No último mês, li a obra baseada na tese de doutorado de Fabrício Simão da Cunha Araújo, com o título “A lógica da fundamentação das decisões judiciais: a dinâmica entre argumentação jurídica e a valoração probatória”, defendida perante a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. O livro faz uma excelente exposição sobre a base filosófica e lógica por trás da argumentação e fundamentação jurídica da decisão judicial.
O texto traz uma anamnese da história do pensamento lógico, inciando por algumas anotações sobre conceito de Logos presente tanto no ideário grego como no Evangelho de João, passando pela lógica clássica de Aristóteles, baseada nos seus princípios da identidade, não contradição e terceiro excluído, e chegando na Física quântica, que possui interpretações segundo as quais a lógica aristotélica teria sido parcialmente refutada.
O capítulo seguinte trata da nova visão do processo, com destaque para as ideias de Elio Fazzalari, concebendo-o como procedimento em contraditório, e para a teoria neoinstitucioalista, que superou o entendimento de que o processo seria concebido como instrumento da jurisdição para vê-lo como “instrumento que habilita a consecução da democracia no bojo do exercício de toda e qualquer função estatal” (Fabrício Simão da Cunha Araújo. A lógica da fundamentação das decisões judiciais: a dinâmica entre argumentação jurídica e a valoração probatória. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 96). Como o processo estabelece a lei das partes, estas devem influir em sua elaboração, por meio do contraditório.
Depois, o tema fundamental da linguagem é explanado, mostrando como o processo também serve para estabelecer os sentidos do texto para o caso, dizendo ser “necessário explorar o significado de determinada expressão normativa, conceito ou princípio jurídico conforme seus referenciais se manifestam na realidade e não de forma abstrata, universal e imutável (Idem, p. 116).
Finalmente, é destacada a utilização da lógica utens na valoração da prova, fazendo retornar ao processo a experiência comum, da vida cotidiana, de modo que o julgamento tenha sua conclusão sindicável pelos indivíduos participantes da atividade jurisdicional. As máximas da experiência, assim, podem ser utilizadas para “atribuir maior ou menor valor probatório às provas trazidas ou produzidas no processo” (Idem, p. 156), destacando a importância da demonstração da inteligibilidade do argumento:
“Além de explicitar quais são as provas constantes nos autos que o conduziram a presumir que os fatos ocorreram de uma ou outra forma, caso ambas as partes tenham produzido provas voltadas a infirmar a prova do ex adverso, é imprescindível que o julgador não se restrinja a declinar as provas (sempre obrigatoriamente indicando sua localização) que preponderaram para seu convencimento, mas também explicite as razões pelas quais se deve valorar as provas em conflito como o faz, ou seja, as razões lógicas (utens) por que se deve atribuir maior carga de persuasão a algumas provas e menor a outras” (Idem, p. 173).
Enfim, o texto é elaborado segundo a melhor técnica processual, salientando que a busca da verdade é o ideal regulador da investigação científica, amparando-se nos ensinamentos de Tarski e Karl Popper. Segundo o último:
“Nós também vemos a ciência como busca da verdade e, pelo menos desde Tarski, já não temos medo de dizê-lo. Aliás, só tendo como referência essa meta, a descoberta da verdade, podemos dizer que, mesmo sendo falíveis, esperamos aprender com nossos erros. Só a ideia de verdade nos permite falar com sensatez em erros e em crítica racional, e só ela possibilita o debate racional – ou seja, o debate crítico à procura de erros, com o sério propósito de eliminar tantos deles quanto seja possível a fim de chegar mais perto da verdade. Por isso, a própria ideia de erro – e falibilidade – implica a ideia de uma verdade objetiva como um padrão que talvez não possamos atingir. (Nesse sentido a ideia de verdade é reguladora)” (Apud Fabrício Simão da Cunha Araújo. In A lógica da fundamentação das decisões judiciais: a dinâmica entre argumentação jurídica e a valoração probatória. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 184).
Referida citação demonstra, o que nunca é destacado quando citada a ideia de falseabilidade de Popper, que quando algo é falseado outro algo é afirmado, e esse outro algo é a ideia de verdade, que nos permite falar com sensatez em erros e em crítica racional, e só ela possibilita o debate racional. Tal ideia de verdade funciona como o axioma ou pressuposto fundamental da própria atividade científica, incompatível com os relativismos vários, inclusive o moral. Sem uma verdade que permaneça nem a própria atividade de falsear as teorias científicas seria possível.
Nesse ponto, e superando parcialmente a proposta do livro, talvez seja possível ainda ver o processo como instrumento da juris dicção, como meio para expressão da Verdade, ou a verdade que mais dela se aproxima, que continua pressuposta, sem que isso infirme a teoria neoinstitucional e o apreço pela fundamentação democrática da decisão decorrente do procedimento em contraditório, que faz o controle entre aquela Verdade e a verdade provada, ou presumida, do processo. Sem que seja pressuposta uma Verdade última e final, a ideia de falhas e erros perde o seu significado, transformando o debate racional e a própria racionalidade em mera convenção, que pode ser arbitrariamente modificada segundo a vontade da ocasião.
Daí porque é fundamental também que a vontade do julgador esteja de acordo com a Verdade, que seja voltada à sua busca, como enfatizado no final do texto de Fabrício, ainda que isso tenha se tornado uma questão de menor importância nos dias atuais, a ética pessoal do julgador, que é associada a uma concepção filosófica tanto de Ética como de Verdade. A má Filosofia dos últimos tempos prejudica essas concepções e dificulta que tenhamos os melhores exemplos de julgadores, pois, por mais bem formados que sejam, sua honestidade ético-cultural é prejudicada por aquela má Filosofia, como ocorre com os julgadores cristãos que defendem juridicamente teses que contrariam o Cristianismo, este que também tem natureza jurídica, e, em decorrência, a correção de suas decisões, tendo como parâmetro a postulada Verdade, hoje praticamente desconsiderada no plano político-jurídico.
A questão da mentalidade do julgador e sua importância para o julgamento está relacionada à posição do observador na medição quântica. Assistindo ao vídeo “Taher Gozel interview with Basil Hiley on the holistic quantum model he produced with David Bohm” (https://www.youtube.com/watch?v=USnxT45B_1Y&t=2430s), lembrei-me da questão fundamental da Física quântica, que contraria o entendimento científico moderno, o qual pretendia a objetividade pela retirada de todas as questões subjetivas, do observador, do experimento científico.
A atividade científica mais fundamental não pode ser feita de forma independente do observador, o que, aplicado ao julgamento, significa que a decisão judicial não pode ocorrer sem a participação do juiz, que, com sua simples interferência no processo, por si só, já altera a realidade a ser analisada, na totalidade que inclui observador e observado. O juiz não é um agente passivo que apenas descreve e qualifica os fatos que lhe são narrados pelas partes, ele muda qualitativamente a realidade do processo e, consequentemente, os próprios fatos em julgamento, segundo sua posição, sua teoria, suas percepções etc.
“O cientista que está fazendo a experimentação, seu envolvimento, suas intenções e tudo mais, muda a experimentação”. A depender do cientista, e julgador, portanto, a decisão pode ser uma ou outra, porque a própria realidade experimentada será uma ou outra. Como, no caso da medição judicial, o aparato observador é a própria pessoa do julgador, outrossim, não há como afastar essa interferência, essa participação nos próprios fatos observados. Uma vez que a teoria encampada pela doutrina jurídica, que forma os julgadores, em si, está eivada de equívocos fundamentais, tal situação explica, em parte, julgamentos tão dissonantes sobre fatos semelhantes.
O critério final de julgamento, destarte, é pessoal, refere-se à pessoa juiz, sua honestidade ético-cultural, integridade e senso arraigado de correção e justiça, vinculados à teoria jurídica por ele encampada.
Ainda que seja altamente preocupante a situação atual da humanidade, porque não existe honestidade ético-cultural, em sentido amplo, na própria teoria jurídica pós-moderna, o curso da História está em desenvolvimento, e o julgamento final será feito por meio da pessoa com maior honestidade ético-cultural, integridade e senso arraigado de correção e justiça que já passou pelo planeta, Jesus de Nazaré, o qual incorporou a própria ideia de Verdade, tornando-a existencial, estando presente na estrutura de nossa ética e nossa cultura, por mais que seus inimigos tentem ofuscar esse fato. É pressuposto da atividade científica que, mais cedo ou mais tarde, a verdade se mostre, o que conduzirá à necessária inclusão da mensagem evangélica nessa empreitada, porque a ideia de Logos como a conhecemos, o que inclui a de Verdade, é não pode ser dissociada da pessoa de Jesus, sua vida, sua obra e sua doutrina, e como ele mudou o mundo.
Esse, portanto, é o critério do julgamento final, que leva em consideração como alteramos a realidade, se o fazemos honestamente, em busca da Verdade, ou se a manipulamos para fins particulares, em seu detrimento, praticando, enfim, a corrupção existencial através do erro/pecado/ilícito e da injustiça.
Se não existe Verdade, não há julgamento falho, não há injustiça, apenas opiniões e convenções distintas sobre o que quer que esta. A própria ideia de erro – e falibilidade – implica a ideia de uma verdade objetiva como um padrão que talvez não possamos atingir, mas, ainda que não possamos alcançá-la, por ora, se nem ao menos a estivermos buscando, nossa empreitada científica, e jurídica, terá sido em vão, e inútil.
Sem a ideia de verdade, não há ciência, e a racionalidade já está condenada. Aí está a inteligência suprema do Mestre. Antes de Jesus a Verdade não era conhecida. Agora, que nele não crê, não crê na Verdade, e, por isso, já está condenado, porque prefere suas próprias verdades àquela que é a condição da inteligibilidade de tudo o que existe. Assim, no julgamento final, quando consideradas todas as coisas, a totalidade da qual participamos, na Verdade, tudo acaba por ser revelado, e nada, senão a verdade, permanece de pé.
O aparato observador Jesus Cristo, com seu corpo, suas ideias, sua vida, seu modo de participar na totalidade do mundo, e modificando-o, o qual integramos em sua unidade indivisível, é o próprio critério de Verdade, ele é a medida da Justiça, é o instrumento pelo qual Deus, o Logos, habilitou a consecução da autêntica democracia no bojo do exercício de toda e qualquer função estatal, na qual, na Ekklesia, na realização do Reino, significou a própria expressão normativa, o conceito ou o princípio jurídico conforme sua realidade concreta no Reino de Deus.
“Pois Deus não enviou o seu Filho ao mundo para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele. Quem nele crê não é julgado; quem não crê, já está julgado, porque não creu no Nome do Filho único de Deus. Este é o julgamento: a luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas à luz, porque as suas obras eram más. Pois quem faz o mal odeia a luz e não vem para a luz, para que suas obras não sejam demonstradas como culpáveis. Mas quem pratica a verdade vem para a luz, para que se manifeste que suas obras são feitas em Deus” (Jo 3, 17-21)