Cristianismo como Filosofia

Filosofia é Ciência que conecta intelectualmente os fenômenos materiais e espirituais, as questões do corpo e as da alma, e daí serem fundamentais tanto os temas físicos como os psíquicos para uma forma adequada de se pensar filosoficamente.

Os últimos séculos mostraram um crescente desprestígio das questões espirituais na abordagem filosófica, culminando no século XX, no qual passou a existir o pensamento chamado filosófico que desconsidera as questões espirituais, tidas como indignas de abordagem científica, porque entendidas como epifenômenos da atividade material cerebral.

Contribuiu muito para o abandono parcial do pensamento da alma como uma realidade superior o trabalho desenvolvido por Freud, superestimado pela intelectualidade que o sucedeu, urgindo a correção da mentalidade científica para superar a unilateralidade e o materialismo que dominaram o entendimento científico do século XX e início do século XXI.

Assim, continuando a linha do artigo anterior, vale citar o texto de Jung escrito como obituário de Sigmund Freud, no qual este é reconhecido como uma das grandes inteligências do final do século XIX e início do século XX, narrando Jung que o modo de pensar do falecido abarcou quase todos os níveis do debate intelectual, porque “tocou em tudo onde a alma humana tinha primazia”, da psicopatologia à filosofia da religião, passando por filosofia, estética, etnologia e, obviamente, a psicologia.

“Por conseguinte, tudo o que de um modo válido, ou aparentemente válido, for descoberto sobre a essência da alma, atrai para o seu território, automática e infalivelmente, o conjunto todo das ciências do espírito” (Carl Gustav Jung. Sigmund Freud. In O espírito na arte e na ciência. Trad. Maria de Moraes Barros. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 36).

Importante ressaltar, como constou no artigo anterior, que o pensamento de Freud é, como julgado por Jung (com o que concordo, apesar não ter lido uma linha de Freud, apenas várias obras de Jung e de outros autores que remetem ao pensamento freudiano), unilateral, materialista e fruto de uma visão ressentida das ideias gerais do século XIX. Portanto, mesmo sem ter conhecimento direto da obra de Freud, a partir de uma leitura razoável de Jung, que foi considerado seu principal seguidor até o rompimento entre eles em razão da questão da simbologia religiosa, pela publicação do livro de Jung “Símbolos de transformação”, subscrevo a crítica autorizada de Jung sobre seu antigo mestre.

“FREUD era um ‘neurologista’ (na mais estrita acepção da palavra) e jamais deixou de sê-lo. Ele não era psiquiatra, nem psicólogo, nem filósofo. No campo da filosofia faltavam-lhe até os elementos básicos da formação filosófica. Confessou-me certa vez que jamais se interessou por ler NIETZSCHE. Este fato é importante para a compreensão das estranhas opiniões freudianas que aparentemente se apresentam com uma total falta de pressupostos filosóficos” (Ibidem).

Freud teria dirigido sua intuição para o mundo de questões morais, filosóficas e religiosas, que certamente estavam sujeitas a crítica, salientando Jung que “A interpretação dos sonhos” seria sua obra mais importante, porque teve a coragem de trazer novamente para uma discussão séria um tema impopular como o sonho. “O que mais nos incentivou como jovens psiquiatras daquele tempo não foi a técnica nem a teoria que nos pareciam altamente discutíveis, mas o fato de alguém ter ousado ocupar-se profundamente com o sonho em geral” (Idem, p. 39).

Jung afirma que em “Totem und Tabu” e “Die Zukunft einer Illusion”, Freud tentou, sem sucesso, aplicar sua teoria das neuroses às instituições primitivas e enfrentar a visão religiosa tradicional. Quanto à última obra citada: “Nota-se com pesar o insuficiente preparo filosófico e científico-religioso, independentemente da circunstância de faltar ao autor qualquer compreensão da essência do fenômeno religioso” (Idem, p. 40).

Depois de dizer que Freud tinha uma visão limitada à doença, à neurose, e que ele representava um ceticismo em relação ao século XIX, sustenta que seu antigo mestre, continuando o que já começara com Nietzsche, fora um destruidor, colocando em questão nossos mais elevados valores, mas enfatizando que a psicologia freudiana não ofereceu substituto para as substâncias destruídas.

“A psicologia freudiana se movimenta dentro dos estreitos limites dos pressupostos científicos materialistas do final do século XIX e nunca prestou contas sobre suas premissas filosóficas o que, naturalmente, está ligado à formação filosófica insuficiente do próprio mestre” (Idem, p. 42).

Temos aqui a deixa para resgatarmos o início do texto, quanto à essência da Filosofia, na qual as questões materiais e espirituais são conceituadas em um sistema inteligível e coerente de valores, e quanto à importância do conhecimento físico do mundo e das bases filosóficas do conhecimento.

Nesse ponto, a Física moderna colocou em xeque o pressuposto fundamental do materialismo, qual seja, a existência dos átomos como substância material e sólida da qual todas as coisas físicas seriam feitas. Os corpos não são feitos de átomos, mas de campos fluidos de energia com suas interações fantasmagóricas à distância, para usar palavras do próprio Einstein.

E para além da questão corporal, um ponto fundamental que também refuta o princípio filosófico materialista está no fato de que o cosmos é ordenado desde o princípio, somente fazendo sentido a proposta atomista e materialista fundamental, segundo a qual a inteligência é posterior à matéria, e não anterior, como sustentava o idealismo platônico, quando a desordem é remetida para um mundo anterior ao nosso universo, isto é, o postulado filosófico materialista somente continua tendo validade quando criados infinitos universos, cuja existência não pode ser cientificamente comprovada, um dos quais é o nosso, ordenado e com possibilidade de desenvolvimento da vida, mas como obra de mero acaso. E mesmo nessa hipótese, alguma explicação deveria ser dada à fábrica de universos, sobre a origem fundamental de tudo, demonstração teórica essa que passa longe, muito longe, da teoria materialista.

O fato é que a proposta de Freud, em que pese a influência que teve ao longo do século XX, especialmente sobre a intelectualidade, no sentido de fomentar a rejeição de qualquer realidade científica e de valor real das questões religiosas, é fruto de uma total falta de pressupostos filosóficos, resultado da formação filosófica insuficiente do próprio mestre.

De outro lado, o grande conhecimento de Jung também acabou mostrando-se, em última análise, prejudicial, na medida em que se afastou, no curso de seu trabalho, de algo essencial, sendo que, em um documentário a que assisti, cujo nome agora me escapa, Edward F. Edinger, um dos seus principais seguidores, relata que Jung lhe enviou uma carta no final de sua vida dizendo que ele Jung falhou em sua principal missão, demonstrar a importância da alma humana.

A alma, no caso, deve ser lida como aquilo que está além da mera corporalidade, que está conectada à própria realidade espiritual, que transcende o tempo e o espaço, que supera, em qualquer sentido, a crua e fria existência corporal, porque a própria vida, sã ou doente, do corpo. Literalmente, um corpo sem alma é um corpo morto, sem vida, como também o é aquela limitada ao corpo. A alma é fundamental para o conjunto todo das ciências do espírito.

Por isso, a alma é o objeto do Cristianismo, como Ciência do Espírito, do conhecimento da realidade espiritual e sua conexão com o plano corporal, a Vida. A alma é o medium que relaciona o Espírito, o próprio Deus, ao Corpo, a realidade material.

Há um só Corpo e um só Espírito, assim como é uma só a esperança da vocação a que fostes chamados; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; há um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos, por meio de todos e em todos” (Ef 4, 4-6).

Os versículos transcritos demonstram a mais elevada coerência filosófica do Cristianismo, com uma atualidade científica impressionante, precisão jamais alcançada por outra forma de pensar, referindo-se às unidades corporal, ao contínuo espaço-tempo, e espiritual, à necessária unidade da inteligência, e a um só Deus, que é o Logos, essa mesma Inteligência que é sobre todos, por meio de todos e em todos, porque nada escapa ao controle da divindade e sua Inteligência. O Cristianismo, como a Filosofia, é um chamado à Unidade da Inteligência.

O Cristianismo, pois, é uma forma de pensar inteligentemente, é a própria Filosofia, em sua melhor versão, e diz respeito à atividade da alma humana, por isso, atrai para o seu território, automática e infalivelmente, o conjunto todo das ciências do espírito.

Outrossim, enquanto o Cristianismo, como Filosofia, não voltar ao centro do debate científico, tanto da Psicologia quanto das demais atividades culturais, incluído o Direito, continuaremos sujeitos às influências de ideias neuróticas, fruto de total falta de pressupostos filosóficos, resultado da formação filosófica insuficiente de seus formuladores, e aos nefastos efeitos sociais delas decorrentes.

Um comentário sobre “Cristianismo como Filosofia

  1. […] O que não está no vídeo, que é parte de uma aula, e não sei se foi abordado nesta exposição mais ampla, consiste no fato de que possuímos uma presença tanto corporal como espiritual. Uma das passagens bíblicas que considero da maior relevância filosófica está em Efésios, como citado no artigo “Cristianismo como Filosofia” (https://holonomia.com/2020/12/06/cristianismo-como-filosofia/): […]

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