O Brasil é um país em que se demonstra com facilidade da insuficiência da lei, havendo leis que “pegam” e “não pegam”, no sentido de serem respeitadas por seus destinatários, ou não.
A lei remete para uma autoridade que a edita, como norma geral de comportamento a ser respeitada por todos, presumindo-se que em sua elaboração sejam adotados critérios de racionalidade e justiça, o que, contudo, lamentavelmente, nem sempre ocorre na legislação humana. Muitas vezes, de outro lado, a norma estabelece padrões de comportamento que estão além da capacidade ordinária do cidadão para respeitá-la, carecendo de campanhas maciças de informação, para que o objetivo previsto pela norma seja compreendido e, então, realizado. Este último é o caso da Lei de Cristo, que também é a Torá, a Lei do amor, a qual, apesar de sua antiguidade e de o Evangelho ser pregado em todo planeta, ainda não atingiu a adequada compreensão de seus destinatários, porque sua Inteligência é de um nível difícil de ser alcançado, e mais difícil ainda de ser praticado.
Portanto, pode ocorrer de a norma não ser propriamente inteligente, porque mal elaborada, o que pode ocorrer com a lei humana, e será, mais cedo ou mais tarde, superada, ou ser superinteligente, situação da Lei Divina, exigindo intensa campanha de educação popular, e também da elite intelectual, para conscientização da necessidade de sua observância, para o Bem (que é sempre coletivo).
Desse modo, para além da questão formal, está presente na utilidade e eficácia da legislação um aspecto cultural, de desenvolvimento de uma mentalidade associada às razões pelas quais as normas existem, via de regra, o bem individual e comunitário.
Nesse aspecto, o brasileiro pode ser considerado um povo com momentos constantes de falta de educação, em que os valores civilizatórios, a consciência de respeito às leis e a boa formação cultural estão ausentes ou são solenemente ignorados, isso tudo a despeito da influência, em nosso país, do Cristianismo, que representa o melhor: da civilização, da consciência humana, do conceito de Lei e do desenvolvimento cultural.
Um exemplo recente que pode ser dado é o comportamento durante as eleições, nas quais, em que pesem as constantes campanhas de informação sobre a importância do voto, e da necessidade de escolha dos candidatos pela qualidade de suas propostas, os eleitores continuam a se envolver em episódios de compra de votos, em que há a correlata participação dos políticos, ou quando, no dia do pleito, insistem em movimentos coletivos ilegais de manifestação da preferência eleitoral, com aglomeração usando camisas das mesmas cores, as quais identificam grupos partidários, e o que é pior, em pleno período de pandemia. O último caso diz respeito a uma paixão mal direcionada por maus exemplos e má liderança, como também ocorre em eventos futebolísticos/esportivos, e mesmo em situações de religiosidade.
Outra situação tem sido constatada recentemente, quando são flexibilizadas as medidas de isolamento para contenção da disseminação do vírus, permitindo-se determinadas atividades, com alguns procedimentos de prevenção, como distância mínima entre as pessoas e uso de máscaras, mas tais protocolos são simplesmente desprezados. As regras existem, as pessoas delas têm conhecimento, mas optam, quase sempre por motivos ególatras, ou pela mais bruta insensatez, por não respeitar os mandamentos.
Esse problema não é novo, foi enfrentado pelo Messias, que destacou a hipocrisia das pessoas, e diz respeito a um assunto fundamental do Cristianismo, e que vale também para o Judaísmo e para Islamismo, porque são culturas religiosas inseridas em contexto de vida regulada por normas jurídicas. Por mais que o mundo cristão tenha se afastado dessa premissa, e isso é uma das principais falhas da visão cristã prevalente, o tema da Lei é central para a realização do Reino de Deus, que representa o tempo em que as leis são respeitadas, porque considerados seus objetivos espirituais e os valores e virtudes que representam.
“Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, mas omitis as coisas mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade. Importava praticar estas coisas, mas sem omitir aquelas. Condutores cegos, que coais o mosquito e tragais o camelo!” (Mt 23, 23-24).
Importa praticar estas coisas, os preceitos menos importantes, sem esquecer o que é essencial: a justiça, a misericórdia e a fidelidade.
Apesar de o apóstolo Paulo, principal teólogo do Cristianismo, ter afirmado, naquela que pode ser considerada a obra de conclusão de sua doutrina, seu trabalho mais elaborado, talvez o último texto que escreveu e que chegou até nós, como uma síntese de seu pensamento, a Epístola aos Romanos, que “ninguém será justificado pelas obras da Lei, pois da Lei vem só o conhecimento do pecado” (Rm 3, 20), e que “sustentamos que o homem é justificado pela fé, sem as obras da Lei” (Rm 3, 28), ele expressamente se contrapõe a uma possível conclusão equivocada de suas palavras: “Então eliminamos a Lei através da fé? De modo algum! Pelo contrário, a consolidamos” (Rm 3, 31).
A Lei, outrossim, deve ser consolidada pela fé, não tendo sido revogada, mas cumprida e ressignificada pelo Cristo, porque “a Lei é santa, e santo, justo e bom é o preceito” (Rm 7, 12), pelo que deve ser considerada a “Lei a expressão da ciência e da verdade” (Rm 2, 20).
Mas é necessário ter entendimento do seu sentido, que é espiritual, dizendo respeito ao contexto de sua interpretação, à realidade última de que se origina e para qual se destina, o próprio Deus, O qual “quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2, 4).
“Sabemos que a Lei é espiritual” (Rm 7, 14), pelo que o seu cumprimento não pode ser meramente formal, automático, ignorante, porque por essas obras ninguém é justificado, sendo necessário encarnar seu Espírito para que a justiça e a misericórdia nela presentes sejam manifestadas, para o Bem (que é sempre individual e coletivo).
A razão superior deve prevalecer sobre as vontades mais baixas que dominam o corpo, mascaradas sob falsos bens, no que se incluem as ideias sobre aborto, união gay, segregação arbitrária de estrangeiros etc. Para cumprir a Lei, destarte, é necessário vencer o instinto animal, o egoísmo que age em nós, inclusive ao racionalizar em favor de bestialidades.
“Eu me comprazo na lei de Deus segundo o homem interior; mas percebo outra lei em meus membros, que peleja contra a lei da minha razão e que me acorrenta à lei do pecado que existe em meus membros” (Rm 7, 22-23).
Todos queremos nos libertar das amarras das máscaras, e nos aproximar das pessoas queridas, com beijos e abraços, mas adotar estes comportamentos na situação atual equivale a levar a essas mesmas pessoas, e para aqueles que com eles convivem, um risco que pode ser fatal.
Ainda que sejamos fortes e saudáveis, podemos estar contaminados e levar o vírus a alguém que não suportará o desenvolvimento da doença. Isso é um fato. Quantos estiveram doentes e assintomáticos? Quantos não souberam dessa situação e, sem perceber e sem querer, provocaram, mesmo que indiretamente, a morte de alguém? Nesse ponto, diante da cobertura midiática da pandemia, ainda que por vezes sem o devido compromisso com a Verdade, poucos poderão dizer que não sabiam que era necessária a prevenção diante dos riscos representados pela pandemia, os demais terão agido com culpa, que certamente será reconhecida, e lamentada, ou punida, no derradeiro julgamento.
“Pois todos nós compareceremos ao tribunal de Deus. Com efeito, está escrito: Por minha vida, diz o Senhor, todo joelho se dobrará diante de mim e toda língua dará glória a Deus. Assim, cada um de nós prestará contas a Deus de si próprio” (Rm 14, 10-12).
O critério de julgamento, há muito, já é conhecido, na Lei e para além dela, o amor ao próximo. Quem aglomera irresponsável e desnecessariamente não tem amor ao próximo. Quem não usa máscara, principalmente por opção política, não tem amor ao próximo, ao colocar, equivocadamente, projetos humanos egóicos acima do valor das pessoas, representando a hipocrisia que o Messias já revelava em seu tempo, que vale tanto para autoridades quanto para a população em geral. Uma autossuficiência soberba faz com que alguns entendam que não estão obrigados a prevenção, deixando de pensar que sua prevenção poderá impedir que o vírus, que é invisível e cuja ação ainda tem muitos aspectos para nós desconhecidos, chegue até alguém cujo organismo não terá condições de a ele resistir.
Não se trata, enfim, simplesmente da lei, mas de amor, da Lei.
A lei humana pode ser insuficiente, mas o Cristão se pauta por critérios superiores, por uma caridade para com todos, busca a realização do Espírito, indispensável para a plenitude da Lei.
“Não devais nada a ninguém, a não ser o amor mútuo, pois quem ama o outro cumpriu a Lei. De fato, os preceitos: Não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás, e todos os outros se resumem nesta sentença: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. A caridade não pratica o mal contra o próximo. Portanto, a caridade é a plenitude da Lei” (Rm 13, 8-10).