Fundamento da ciência moderna

O tema do fundamento da ciência moderna é da maior importância para a racionalidade do conhecimento, e os que não se deram conta dessa situação continuam presos à mentalidade científica do século XIX, quando as descobertas da física moderna ainda não tinham abalado completamente as bases intelectuais da civilização ocidental.

Volto, assim, a rememorar falas de grandes especialistas em suas áreas do conhecimento, apenas para reforçar a necessidade de se pensar a racionalidade, ou irracionalidade, das teorias científicas que suportam as nossas instituições, acadêmicas, políticas, jurídicas e religiosas.

Inicialmente, vale repetir o que já constou no artigo Cosmos e transcendência (https://holonomia.com/2019/07/12/cosmos-e-transcendencia/), referente à derrocada do dualismo cartesiano mente-corpo, o qual decorreu da ideia pela qual o universo extenso pode ser descrito em termos mecânicos, com leis que regulam o movimento da res extensa, ou matéria, no espaço.

Todo o resto fica relegado a res cogitans, ou substância pensante, que existe por si só como uma espécie de entidade espiritual. É digno de nota que a res cogitans surge a Descartes logo no início das suas meditações como a uniquíssima certeza imediata – o famoso cogito ergo sum –, ao passo que a existência do universo mecânico, âmbito externo à res cogitans, é alcançada só depois por meio de um argumento lógico construído sobre a ideia de Deus e Sua veracidade. É mesmo uma ironia assinalável que a premissa básica do materialismo moderno se tenha fundado sobre a teologia!” (Wolfgang Smith. Cosmos e transcendência: rompendo a barreira da crença cientificista p. 39).

Para mostrar o acerto da tese acima, alguém insuspeito pode ser citado, reconhecendo que a Ciência tem Deus como seu alicerce, inclusive confirmando uma ideia do artigo anterior, “O problema da dedução”, segundo a qual há necessidade de uma prévia indução em todo conhecimento científico, uma pressuposição inicial, ou fé, o que foi reconhecido por Nietzsche, no final de “Genealogia da moral”:

Não existe, a rigor, uma ciência ‘sem pressupostos’, o pensamento de uma tal ciência é impensável, paralógico: deve haver antes uma filosofia, uma ‘fé’, para que a ciência dela extraia uma direção, um sentido, um limite, um método, um direito à existência. (Quem entende o contrário, quem, por exemplo, se dispõe a colocar a filosofia ‘sobre base estritamente científica’, precisa antes colocar não só a filosofia, mas também a verdade de cabeça para baixo: a pior ofensa ao decoro que se poderia cometer com duas damas tão respeitáveis!) Sim, não há dúvida — e aqui deixo falar a minha Gaia ciência, cf. seu livro quinto, seção 344 — ‘o homem veraz, naquele ousado e derradeiro sentido que a fé na ciência pressupõe, afirma um outro mundo que não o da vida, da natureza e da história; e na medida em que afirma esse ‘outro mundo’, como? ele não deve assim negar o seu oposto, este mundo, nosso mundo?… É ainda uma fé metafísica, aquela sobre a qual repousa a nossa fé na ciência — e nós, homens do conhecimento de hoje, nós, ateus e antimetafísicos, também nós tiramos ainda nossa flama daquele fogo que uma fé milenar acendeu, aquela crença cristã, que era também de Platão, de que Deus é a verdade, de que a verdade é divina… Mas como, se precisamente isto se torna cada vez mais incrível, se nada mais se revela divino, exceto o erro, a cegueira, a mentira — se Deus mesmo se revela como nossa mais longa mentira?’ — Neste ponto é necessário parar e refletir longamente. A própria ciência requer doravante uma justificação (com isto não se quer dizer que exista uma tal justificação). Considere-se, quanto a isso, os mais antigos e os mais novos filósofos: em todos eles falta a consciência do quanto a vontade de verdade mesma requer primeiro uma justificação, nisto há uma lacuna em cada filosofia — por que isso? Porque o ideal ascético foi até agora senhor de toda filosofia, porque a verdade foi entronizada como Ser, como Deus, como instância suprema, porque a verdade não podia em absoluto ser um problema. Compreende-se este ‘podia’? — A partir do momento em que a fé no Deus do ideal ascético é negada, passa a existir um novo problema: o problema do valor da verdade. — A vontade de verdade requer uma crítica — com isso determinamos nossa tarefa —, o valor da verdade será experimentalmente posto em questão…” (Friedrich Nietzsche. Genealogia da moral. Terceira dissertação, capítulo 24, versão eletrônica).

O que Nietzsche não poderia prever é que a base materialista da Ciência, seja em relação ao átomo, seja em relação ao mecanicismo pós-cartesiano do século XIX, no qual a Física já não se pretendia metafísica, acabou por ruir, deixando a Física sem seus alicerces, que foram remetidos para uma esfera com algum nível de transcendência, para alguma forma de Metafísica, tornando impossível qualquer realização científica antimetafísica e ateia.

Isso nos leva, enfim, à conclusão aparentemente paradoxal de que a cosmovisão associada à mais exata das ciências está inçada de equívocos fundamentais. Segue fugindo ao entendimento convencional que a Weltanschauung pretensamente científica se baseia não em legítimas descobertas da ciência, mas em pressupostos filosóficos ocultos que se revelam em última análise autocontraditórios. Em nome da física, a civilização sucumbiu à fantasia” (Wolfgang Smith. Cosmos e transcendência: rompendo a barreira da crença cientificista, p. 57).

Como ressaltado no começo do artigo, o que Smith destaca é exatamente que “segue fugindo ao entendimento convencional que a Cosmovisão pretensamente científica se baseia não em legítimas descobertas da ciência, mas em pressupostos filosóficos ocultos que se revelam em última análise autocontraditórios”, sendo indispensável superar o pensamento cartesiano, para construção de uma nova Metafísica, que seja adequada à realidade. Daí o porquê da afirmação inicial: “os que não se deram conta dessa situação continuam presos à mentalidade científica do século XIX”, em que predominou a rejeição da Metafísica no âmbito científico.

Finalmente, pela autoridade intelectual do autor do texto, volto a transcrevê-lo:

Independentemente da decisão última, podemos mesmo afirmar agora que a resposta final (sobre a equação fundamental da matéria) estará mais próxima dos conceitos filosóficos expressos, por exemplo, no Timeu de Platão do que dos antigos materialistas. Tal fato não deve ser mal compreendido como um desejo de rejeitar de maneira muito leviana as ideias do moderno materialismo do século XIX, o qual, uma vez que pôde trabalhar com toda a ciência natural dos séculos XVII e XVIII, abarcou um conhecimento muito importante de que carecia a antiga filosofia natural. Não obstante, é inegável que as partículas elementares da física de hoje se ligam mais intimamente aos corpos platônicos do que aos átomos de Demócrito. (…) E, desde que a estrutura matemática é, em última análise, um conteúdo intelectual, poderemos afirmar, usando as palavras de Goethe no Fausto, ‘No princípio era a palavra’ – o logos. Conhecer este logos em todas as suas particularidades, e com total clareza em relação à estrutura fundamental da matéria, constitui a tarefa da física atômica de hoje e de seu aparelhamento infelizmente muitas vezes complicado” (Werner Heisenberg. In Problemas da Física Moderna, 3 ed., São Paulo: Perspectiva, 2011, pp. 26-27).

O Logos é um termo grego que foi traduzido como “palavra” por Goethe, o qual, entretanto, faz uma referência inequívoca ao quarto Evangelho, atribuído, tradicionalmente, a João: “No princípio era o logos (verbo, palavra, discurso, razão), e o logos estava com Deus, e Deus era o logos. Este no princípio estava com Deus. Todas as coisas existiram por ação dele e sem ele existiu nem uma só coisa que existiu” (Jo 1, 1-3). A rejeição da Metafísica e da Teologia são o possível motivo de Heisenberg não ter mencionado diretamente a Bíblia em seu escrito.

Em certo sentido, portanto, pelo entendimento de Heisenberg, pela parte final da passagem acima, conhecer o Logos, ou Deus, a inteligência que precede a matéria, e faz com que todas as coisas materiais existam, constitui a tarefa da física atômica de hoje, o que se aplica à Ciência, como um todo, mostrando que o argumento ateísta de Nietzsche está datado, superado, restando aos materialistas nada menos do que uma nova espécie de Metafísica, como uma nova religião na busca de seu deus, para tentar fundar o conhecimento científico.

Um comentário sobre “Fundamento da ciência moderna

  1. Prezado Holonomia

    O seu artigo tem profundidade.
    1) Começando por Demócrito.
    Do ponto de vista estático : na minha singela opinião, a Física moderna não invalidou Demócrito por uma razão muito simples. Suponhamos o seguinte diálogo entre Demócrito e um físico moderno. “Demócrito, nossos aparelhos mostraram que o átomo não é indivisível, pois ele se divide em prótons, elétrons e nêutrons” (Demóctio responde) “E eu com isso ?” “Eu disse que o átomo é indivisível. Não sei que língua você fala, mas, em grego, átomo, repito á-tomo, significa aquilo que não tem divisão” “Isso que você diz que se divide em prótons, elétrons e nêutrons não é o átomo, pelo menos não em grego”.
    Do ponto de vista dinâmico : Salvo engano meu, Demócrito considerava o átomo uma estrutura estática (intrínsecamente) que se movimentava no espaço vazio. No entanto, se considerasse que o átomo tem movimento própro mesmo “parado”, talvez o seu conceito de indivisibilidade fosse diferente.
    2) O fundamento da Ciência – concordo plenamente que o fundamento da Ciência está na verdade e na realidade.
    3) Verdade e realidade – estou com um problema difícil de resolver racionalmente, poderia me ajudar a pensar, prezado Holonomia ?
    Tomemos a situação atual na sociedade brasileira em seus diversos aspectos : políticos, econômicos, criminalidade, comunicação, etc.
    Na esfera política e jurídica, a meu ver, chegamos intelectualmente ao absurdo e comicamente (humor negro) vivenciamos esse absurdo diuturnamente. E quando analisamos criticamente a realidade atual e nossa atuação em cada grupo social, resulta a famosa “Divina Comédia humana, onde nada é eterno” como muito bem dizia Belchior nos anos setenta.
    A questão é – cada grupo social está atuando com uma intensidade inédita para fazer valer seus pontos de vista. Muitos analisam esse fenômeno, reduzindo à fórmula do “FlaxFlu” seja na Política, seja na Economia, seja na Justiça e outros setores.
    O problema é justamente o problema da verdade que torna a realidade assim vivenciada uma “comédia humana de humor negro”. Por exemplo, o “FlaxFlu” entre “garantistas” e “punitivistas” vem sendo ridicularizado por alguma força invisível, da qual ainda não se sabe a origem. mas cujo propósito induz a considerar que seja obrigar os atores dessa comédia a encarar a verdade e “confessá-la” por absoluta falta de alternativas empíricas.
    Explicitando melhor – Os “garantistas” apoiam publicamente os Ministros do STF quando a sua maioria reconhece a predominância de uma garantia constitucional, por exemplo, para anular processos já julgados até em duas ou três instâncias, voltando à alegações finais, para que, ao contrário do disposto pela lei processual, o réu delatado fale depois das alegações finais do réu delator. “Viva a garantia constitucional!”. Essa mesma turma não “abre o bico”, “não dá um pio” e finge que nunca ouviu falar do assunto quando dois Ministros do STF instauram um inquérito por conta própria, investigam pessoas sem dizerem qual o propósito da investigação, muito menos apresentam os elementos ou indícios que justifiquem a investigação. Ninguém tem acesso aos “autos” (MP, Polícia, Advogados, Investigados).
    Já os “punitivistas”, desde sempre, justificaram suas posições na verdade e na realidade, isto é, “se o crime evidentemente ocorreu e o réu é evidentemente culpado, nulidades processuais evidentemente devem demonstrar o prejuízo”. É quase imbatível. Até que vazam conversas entre os integrantes da Lava Jato que mostram que aquele pessoal ficou deslumbrado com o poder dos políticos, com os milhões que circulam na política, com a celebridade na mídia e começaram a agir também para a satisfação de interesses pessoais. Os “punitivistas”, então, silenciam, fazem de conta que não é com eles. Alguns lembraram de dizer para os “garantistas” que os vazamentos são provas ilícitas.
    Essa é a Ciência do Direito na terra de Belchior.
    Voltando à verdade e à realidade, como ficamos ?

    Curtir

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s