A Palavra de Deus e a guerra de narrativas

Começo pela guerra de narrativas, destacando, de plano, que concordo com Luiz Felipe Pondé ao falar sobre o filme “A Primeira Tentação De Cristo”, do grupo Porta dos Fundos, aduzindo que “o objetivo do grupo é, de fato, escrachar com o Cristianismo, e movido por uma questão ideológica, é evidente, que é uma tendência da esquerda desde os anos 60, que é achar que você deve atacar alvos culturais, alvos de hábitos de comportamentos. É uma tendência da esquerda, já que ela perdeu em tudo: perdeu na política, porque produziu ditaduras; perdeu na economia, porque produziu países quebrados; então restou a ela fazer essa briguinha cultural, essa guerra cultural. Essa discussão ao redor do filme ‘A Primeira Tentação De Cristo’ é um caso de guerra cultural”. Ao final ele indaga “a pergunta que não quer calar é se o grupo teria coragem de fazer uma versão em que o Maomé é gay. Por quê? Porque os muçulmanos normalmente costumam responder de forma mais contundente, e a moçadinha do Leblon que fez o filme provavelmente ia fazer xixi nas calças” (https://www.youtube.com/watch?v=6Zeab_YOHDE).

A narrativa é essencial para a vida humana, porque, na criação, somos os principais seres comunicacionais, e o episódio citado destaca a importância da simbologia abstrata em nossa sociedade, remetendo a significados que escapam ao plano meramente sensível e superficialmente imanante da realidade, isto é, apontam para uma realidade em si, imanente e transcendente, para o mundo das ideias, origem da cultura.

A cultura é o resultado da ação humana baseada em ideias, é o produto de pensamentos que moldam a forma como interagimos com o mundo a nossa volta, de modo que quanto mais culta a pessoa maior o seu âmbito racional de interação intelectual com eventos cada vez mais distantes de seu ambiente mais próximo, que tem início em seu corpo, passando pelas relações imediatas com os indivíduos, os animais e as coisas ao seu redor, e, então, pelos grupos familiares, locais, regionais e nacionais, até o ponto mais amplo possível de significação existencial, que são as cosmovisões. A racionalidade da interação, por sua vez, varia de acordo com o princípio a partir do qual a própria interação ocorre, que pode ter ênfase no aspecto material ou corporal da relação, ou pode destacar ligação mais ampla, de tipo ideal ou espiritual, entre os fenômenos da natureza.

Deve-se dizer, destarte, que a visão cultural é dependente de uma cosmovisão, sendo a ela indissoluvelmente atrelada, pelo que a chamada guerra cultural também pode ser definida como embate entre distintas cosmovisões, ou entendimentos culturais, da realidade, sobre o significado do mundo, da história e das próprias ações humanas, das aparentemente mais irrelevantes, como um simples ajeitar os cabelos, até aquelas com maior repercussão para a vida alheia, como um homicídio.

Assim, a grande diferença entre as principais narrativas culturais, ou cosmovisões, está existência ou não de sentido na história: se há um curso imanente aos acontecimentos, associado a uma ordem de mundo que definiu tudo o que já aconteceu e que ainda se realizará no plano histórico: ou se o mundo é regido pela simples aleatoriedade, especialmente no que diz respeito à história humana, na qual as narrativas são associadas a valores, pelos quais os eventos históricos são julgados positiva ou negativamente.

A principal cosmovisão ocidental está atrelada à vida de Jesus, O Cristo, que consuma o ideário monoteísta do povo judeu, pelo que o filme mencionado, de fato, questiona as bases sobre as quais o Ocidente foi moldado, negando-as. Enquanto o Cristianismo se baseia em uma cosmovisão dita espiritual da realidade, os produtores do folhetim audiovisual se alinham ao ideário materialista, negando qualquer verdade ao Cristianismo, sendo que os adeptos mais fervorosos da vertente contrária às ideias de Cristo chamam-nas de alucinação coletiva ou manipulação das massas.

De minha parte, entendo que o Cristianismo é A Narrativa da Verdade, e, enquanto verdade, Absoluta, válida para todos os tempos e lugares, para toda a História humana e cósmica, porque significa a própria humanidade, de sua formação ao seu destino, o que vale tanto para as almas humanas quanto para os conflitos sociopolíticos internacionais.

Portanto, assumo a Bíblia como A Palavra de Deus, mas não na versão tradicional desse entendimento, porque vejo na Bíblia o resultado da interação direta entre o Criador e a criatura, por meio de pessoas e fatos históricos reais, sendo os livros sagrados o testemunho humano fiel e de boa-fé dessa interação. Nesse sentido, da mesma forma como ocorre em um processo judicial, em que são ouvidas testemunhas sobre os fatos em julgamento, a Bíblia é como uma reunião desses testemunhos, narra as palavras de pessoas comprometidas com a verdade e que presenciaram determinados eventos fundamentais para o desenvolvimento da história humana, ou que deles tiveram ciência através de outras pessoas também comprometidas com a verdade.

Tal situação também ocorreu com outras pessoas, como Buda ou outros avatares que se relacionaram com o mundo numinoso. Tais interações, contudo, referem-se a eventos paralelos à história mundial, diferentemente do Cristianismo, que diz respeito ao sentido da história social e política da humanidade, porque Jesus é o Rei dos Reis, expressando a forma mais sublime de exercício de poder político, e também sacerdotal. Não é à toa que apenas no ocidente existem direitos humanos, que são o resultado jurídico da ação dos profetas, começando com Abraão.

Nesse sentido, algumas pessoas especiais, chamadas profetas, tiveram experiências numinosas, fizeram contato mental ou corporal com outro nível de realidade, e relataram tais acontecimentos, com suas próprias palavras, as quais vieram a se tornar A Palavra de Deus, devendo ser ressaltado que os profetas nem sempre conseguiam entender, explicar ou narrar aquilo pelo que tinham passado, até por ausência de termos linguísticos adequados que pudessem definir o ocorrido, sendo tais eventos posteriormente compilados em textos pelas próprias pessoas que os viveram ou, posteriormente, por algum seguidor que creu no testemunho recebido e, então, o replicou.

Essa é a história do Cristianismo, do Monoteísmo, que contém, em si, uma narrativa sobre a história da humanidade, que está associada, outrossim, à respectiva cosmovisão de mundo, bem como a entendimentos sobre a verdade científica, sobre moralidade e sobre questões políticas e sociais, com pretensão de unidade racional.

Contudo, falta aos cristãos a compreensão do quanto falham com o Cristianismo quando rompem com a unidade racional de sua cosmovisão, em temas sensíveis, como o aborto e o tema do vídeo, que foram banalizados por força da “questão ideológica” aludida por Pondé, conseguindo os materialistas, por sua influência cultural, que muitas pessoas que se chamam cristãs ficassem anestesiadas com os seus constantes ataques, tornando-se mornos, sem a contundência dos muçulmanos, ainda que não seja necessária violência física para expressar tal firmeza de posição, por exemplo, não assistindo ao filme, para que não seja contabilizada audiência, e, mesmo assim, avaliando-o negativamente.

Tal posição manca, frouxa, é repudiada pelo Princípio da criação de Deus:

Ao Anjo da Igreja em Laodicéia, escreve: Assim fala o Amém, a Testemunha fiel e verdadeira, o Princípio da criação de Deus. Conheço tua conduta: não és frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente! Assim, porque és morno, nem frio nem quente, estou para te vomitar de minha boca. Pois dizes: sou rico, enriqueci-me e de nada mais preciso. Não sabes, porém, que és tu o infeliz: miserável, pobre, cego e nu! Aconselho-te a comprar de mim ouro purificado no fogo para que enriqueças, vestes brancas para que te cubras e não apareça a vergonha da tua nudez, e um colírio para que unjas teus olhos e possas enxergar. Quanto a mim, repreendo e educo todos aqueles que amo. Recobra, pois, o fervor e converte-te! Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo. Ao vencedor concederei sentar-se comigo no meu trono, assim como eu também venci e estou sentado com meu Pai em seu trono. Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às Igrejas” (Ap 3, 14-22).

Que o período de Natal e o Ano Novo, portanto, sirvam para que os cristãos recobrem o fervor e se convertam, para que voltem a enxergar e vençam o mundo, para que vençam a mentira do materialismo, possam sentar-se no trono de Deus e, enfim, reinar com Cristo perante as nações, porque o Natal aponta para a tortura e crucificação do inocente, sua ressurreição e o mundo futuro, quase atual, de justiça nas relações humanas e políticas internacionais, e, finalmente, escatológico, quando “nunca mais haverá morte, nem luto, nem clamor, e nem dor haverá mais”! (Ap 21, 4).

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