Categorias e fenômenos

A investigação científica, o conhecimento, em geral, depende de categorias, pelas quais os fenômenos são apreendidos intelectualmente, de modo que a compreensão dos eventos é condicionada pelas categorias por meio das quais os filtramos, medimos ou experimentamos.

Por isso, em certo sentido, nós observamos as categorias, isto é, as categorias são os fenômenos com que nosso intelecto trabalha. Nesse ponto, existem as categorias sensoriais, que podem ser correlacionadas aos sentidos, visão, paladar, olfato, tato e audição, com suas subdivisões em cores, formas, gostos, cheiros, superfícies, frequências, timbres etc, que decorrem das diferenças específicas dessas respectivas qualidades. Essas mesmas categorias são, simultaneamente, inteligentes, correspondentes às formas com que trabalhamos intelectualmente, diferenciando racionalmente tanto as sensações como as relações lógicas entre elas. Vale dizer que é possível, por meio das categorias racionais, entender como as categorias sensoriais podem ser enganosas, como podemos ser ludibriados por nossos sentidos.

Com razão, portanto, Aristóteles, ao usar os conceitos de matéria (hylé) e forma (morphe), porque mesmo nas questões sensoriais a forma está essencialmente presente, condicionando a correta compreensão do mundo, pelo que o paradigma hilomórfico, em que atuam os dois princípios interligados, matéria e forma, está presente na base da cognição.

Contudo, a mentalidade ocidental ainda sofre os efeitos das categorias cartesianas, as quais, por sua vez, têm forte influência teológica, pela adoção de um dualismo platônico que foi incorporado em uma concepção do Cristianismo consolidada nos séculos IV e V, quanto ao significado da encarnação do Logos. Tal concepção entende que o Reino de Deus não é deste mundo e que houve a encarnação do Logos em Jesus, na medida em que este integra a trindade, a divindade triúna, havendo uma separação ontológica entre o mundo divino e o humano, sendo Jesus também ontologicamente diferente de nós, ele, ao contrário de nós, é uma das pessoas do Deus trino.

Na história posterior, um dos efeitos dessa posição teológica é o próprio dualismo cartesiano, de um lado, o que vale para a atual hiperfísica matemática, de outro, em que a realidade é transformada em estatísticas, probabilidades, incluindo outras dimensões e universos, que estão presentes apenas na mente dos respectivos cientistas, como ideia, como razão abstrata, sem necessária correspondência material.

Caso tal realidade seja efetivamente existente, ela se manifestará em algum momento na história científica, ou encarnará no tempo e no espaço.

A encarnação, nesse ponto, é a categoria científica fundamental, a verificação da correspondência entre ideia e realidade, entre forma e matéria.

O conceito científico de encarnação está teologicamente narrada no quarto Evangelho, que descreve o Logos, o Verbo, como a mais elevada categoria existencial, associada a Deus, que é a categoria da unidade que estava no princípio e continua presente na criação, em todas as coisas, é o uno no múltiplo, ainda que em certo sentido transcendente, pois além de todas as coisas, além dos corpos humanos, tendo esse Logos iniciado sua habitação na humanidade em Jesus, O Cristo, mas que já existia como conceito nos profetas do antigo testamento e mesmo na teoria platônica das ideias.

E o verbo fez-se carne e habitou em (entre) nós; e contemplamos a sua glória – glória enquanto [filho] unigênito do Pai, pleno de graça e de verdade” (Jo 1, 14).

Quanto à tradução do versículo transcrito, vale notar que: “no v. 14 de João, a expressão ‘entre nós’ é literalmente ‘em nós’ (em hêmîn)” (Novo Testamento: os quatro Evangelhos. Tradução e notas de Frederico Lourenço. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 324).

Portanto, sem descartar a divindade de Jesus, a ideia de encarnação do Logos pode levar a um novo entendimento de paradigma hilomórfico, dentro da concepção monoteísta de mundo, no sentido de que a encarnação do Logos ocorreu em nós, na humanidade, e não meramente entre nós, algo estranho que ocorreu no ambiente humano.

O texto bíblico está repleto de citações da presença de Deus na criação, um amplo hilomorfismo, valendo citar especialmente o Novo Testamento, pelos Atos e pelas Epístolas atribuídas aos apóstolos Paulo e Pedro:

Tudo isto para que procurassem a divindade e, mesmo se às apalpadelas, se esforçassem por encontrá-la, embora não esteja longe de cada um de nós. Pois nele vivemos, nos movemos e existimos, como alguns dos vossos, aliás, já disseram: ‘Porque somos também de sua raça’. Ora, se nós somos de raça divina, não podemos pensar que a divindade seja semelhante ao ouro, à prata, ou à pedra, a uma escultura da arte e engenho humanos” (At 17, 27-29).

Outrossim, somos seres espirituais, e podemos nos mover segundo o Espírito, para sermos conscientemente da raça divina, da raça de Deus. Pela ciência, nos movemos em campos quânticos e gravitacionais presentes em todo o cosmos, em que vivemos, nos movemos e existimos, cuja origem é transcendente, está além do espaço-tempo.

Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que está em vós e que recebestes de Deus? … e que, portanto, não pertenceis a vós mesmos? Alguém pagou alto preço pelo vosso resgate, glorificai, portanto, a Deus em vosso corpo” (1Cor 6, 19-20).

Esta última passagem faz a clara união entre aspectos espirituais e corporais, mostrando a possibilidade de glorificar a Deus, uma ação do Espírito, no próprio corpo, para que este manifeste, como ocorreu com Jesus, a realidade divina, a unidade cósmica, presente dentro de nós.

Do mesmo modo, também vós, como pedras vivas, constitui-vos em um edifício espiritual, dedicai-vos a um sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus por Jesus Cristo” (1Pe 2, 5).

Pois que o seu divino poder nos deu todas as condições necessárias para a vida e para a piedade, mediante o conhecimento daquele que nos chamou pela sua própria glória e virtude. Por elas nos foram dadas as preciosas e grandíssimas promessas, a fim de que assim vos tornásseis participantes da natureza divina, depois de vos libertardes da corrupção que prevalece no mundo como resultado da concupiscência.” (Pe 1, 3-4).

O chamado para participação na natureza divina, outrossim, inclui o corpo, para o desenvolvimento da encarnação do Logos, iniciada em Jesus, entre nós, para nós e em nós, individual e coletivamente, também na sociedade, na política, para realização, encarnação, do Reino de Deus.

Portanto, não há espírito completamente destituído de corpo ou corpo totalmente sem ação espiritual, na medida em que todo corpo encarna algum princípio de movimento, algum espírito, e todo espírito, na medida em que concebido, exerce influência corporal, seja para sua efetiva realização, ou por meio de reação para impedir seu desenvolvimento, caso a respectiva ideia não seja sustentável, não seja coletivamente compartilhável.

Desta feita, é preciso superar as categorias cartesianas, transcendendo a individualidade dessas categorias, para termos acesso às coisas em si, que são as coisas no contexto da totalidade, da unidade, do Logos, ainda que parcialmente, para permitir que, no futuro, experimentemos essa totalidade face a face, como Reino de Deus, como Justiça (social), e como Ciência.

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