Teologia física e corpo espiritual

O modo como concebo o mundo é distinto daquele estabelecido, seja no ambiente científico ou mesmo no teológico, na medida em que o conhecimento ordinário separa tais formas de pensar, como esferas distintas de saber. Há um ramo da Teologia, nomeado Teologia natural, cujo objeto que é um dos que mais se aproxima de minha forma de compreensão das coisas, ao ver o mundo natural como a Criação de Deus, desdobrando desse pressuposto a análise dos fenômenos ocorridos no universo.

Os grandes líderes da revolução científica, Galileu, Newton, Descartes, adotavam um posicionamento teológico embasando suas pesquisas, na medida em que eles buscavam no mundo as leis que Deus neste colocou, de modo que seus trabalhos eram, em certo sentido, Teologia aplicada à Física, e daí Teologia física.

Esse é o resultado do antigo modo de pensar monoteísta:

Os céus declaram a glória de Deus, e o firmamento proclama a obra de suas mãos” (Sl 19, 1).

Mas tal forma de entendimento já não é mais comum nos dias de hoje, em que os temas dos conhecimento são compartimentalizados em áreas estanques e incomunicáveis, contrariando a unidade do saber racional, segundo a qual, como é da essência da Filosofia, todos os conceitos e ideias estão relacionados e são decorrentes de um primeiro princípio que suporta toda aquela racionalidade. Da perspectiva judaico-cristã-muçulmana, como também o era para Platão e Aristóteles, a seu modo de compreender o mundo, o Primeiro Princípio é Deus, por meio do Qual surgiu o mundo, com sua ordem. Para os materialistas, de seu lado, se os deuses existem, eles não têm contato com nosso universo, porque este é regido pelo acaso, pela sorte.

Mesmo no ambiente científico de hoje, tais hipóteses continuam em disputa, nos pressupostos ocultos da atividade de pesquisa, porque o multiverso é a forma moderna de materialismo, dizendo que a ordem de nosso mundo é casual, pois apenas por acaso o nosso universo é ordenado deste modo, que permite a vida como a conhecemos, e existem bilhões de outros mundos com leis diferentes em que não há possibilidade de vida. A pergunta que permanece em aberto, caso, de fato, exista multiverso, é sobre a origem desses incontáveis outros mundos, cuja resposta somente foi dada satisfatoriamente por Aristóteles e seu Primeiro Motor. Esse modo de pensar associado ao multiverso também pode ser enquadrado como uma Teologia física, mas uma Teologia negativa, no sentido de postular a inexistência de Deus, portanto ateísta, aplicada à Física.

Outrossim, nenhum ramo do saber escapa à análise teológica, caso a investigação e as perguntas sejam dirigidas aos primeiros princípios que amparam as respectivas concepções de mundo e de ser humano, o que os materialistas nunca fazem, porque não querem basear sua atividade científica, em última instância, na sorte, no acaso e na ausência de ordem.

Quanto à humanidade, sua posição especial na Criação, no mundo natural, levanta uma série de questionamentos não respondidos pela Biologia, notadamente aquela em que apenas análises materiais e corporais são consideradas, como ocorre com o neodarwinismo, a vertente da Teologia negativa aplicada à Biologia. Basicamente, essa forma de pensar entende que os corpos são formados de baixo para cima, com os agregados moleculares, cujo início não é explicado, ajuntando-se por tentativa e erro até a formação dos organismos mais complexos, culminando no ser humano, tudo sem direção, movido pelo mero acaso. O problema consiste no fato de que a matemática não suporta tal possibilidade, como exposto no artigo “Homo humanorum” (https://holonomia.com/2018/10/31/homo-humanorum/), no sentido de que uma Inteligência superior guiou o processo evolutivo para que este chegasse ao homem em tão curto espaço de tempo, cerca de quatro bilhões de anos, pelo que a formação orgânica de baixo para cima é orientada por uma Inteligência que age de cima para baixo.

Da perspectiva judaico-cristã-muçulmana, Deus está no controle do mundo, e nós somos sua criação especial, porque feitos à sua imagem e semelhança. Não entrarei aqui na possível distinção entre os conceitos imagem e semelhança, pois o essencial é que nessa ideia está compreendida a noção de que Ele nos dá nosso espírito, e É a fonte de nossa vida.

Devemos ser considerados, portanto, mesmo em nossos corpos, uma expressão espiritual, e, porque também somos livres, podemos ou não manifestar o Espírito de Deus. A união da alma com o corpo é, desse modo, tanto metafísica como também propriamente física, ao contrário do que sustentado por Leibniz:

“Pois, mesmo que eu não considere que a alma muda as leis do corpo nem que o corpo muda as leis da alma, e que eu tenha introduzido a harmonia preestabelecida para evitar tal desarranjo, não deixo de admitir uma verdadeira união entre a alma e o corpo, que os torna cúmplices. Essa união conduz ao metafísico, enquanto uma união de influência conduziria ao físico. Mas quando nós falamos da união do Verbo de Deus com a natureza humana, nós devemos nos contentar com um conhecimento por analogia, tal qual a comparação da união da alma com o corpo é capaz de nos dar; e devemos, além disso, nos contentar em dizer que a encarnação é a união mais estreita que pode existir entre o criador e a criatura, sem que seja necessário ir mais além” (Ensaios de teodiceia sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do mal. Gottfried Wilhelm Leibniz. Tradução William de Siqueira Piauí e Juliana Cecci Silva. 2 ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2017, pp. 110-111).

Assim como Descartes, Leibniz entende haver uma separação entre corpo e alma, ainda que ajustados pela harmonia preestabelecida, e esta é uma questão tanto científica quanto teológica, que a neurociência moderna tenta desvendar, e que também está na raiz das indagações religiosas, a natureza da alma, sua relação com o corpo, o que também era objeto da especulação na filosofia platônica, para a qual o filósofo liberta a alma do comércio com o corpo, na medida em que o corpo é um entrave para a aquisição do conhecimento, como exposto no Fédon.

Todavia, essa não é a ideia bíblica de criação, porque a narrativa da Escritura é no sentido de que Deus criou o mundo para habitar com os homens, somente tendo havido o afastamento em razão do pecado, da falha de Adão, corrigida por Jesus. A projeção bíblica, descrita tanto em Jeremias quanto no Apocalipse, é Deus habitando conosco, de modo que haverá uma união da alma, ou melhor, do Espírito, com o corpo, no plano físico.

Porque esta é a aliança que selarei com a casa de Israel depois desses dias, oráculo de Iahweh. Eu porei minha lei no seu seio e a escreverei em seu coração. Então eu serei seu Deus e eles serão meu povo. Eles não terão mais que instruir seu próximo ou seu irmão, dizendo: ‘Conhecei a Iahweh!’ Porque todos me conhecerão, dos menores aos maiores, — oráculo de Iahweh — porque vou perdoar sua culpa e não me lembrarei mais de seu pecado” (Jr 31, 33-34).

A nova aliança foi iniciada pela encarnação do Verbo, do Logos, a partir de Jesus Cristo, que renovou o Espírito na humanidade, permitindo que se manifestasse em nós a realidade do próprio Deus, de modo que passássemos a ter um corpo espiritual, cuja manifestação será plena apensa na nova criação. A ideia de separação entre corpo e alma é, outrossim, contrária à mensagem Cristã, na medida em que em nossos corpos manifestamos as realidades espirituais, e quanto mais santificamos nossos corpos mais santo será o Espírito que habitará em nós.

Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que está em vós e que recebestes de Deus? … e que, portanto, não pertenceis a vós mesmos? Alguém pagou alto preço pelo vosso resgate glorificai, portanto, a Deus em vosso corpo” (1Cor 6, 19-20).

Há uma relação existencial entre corpo e espírito, porque o último dá vida ao primeiro, e quando Leibniz fala que a encarnação é a união mais estreita que pode existir entre o criador e a criatura, talvez ele não tenha compreendido que a encarnação começa com Jesus e continua com os seus seguidores fiéis, cujos corpos também servem de ação ao Espírito de Deus, pelo que também são encarnação de Deus, tanto no isolamento da oração quanto na participação social, e daí a Teologia também se aplica à Sociologia, ao Direito e, especialmente, à Política, porque o Espírito é onipresente, dando sentido a todas as manifestações humanas.

O resultado esperado dessa ação do corpo espiritual é a renovação do corpo humano, e da própria humanidade, culminando na nova criação, do que a ressurreição de Jesus é uma manifestação antecipada, as primícias da nova realidade, resultado de sua vitória sobre a política mundana. Pode-se dizer que a ressurreição de Jesus concretiza no nosso plano físico espaço-temporal quadridimensional a realidade da quinta (ou sexta ou sétima) dimensão, a dimensão da História realizada, de um éon consumado, do verdadeiro sentido do tempo.

Desse modo, não devemos pensar em ir para o céu, como é comum hoje em dia, mas em viver, no corpo, a plenitude do Espírito e, ao final, ressuscitar, e voltar a ter um corpo, um que expressará nossa verdadeira natureza, que é espiritual.

O mesmo se dá com a ressurreição dos mortos; semeado corruptível, o corpo ressuscita incorruptível; semeado desprezível, ressuscita reluzente de glória; semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força; semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual. Se há um corpo psíquico, há também um corpo espiritual” (1Cor 15, 42-44).

Dessarte, há uma estreita conexão entre Teologia física com nossa realidade humana, da perspectiva Cristã, porque os céus declaram a glória de Deus, e o firmamento proclama a obra de suas mãos, mas chegará o momento em que a realidade será alterada, não por um multiverso, ou por um big crunch, um big rip ou um big freeze ou um big slurp, mas pela epifania cósmica do próprio Deus.

O Espírito semeia no Corpo para colher, no próprio corpo, frutos espirituais. Não seria a energia escura o sopro de Deus insuflando a semente das novas coisas que estão sendo formadas, em continuidade ao Princípio da criação, para um novo big fiat?

Nisto ouvi uma voz forte que, do trono, dizia: ‘Eis a tenda de Deus com os homens. Ele habitará com eles; eles serão o seu povo, e ele, Deus-com-eles, será o seu Deus’

A cidade não precisa do sol ou da lua para a iluminarem, pois a glória de Deus a ilumina, e sua lâmpada é o Cordeiro” (Ap 21, 3; 23).

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