Em busca da ordem

“Hegel, como muitos de seus contemporâneos e sucessores até Nietzsche, Jung e Heidegger, havia sido vítima de sua educação sob as pressões de um ambiente ortodoxo. Ele havia sido exposto, com uma intensa experiência de resistência, à deformação do complexo consciência-realidade-linguagem, à deformação da realidade-Isso na realidade-coisa, da luminosidade na intencionalidade, dos símbolos em conceitos definicionais. O Além, o símbolo criado por Platão para expressar sua experiência da realidade divina como formativamente presente nos movimentos participativos da metaxy, tornou-se um objeto situado espacialmente, um Jenseits deste mundo; e a simbolização platônica do Nous divino como o Ser além dos seres finitos foi transformada no conceito de uma coisa existente além das coisas existentes. Na linguagem de Hegel, os símbolos experienciais Além e Ser tornaram-se entidades com um artigo definido, das Jenseits, das Sein. Por fim, a deformação linguística tornou possível para o símbolo Ser aparecer como o predicado nas proposições nas quais o Deus da ortodoxia cristã tornou-se o sujeito, como em Gott ist das Sein. Os símbolos noéticos e pneumáticos, helênicos e judeu-cristãos foram transformados em conceitos intencionalistas a ser manipulados por pensadores proposicionais. A conquista irreversível de Hegel é ter compreendido inteiramente a deformação dominante dos símbolos, e seu grandioso fracasso foi ter tentado chegar a uma solução fundindo a realidade-Isso e a realidade-coisa no novo simbolismo do Sein, um sujeito que desdobra sua substância ‘dialeticamente’ no processo histórico até chegar a seu eschaton, seu Fim, na conceituação plenamente articulada de sua autoconsciência, abrangendo assim a própria realidade abrangente” (Eric Voegelin. Ordem e História. Vol. V. Tradução Luciana Pudenzi. São Paulo: Edições Loyola, 2010, p. 87).

Nossa abordagem da realidade está deformada há muito tempo e Eric Voegelin destaca a conquista irreversível de Hegel por ter compreendido inteiramente a deformação dominante dos símbolos.

Vogelin sustenta que são poucos aqueles que procuram realmente conhecer a realidade, porque a maioria dos investigadores do mundo acaba se entregando à construção do que chama de “Segundas Realidades”, que são aquelas decorrentes do apego aos conceitos formados para entender a realidade, ou realidade-Isso, transformada em realidade-coisa, quando o mundo trabalhado intelectual é apenas o mundo da linguagem formada, consolidada, que acaba se descolando da realidade-Isso, adquirindo autonomia em relação a esta, fazendo com o que a consciência do inquiridor se transforme em inconsciência.

Vivemos, assim, num estado de inconsciência pública, porque a linguagem e os símbolos vivenciados coletivamente estão distantes da realidade-Isso, o que é tratado como deformação do complexo consciência-realidade-linguagem.

Contudo, a tentativa chamada de fracasso, ao contrário do que sustenta Voegelin, está na direção correta, segundo o que penso ser a interpretação adequada das Escrituras, reunir a realidade-Isso e a realidade-coisa.

“Entretanto, quaisquer que sejam as ramificações da experiência que possamos acrescentar, o dominante no símbolo ‘Geist’ segue sendo uma escatologia paraclética, a visão de um descenso do Espírito que alcançará aquilo que as cristandades de Pedro e de Paulo não alcançaram – isto é, a Parusia definitivamente salvacional do Além neste mundo. Entregar-se a essa fantasia, e propor, no curso de sua realização ativista, a abolição da filosofia requeria um considerável grau de inconsciência a respeito do tratamento desse problema por parte dos pensadores helênicos, helenistas e medievais” (Idem, pp. 86-87).

O que Voegelin trata como fantasia, porque aliado a uma determinada visão escatológica, divergente daquela fantasiosa apontada por Hegel, e ainda que esta também não seja imune a críticas, talvez seja exatamente a escatologia bíblica, cujo significado foi perdido em razão da deformação dominante dos símbolos cristãos que se seguiu à escatologia consolidada por Agostinho de Hipona, no sentido de que não haverá o Reino milenar de Cristo.

A deformação do complexo consciência-realidade-linguagem é muito provável esteja presente tanto na escatologia defendida por Voegelin como no tratamento da questão escatológica pelos pensadores helênicos, helenistas e medievais.

Como venho sustentando, a proposta bíblica é exatamente de superação da separação existente entre Deus e o mundo, em certo sentido, entre a realidade-Isso e a realidade-coisa. O Reino de Deus deve ocorrer neste mundo, como sustento no texto “Agora” (https://holonomia.com/2018/11/11/agora/):

“É importante frisar que Jesus e seus discípulos eram judeus, e os judeus não separavam temas morais, religiosos ou políticos, dada a unidade de sentido que pautava a comunidade judaica. A questão política, do Reino, era uma das manifestações de Deus entre os homens, e não faria sentido para um judeu remeter o Reino exclusivamente para outro mundo, para o além.”

Na medida em que, a partir de Agostinho, prevaleceu uma mentalidade platônica no entendimento cristão de mundo, é mais ou menos óbvio que uma escatologia paraclética, que não estava presente nas propostas dos pensadores helênicos e helenistas também não tenha aparecido entre aqueles medievais.

Não devemos nos esquecer que a oração ensinada por Jesus inclui o pedido de um descenso do Espírito, “venha o teu Reino, seja feita a tua Vontade na terra, como no céu” (Mt 6, 10); “venha o teu Reino” (Lc 11, 2).

Outrossim, procurar processo histórico o seu eschaton, seu Fim, está em conformidade com a leitura até mesmo mais direta das escrituras, pois no fim dos tempos está prevista exatamente descida da Jerusalém celeste: “Vi também descer do céu, de junto de Deus, a Cidade santa, uma Jerusalém nova, pronta como uma esposa que se enfeitou para seu marido” (Ap 21, 2).

Obviamente, é possível compreender tal narrativa como expressão de uma mitoespeculação por meio de linguagem compacta, mas o próprio Voegelin vê o “capítulo 1 do Gênesis como uma ‘mitoespeculação pneumaticamente diferenciada’, caso queiramos entender o uso diferenciado ao qual a linguagem do mito foi submetida no Gênesis, criando mediante esse uso uma nova linguagem para novas concepções”, para depois afirmar que entende o “Gênesis como um dos grandes documentos no processo histórico da passagem das linguagens compactas para as linguagens diferenciadas” (Idem, pp. 43 e 45).

Portanto, se próprio livro do Gênesis, com uma linguagem de séculos de antecedência em relação ao Apocalipse, já era uma forma de linguagem diferenciada, é perfeitamente cabível conceber também o texto da Revelação, posterior e fruto do desenvolvimento daquela linguagem, como expressão de uma nova concepção, um complexo consciência-realidade-linguagem, que não estava presente na mentalidade dos pensadores helênicos e helenistas ou, porque se vincularam, nesse ponto, à mentalidade destes, também dos medievais.

É bem possível que o descenso do Espírito alcançado pelas cristandades de Pedro e de Paulo não tenha sido, ainda, o que os profetas haviam previsto, e que a escatologia paraclética possa, enfim, se consumar, quando a humanidade estará corretamente orientada no seu trabalho em busca da ordem, quando a autoconsciência humana, coletivamente, dentro da História, chegará ao seu Fim, isto é, sua união com Cristo e, finalmente, com o próprio Deus.

Derramarei o meu espírito sobre a tua raça e a minha bênção sobre os teus descendentes” (Is 44,3).

“‘Depois disto, derramarei o meu espírito sobre toda carne. Vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos anciãos terão sonhos, vossos jovens terão visões. Mesmo sobre os escravos e sobre as escravas, naqueles dias, derramarei o meu espírito. Colocarei sinais nos céus e na terra, sangue, fogo e colunas de fumaça’. O sol se transformará em trevas, a lua em sangue, antes que chegue o dia de Iahweh, grande e terrível! Então, todo aquele que invocar o nome de Iahweh, será salvo. Porque no monte Sião haverá salvação, como Iahweh falou, e em Jerusalém sobreviventes que Iahweh chama” (Jl 3, 1-5).

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