Kant e a holonomia

Assistindo a uns vídeos neste fim de semana, deparei-me com um elaborado por Mateus Salvadori, tratando da Filosofia do Direito (https://www.youtube.com/watch?v=xyu8EbF4t5s), bem didático, no qual ele informa a posição de Kant sobre o Direito, dizendo que na obra “Metafísica dos Costumes” o filósofo do criticismo aduz existirem as leis da natureza e as leis da liberdade, e que a ambas estamos submetidos, tendo a física, a química e a biologia como exemplos das primeiras, e as leis da razão ou morais, da segunda. As leis da razão incluem as leis éticas, ou moralidade, e jurídicas, ou legalidade, sendo que estas, leis éticas e jurídicas, fundamentam-se naquelas, leis da razão, ou morais. Assim, o Direito tem como fundamento último a Moral, estando vinculado ao Justo. A grande diferença entre leis éticas e jurídicas se dá entre os âmbitos de aplicação, o interno, leis éticas, e o externo, leis jurídicas. Assim, as leis éticas dizem respeito à autonomia, ao nível interno da pessoa, enquanto as jurídicas correspondem ao comportamento externo, o que está ligado à ideia de heteronomia.

No artigo “Heteronomia, autonomia e holonomia – A logocracia” (https://holonomia.com/2020/04/11/heteronomia-autonomia-e-holonomia/), abordei parcialmente essa questão, nos seguintes termos:

A autonomia em Kant, portanto, não é a mera vontade da pessoa, mas a vontade conforme a lei universal, associada a uma visão Cristã de mundo, da qual decorre sua ideia de dignidade humana. Desse modo, é possível entender a autonomia de Kant, porque fundada na racionalidade e na universalidade, conceitualmente, como correspondente à holonomia, quando a lei moral individual não é ligada a qualquer moralidade, com qualquer fundamento para as regras comportamentais, mas está vinculada à moralidade infinita, santa, à ideia de ética, entendida como ciência da moralidade, da razão moral universal, que supera os conceitos de todas as moralidades particulares.

Considerando as ideias expostas no vídeo, e corroborando a proposta filosófica e teológica que venho desenvolvendo, entendo que a distinção entre leis da natureza e leis da liberdade é arbitrária, decorrente das categorias a priori adotadas por Kant, e de sua visão teológica de mundo, que não corresponde à melhor forma de enfrentar os próprios fundamentos do pensamento kantiano, associados às ideias cristãs, as quais também não dão sustentáculo para a distinção do filósofo entre normas internas e externas, e entre moralidade e legalidade.

Partindo de um Monoteísmo radical, inicialmente, é difícil sustentar que leis da natureza e leis da liberdade não têm comunicação, pelo contrário, pressupõe-se uma estrita ligação entre elas, havendo, nas próprias escrituras, diversos momentos em que os pensamentos humanos, que estão muito próximos conceitualmente da ideia de leis de liberdade, possuem associações com a realidade física, como na passagem “Pedro caminhou sobre as águas e foi ao encontro de Jesus. Mas, sentindo o vento, ficou com medo e, começando a afundar, gritou: ‘Senhor, salva-me!’” (Mt 14, 29-30).

Na doutrina de Jesus há uma inegável ligação de causa e efeito entre bom comportamento e consequências físicas:

Em verdade vos digo que não há quem tenha deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou terras por minha causa ou por causa do Evangelho, que não receba cem vezes mais desde agora, neste tempo, casas, irmãos e irmãs, mãe e filhos e terras, com perseguições; e no mundo futuro, a vida eterna” (Mc 10, 29-30).

Na verdade, toda a Bíblia está repleta dessa conexão entre o comportamento humano e as ações do mundo natural, tanto resultando do pecado de Adão como pela atuação conforme os mandamentos, refletindo uma interconexão entre ação moral e efeitos naturais. As pragas do Egito são um exemplo claro de conexão entre leis de liberdade e leis da natureza. Também na era messiânica:

E acontecerá que aquele das famílias da terra que não subir a Jerusalém para prostrar-se diante do rei, Iahweh dos Exércitos, para ele não haverá chuva. E se a família do Egito não subir e não vier, haverá contra ela a praga com que Iahweh ferirá as nações que não subirem para celebrar a festa das Tendas” (Zc 17-18).

Em um certo sentido, a própria ressurreição de Jesus, um fato físico, químico e biológico, é resultado de suas ações morais, de seu comportamento exemplar, resultando na ação divina de ressuscitá-lo, de modo que seu corpo não sofreu sequer a corrupção material, voltando à vida renovado e glorioso.

Mesmo hoje, até que ponto é possível separar o comportamento (i)moral humano e o aquecimento global ou mesmo os efeitos da pandemia sobre nós?

A distinção feita por Kant, outrossim, decorre de uma visão deísta de mundo, que não é o entendimento do teísmo cristão, pelo qual Deus sustenta o universo com sua Palavra. Kant está, pois, de acordo com a mentalidade de seu tempo, que tentava superar com a razão humana uma compreensão teológica de mundo das gerações anteriores. Por melhor que tenha sido seu pensamento, trata-se de um conhecimento limitado, segundo a própria teoria do autor, que impede que alcancemos a sabedoria de Deus.

Ensinamos a sabedoria de Deus, misteriosa e oculta, que Deus, antes dos séculos, de antemão destinou para a nossa glória. Nenhum dos príncipes deste mundo a conheceu, pois, se a tivessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da Glória. Mas, como está escrito, o que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu, isso Deus preparou para aqueles que o amam. A nós, porém, Deus o revelou pelo Espírito. Pois o Espírito sonda todas as coisas, até mesmo as profundidades de Deus. Quem, pois, dentre os homens conhece o que é do homem, senão o espírito do homem que nele está? Da mesma forma, o que está em Deus, ninguém o conhece senão o Espírito de Deus. Quanto a nós, não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que vem de Deus, a fim de que conheçamos os dons da graça de Deus. Desses dons não falamos segundo a linguagem ensinada pela sabedoria humana, mas segundo aquela que o Espírito ensina, exprimindo realidades espirituais em termos espirituais. O homem psíquico não aceita o que vem do Espírito de Deus. É loucura para ele; não pode compreender, pois isso deve ser julgado espiritualmente. O homem espiritual, ao contrário, julga a respeito de tudo e por ninguém é julgado. Pois quem conheceu o pensamento do Senhor para poder instruí-lo? Nós, porém, temos o pensamento de Cristo” (1Cor 2, 7-16).

E também o pensamento de Cristo, espiritual, não concebe a separação entre o plano interior e o exterior, na medida em que a realidade espiritual em que vive, e transmite a seus seguidores, é muito superior à corporal.

Wolfgang Smith está renovando o conhecimento dessa realidade espiritual, como desenvolve no livro “The Vertical Ascent: From Particles to the Tripartite Cosmos and Beyond”, e explica na entrevista que aborda sua última obra (https://philos-sophia.org/vlog-introducing-vertical-ascent/), dizendo que a totalidade precede a divisão do mundo em átomos espaço-temporais, e que a totalidade é irredutível às suas partes, narrando que enquanto a realidade corporal é limitada pelo tempo e pelo espaço, a dimensão anímica é restrita pelo tempo, mas não pelo espaço, enquanto o espírito não se limita ao tempo ou ao espaço.

Portanto, apenas do ponto de vista estritamente corporal se pode falar em plano interno e externo, pois para a realidade espiritual há uma unidade inafastável entre realidade interior e exterior, uma vez que o espírito que nos move também age sobre o mundo.

Sua consciência desse fato está expressa em diversas passagens, como: “Quem vos recebe, a mim me recebe, e quem me recebe, recebe ao que me enviou” (Mt 10, 40); “Em verdade vos digo: cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” e “Em verdade vos digo: todas as vezes que o deixastes de fazer a um desses pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer” (Mt 25, 40 e 45). Finalmente, uma das partes fundamentais da oração de Jesus antes de ser sacrificado: “Eu lhes dei a glória que me deste para que sejam um, como nós somos um: Eu neles e tu em mim, para que sejam perfeitos na unidade e para que o mundo reconheça que me enviaste e os amaste como amaste a mim” (Jo 17, 22-23).

A ideia de unidade cristã, portanto, não reconhece a separação entre moralidade e legalidade ou entre o interior e o exterior, porque todos estão na unidade, na totalidade divina, percebida espiritualmente por aqueles que são do Espírito.

Se no tempo de Paulo os homens psíquicos não tinham a menor possibilidade de compreender as dimensões espirituais, porque eram loucura para eles, atualmente, contudo, o mesmo não se pode dizer dos homens de hoje, porque a Física quântica tem procurado explicar as conexões entre o mundo espiritual e a realidade material, como o fazem Fritjof Capra, em “O tao da física — Um paralelo entre a física moderna e o misticismo oriental”, Amit Goswami, em “O Universo Autoconsciente” e “Deus não está morto”, e David Bohm e Wolfgang Smith nas obras de suas vidas, enfrentando a questão da totalidade que emerge da devida compreensão da realidade física e que está associada ao Espírito, conhecimento esse que indica a ainda maior aproximação do Reino de Deus.

Desse modo, a crítica e as categorias kantianas são, atualmente, claramente insuficientes para a compreensão do universo em que vivemos, e mesmo para a devida conceituação da dignidade humana e do conceito de dever, fazendo-se necessário superar as propostas jurídicas e filosóficas associadas às ideias e autonomia e heteronomia, que ficam suprassumidas no conceito de holonomia, que tenho procurado desenvolver, como um dos fundamentos teóricos do Reino dos Céus.

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