O artigo teria originariamente o nome “O problema da indução”, quando me dei conta de que o verdadeiro problema não está na indução, mas na dedução, que já pressupõe a existência de uma lógica, uma unidade, que permita o desenvolvimento argumentativo. Há uma indução prévia, antecedente, em qualquer dedução, podendo-se inferir uma dependência necessária entre indução e dedução.
Essa questão é tão antiga quanto a filosofia, estando associada à ligação entre o uno e o múltiplo, que remete a Heráclito, ao sustentar que não é possível que uma pessoa entre duas vezes no mesmo rio. Portanto, do ponto de vista do eterno fluir, não existiria a possibilidade da indução, porque cada coisa ou evento seria único, impedindo a formulação de uma definição universal. Mas na indagação em si já existe a ideia pressuposta de que haveria a possibilidade de identificar, ou não, uma unidade subjetiva, da pessoa, e/ou objetiva, do rio.
Desse modo, a situação é muito mais complexa, porque o mero conhecer já implica uma totalidade ou unidade subjacente entre o conhecedor e o conhecido, ainda que não percebida pelo conhecedor, o que, pode-se dizer, é a regra.
O problema da indução é, desse modo, o problema filosófico primordial do retorno ao uno, ao todo, que é necessário e pressuposto em qualquer conhecimento com pretensão de racionalidade, com plena aplicação para a pesquisa científica. Esse é um tema tanto psicológico quanto físico, na medida em que partimos do uno, da unidade física e psíquica/espiritual, não percebida e inconsciente, respectivamente, para adquirir uma individualidade corporal e mental, por meio da qual experimentamos o mundo, com as coisas aparentemente separadas. O trabalho filosófico e científico, nesse sentido, é restabelecer a unidade, demonstrá-la, experimentá-la.
A dedução só é possível porque existe uma prévia indução, que está na manutenção ou continuidade das premissas, pois se as premissas não fossem unívocas, não fossem universais, se não houvesse nelas uma unidade definida, uma totalidade antecedente, a dedução não seria possível.
Essa unidade decorre do princípio filosófico fundamental, sem o qual veda-se a prática da própria filosofia, e da atividade científica, que é o princípio da não-contradição, válido para toda e qualquer forma de ciência, exigindo algum modo pelo qual os eventuais paradoxos sejam superados, através da postulação de uma unidade superior em que são dissolvidas as possíveis contradições. O princípio da não-contradição significa que a Filosofia é a disciplina científica fundamental, antecedendo as chamadas ciências da natureza, que inclui a Física, e até mesmo a Matemática, como exposto no artigo “Hierarquia das Ciências” (https://holonomia.com/2019/02/06/hierarquia-das-ciencias/).
Sem uma unidade universal não é possível o conhecimento, que é deduzido daquela universalidade, e por isso os pré-socráticos buscaram a unidade nos elementos da natureza, tendo os materialistas, a partir de Demócrito e Epicuro, sustentado a unidade baseada os átomos, enquanto Platão, por seu lado, defendia a unidade ideal, o mundo das ideias. Assim, o princípio da não-contradição decorria do postulado fundamental, dependendo da linha adotada: tudo é água; tudo é fogo; tudo é ar; tudo é terra; tudo é átomo; tudo é ideia. Em sendo tudo uma coisa só, afastada está a possibilidade de contradição.
Desta feita, a Filosofia tem como foco a unidade, baseia-se em uma indução pressuposta, que é exatamente aquela unidade que permite o desenvolvimento da lógica dedutiva. Toda dedução exige, pois, para sua possibilidade lógica, uma igualdade comparativa antecedente, isto é, uma indução posta ou pressuposta.
Todo conhecimento precisa de algo para servir como seu fundamento, sem o qual o próprio conhecimento não seria possível. É preciso existir um enunciado básico que possa ser desdobrado racionalmente, e essa possibilidade de desdobramento tem em si, como necessária, a manutenção de uma mesma racionalidade no desenvolvimento lógico dessa dobradiça, uma unidade intrínseca ou universalidade. Sem a pressuposição da universalidade, de algo que seja intercambiável com tudo mais, ou para o qual tudo possa convergir, servindo de parâmetro fundamental de comparação, permitindo a conversão ou tradução de conceitos, ideias, sensações etc., não haveria linguagem, comunicação ou ciência, não existiria dedução.
Se cada coisa, evento, sensação, ideia, se fenômenos em geral fossem total e absolutamente únicos o conhecimento seria impossível.
Por isso, toda ciência é baseada em uma dedução decorrente de uma prévia indução, uma indução permanentemente provisória, porque a indução definitiva depende da comunhão universal, da consciência individual coletiva da unidade física e psíquica/espiritual. A ciência se desenvolve pressupondo a unidade, pela indução permanentemente provisória, a partir da qual são buscadas as unidades individuais, de forma dedutiva, até que as individualidades básicas sejam determinadas, em termos materiais e conceituais, em todos os fenômenos possíveis, na multiplicidade absoluta, para, então, retornar, àquela indução, por meio da definição das leis universais, à unidade primordial, em que o uno e o múltiplo voltam a ser um só, confirmando a indução de partida e/ou reformulando-a, pela incorporação das informações obtidas, num processo cada vez mais complexo e sutil.
Pela dificuldade absurda de se alcançar a unidade primordial com seu significado inteligente, o que é uma questão Metafísica, a ciência passou a negar essa realidade e essa possibilidade, tachando-a de não-científica e passando a focar em apenas alguns de seus aspectos, aqueles formais que podem ser medidos de forma relativamente objetiva. O limite dessa empreitada é a relatividade, pela qual até a objetividade espaço-temporal passou a depender da posição do sujeito, de modo que a verdadeira objetividade incluiria uma unidade subjetiva, que não está presente na referida teoria, da qual o sujeito está excluído, tema este a ser deixado para outro texto.
O movimento científico se desenvolve, outrossim, em dois polos, o da igualdade e o da diferença, o primeiro estabelecendo a unidade indutiva que forma as bases para o aprofundamento do conhecimento das diferenças, até que seja necessário o restabelecimento da unidade, em uma nova perspectiva de totalidade, que é exatamente o momento pelo qual estamos passando, especialmente desde meados do século XX, ainda que isso faça parte permanente da atividade intelectual humana, como ocorreu com os pré-socráticos.
O lado psíquico/espiritual da indução se refere à sua permanência, que transcende ou está além da provisoriedade do fluir material, considerando que a unidade inteligente é constante e perpassa a variedade dos experimentos sensoriais provisórios. Sem a unidade espiritual antecedente não é possível a unidade subsequente, que ocorre a despeito da multiplicidade dos fenômenos únicos e individuais deduzidos daquela unidade, os quais se reúnem indutivamente para o restabelecimento daquela unidade por meio das leis universais, agora da perspectiva de uma multiplicidade, a qual é sempre crescente, em virtude da especialização do conhecimento, exigindo a permanente reformulação indutiva da unidade, cada vez mas ampla, e sempre retroagindo mais na escala temporal, com a intenção de alcançar a atemporalidade entre a unidade primordial e aquela atual e mais desenvolvida, o que é sustentado pela relatividade einsteniana apenas materialmente.
Em termos humanos, e para além da mera materialidade, esse é o significado mais profundo do Cristianismo, da expressão “eu e o Pai somos um”, o que nós devemos também buscar, conforme oração de Jesus em João 17, que pressupõe a correta teoria da unidade, incluída no Monoteísmo, e a prática ou ação individual segundo essa unidade, pelo que é chamado Espírito Santo.
Pode-se dizer, nesse ponto, que o pecado contra o Espírito Santo, que não será perdoado, é exatamente o pecado contra a unidade fundamental, pois sem essa unidade não há pertencimento, e a rejeição prévia a algum pertencimento impede a participação na comunhão, especialmente a comunhão com Deus, com o Logos, e, no caso da Ciência, com a lógica, com a razão, com a racionalidade. O pecado contra o Espírito Santo é o pecado contra a unidade, e se a pessoa não aceitar a unidade não poderá dela participar, e por isso o pecado contra o Espírito não é perdoado, porque a persistência nesse pecado impede, enquanto durar a situação de pecado, a comunhão com Deus.
No âmbito científico, do mesmo modo, somente é possível falar em Ciência caso seja aceita alguma forma de racionalidade, e quanto maiores a racionalidade, a integridade e a coerência do pensamento científico, maior sua unidade e aproximação com o Logos.
Na Filosofia da Ciência, a testabilidade ou verificabilicade de Popper exige algo que possa testar ou verificar, que é a unidade decorrente da indução permanentemente provisória, pois sem uma régua básica a verificação ou teste não poderia ocorrer. Todavia, Popper não trabalha com essa hipótese.
“De fato, se existisse algo assim como um princípio puramente lógico da indução, não haveria problema de indução, pois, em tal caso, todas as inferências indutivas teriam de ser encaradas como transformações puramente lógicas ou tautológicas, exatamente como as inferências no campo da Lógica Dedutiva” (Karl Raimund Popper. A lógica da pesquisa científica. Tradução Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. 2 ed. São Paulo: Cultrix, 2013, p. 28).
Portanto, existe o princípio puramente lógico da indução, que é o princípio da não contradição, exigindo que as inferências indutivas, na atividade científica, sejam, em algum aspecto, sempre circulares, ou tautológicas, o que vale das equações matemáticas, que suportam os cálculos físicos, ainda que estes sejam completados por meio de constantes, exatamente para a manutenção da lógica pretendida, até o chamado círculo hermenêutico, que somente se completa como círculo efetivo na atividade mental Cristã, na unidade do Logos, conclusão à qual Heidegger não conseguiu chegar, e por isso não concluiu sua obra filosófica, por faltar Cristo em seu projeto filosófico, como unidade essencial, que transcende o corpo e a morte, como a categoria fundamental do conhecimento.
A atividade científica, outrossim, somente é possível pelo Caminho, ou Método, que é Cristo, que fez de si o instrumento lógico pelo qual o Logos pôde se realizar e encarnar na humanidade, tornando real a unidade cósmica da qual depende toda e qualquer dedução, enfim, que condiciona racionalmente a mínima empreitada científica.
Prezado Holonomia
Respeito muito suas ideias, mas não concordo com tudo. Saudações, caríssimo.
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