessária uma perspectiva completa e integrada de todos os dados disponíveis, de modo que o todo da realidade tenha uma imagem inteligível. Essa função é exercida pela Filosofia, que adota o paradigma da unidade racional do conjunto das informações, buscando o Todo, o contexto maior, o mesmo sendo feito pela Teologia, ao organizar a informação a partir de um princípio espiritual.

O processamento da informação exige razão e experiência, ou seja, a ideia correta do modelo de mundo para inserir o dado no contexto adequado, que é conhecido por uma vivência prévia, intelectual ou sensorial, desse mesmo contexto, como os preconceitos no entendimento de Gadamer, considerando-se os dados mais relevantes, mais fundamentais, mais ligados à origem comum, universal de todos os dados, o que é condição da comunicação sensível e/ou inteligível, algo comum que permita a tradução.

E nesse ponto a filosofia materialista soçobra, pois a comunicação autêntica é necessariamente inteligível, servindo a sensibilidade apenas para qualificar a inteligibilidade, na medida em que vivemos em corpos, em unidades relativas que interagem com o organismo cósmico. A comunicação, portanto, é espiritual, pois apenas o espírito, que transcende os corpos individuais, pode permitir a comunicação, a ideia comum.

Aqueles ligados ao ego, às próprias sensações, os chamados psíquicos, não têm a capacidade de perceber isso, por sua limitação espiritual.

Quanto a nós, não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que vem de Deus, a fim de que conheçamos os dons da graça de Deus. Desses dons não falamos segundo a linguagem ensinada pela sabedoria humana, mas segundo aquela que o Espírito ensina, exprimindo realidades espirituais em termos espirituais. O homem psíquico não aceita o que vem do Espírito de Deus. É loucura para ele; não pode compreender, pois isso deve ser julgado espiritualmente. O homem espiritual, ao contrário, julga a respeito de tudo e por ninguém é julgado. Pois quem conheceu o pensamento do Senhor para poder instruí-lo? Nós, porém, temos o pensamento de Cristo” (1Cor 2, 12-16).

E Cristo é exatamente a realidade espiritual, intelectual, do cosmos, é o Logos. Por isso ele disse, “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14, 9).

O que Jesus Cristo quis dizer com isso? Ele falou que é a mensagem. Ele poderia dizer hoje: “Eu sou a mensagem”, ou “Eu expresso o Todo”, “Eu sou a totalidade cósmica”, “Eu sou o potencial quântico realizado”, “Eu sou a informação ativa”. Isso por que o mensageiro é a mensagem. A mensagem de Jesus é: a realidade é Una e nos abrange a todos, este corpo, da forma como está, é provisório, e há ressurreição; a morte do corpo não encerra a Vida. Essa é uma parte de sua mensagem da Boa Nova, do Evangelho.

A mensagem é no sentido de que a realidade é mais do que as aparências corporais, e obedece a uma Ordem, implicada e Una, a realidade é cósmica, e racional, é Logos, e se manifesta na humanidade, pelo Reino de Deus iniciado por Jesus Cristo. Isso, a realidade cósmica, ordenada, também é o que nos diz a ciência humana, dentro de uma racionalidade limitada, chegando alguns a dizer que existem bilhões de universos, e outros que somos, em nossas vidas, meras simulações de computadores do futuro. E os que falam isso são cientistas sérios. Esse argumento somente reforça a cosmovisão Cristã, do Logos de Deus.

O livro do Apocalipse relata uma guerra céu, que é uma guerra intelectual e espiritual, a qual foi vencida por Miguel, o anjo que é como Deus, pois o intelecto exige todas as razões e a coerência entre elas. O Dragão perdeu a guerra no céu, ou seja, o egoísmo e o individualismo são racionalmente insustentáveis, a inteligência do Dragão perdeu a guerra da Razão, pois esta é coletiva, é o Logos, partindo para a terra, para o reino material da força bruta.

Houve então uma batalha no céu: Miguel e seus Anjos guerrearam contra o Dragão. O Dragão batalhou, juntamente com seus Anjos, mas foi derrotado, e não se encontrou mais um lugar para eles no céu. Foi expulso o grande Dragão, a antiga serpente, o chamado Diabo ou Satanás, sedutor de toda a terra habitada — foi expulso para a terra, e seus Anjos foram expulsos com ele. Ouvi então uma voz forte no céu, proclamando: ‘Agora realizou-se a salvação, o poder e a realeza do nosso Deus, e a autoridade do seu Cristo: porque foi expulso o acusador dos nossos irmãos, aquele que os acusava dia e noite diante do nosso Deus. Eles, porém, o venceram pelo sangue do Cordeiro e pela palavra do seu testemunho, pois desprezaram a própria vida até à morte. Por isso, alegrai-vos, ó céu, e vós que o habitais! Ai da terra e do mar, porque o Diabo desceu para junto de vós cheio de grande furor, sabendo que lhe resta pouco tempo’” (Ap 12, 7-12)

Jesus Cristo é a imagem humana de Miguel. Jesus Cristo é o anjo como Deus, encarnado, o primeiro anjo, que tem em si a imagem da totalidade da criação em criação, o Arcanjo Miguel. A palavra anjo significa mensageiro, e Jesus Cristo é o mensageiro do Deus Único, fala em nome de Deus, o que é a missão do Profeta.

Como anjos, somos mensageiros, e testemunhas, de Deus ou de Satã, dependendo da mensagem que realizamos e transmitimos, dependendo do contexto a que estamos vinculados intimamente, ontologicamente.

Todos os nossos comportamentos expressam significados, enviam mensagens, que podem ou não ser compreendidos, dependendo do contexto do interlocutor, do paradigma simbólico em que o outro está inserido.

Nossos pensamentos, mesmo os mais íntimos, produzem reações químicas no cérebro, e ondas eletromagnéticas que se expandem por todo o cosmos, com ondas variadas, inclusive materialmente, na velocidade da luz, produzindo também ondas gravitacionais, mesmo que ainda não consigamos medi-las.

E é um fato que as ondas eletromagnéticas interferem no comportamento humano, e no corpo humano, existindo radiação que causa câncer, havendo até mesmo pessoas que são alérgicas a ondas eletromagnéticas, e por isso são obrigadas a viver longe das cidades.

Outrossim, importa o que as pessoas pensam e a forma como pensam. É importante, porque o pensamento modifica o mundo, tanto pela ação com base em ideias, como apenas o próprio pensamento, fisicamente, de forma sutil.

Existe, assim, maniqueísmo no mundo, um maniqueísmo ideológico, existem boas e más ideias, corretas e incorretas, com os correspondentes comportamentos bons e maus, coerentes e incoerentes, racionais e irracionais. E a guerra ideológica foi vencida pelo Logos, pela ideia de Deus, que é boa, correta, racional, integral e coerente.

A sabedoria do estulto é como uma casa devastada e a ciência do insensato é um discurso incoerente” (Eclo 21, 18).

Deus é Espírito, e Ideia racional e movimento, que é Forma racional, é Logos, e quando Esse Espírito é realizado, tornado real, encarnado, é o próprio Deus que encarna, como ocorreu em Jesus Cristo.

Jesus Cristo expressa a mensagem do Logos, do pensamento Santo, do Espírito Santo, da Ideia perfeita, que é sutil e que poucos conseguem captar pelo Espírito, porque poucos estão ligados à Totalidade significativa em que Ele vive, pois essa totalidade implica e exige um desapego da individualidade corporal e sensorial, para que seja possível abarcar a coletividade espiritual, para a qual “muitos são chamados, mas poucos escolhidos”, na medida em que poucos escolhem verdadeiramente a Verdade.

Portanto, sempre somos mensageiros, somos anjos, testemunhas, estejamos conscientes disso ou não. E você? É mensageiro do que? De quem? Que forma seu comportamento e seus pensamentos dão ao Universo? Qual a sua mensagem?